Varrendo a sujeira para debaixo da nuvem

A produção e uso de dispositivos digitais parecem não causar impactos ao meio ambiente, mas podem ser até mais prejudiciais que ações sabidamente poluentes

Natália Huf
PLATAFORMAS DIGITAIS
7 min readDec 18, 2020

--

Helen Fernandes, Natália Huf e Rafaela Martins
Mestrandas no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia (Poscom/UFBA)

Práticas de sustentabilidade são políticas de ação que buscam minimizar impactos provocados pela atividade humana sobre o meio ambiente. Tomando como exemplo o uso de papel em escritórios, é possível encontrar diversos estudos¹ que investigam os impactos ambientais de imprimir documentos, sendo comuns campanhas estimulando a redução do uso de impressões. Essas campanhas associam papéis à sua matéria prima: árvores. Ao escolher enviar um documento por email ao invés de imprimi-lo, as pessoas se sentem “salvando árvores” e minimizando a geração de lixo, afinal, é isso que dizem os avisos colados nas paredes dos escritórios. Tanto as árvores quanto os papéis podem ser tocados pela mão humana; uma folha de papel descartada faz volume na lixeira, que precisa ser trocada quando enche. Por ser um produto palpável, é mais fácil visualizar quais os recursos materiais utilizados e transformados para sua existência.

Fica um pouco menos clara, no entanto, a quantidade de energia consumida para essa transformação acontecer. Quanto dióxido de carbono (CO2) foi emitido para que a celulose se transformasse em papel? Quanto petróleo e energia foram necessários para a produção do plástico da embalagem da resma, o asfalto das rodovias, o combustível do transporte que levará o papel às lojas? Quantos trabalhadores estão envolvidos nessa cadeia produtiva? Para uma impressão em papel acontecer, existe uma rede de recursos materiais e sociais envolvidos que não são claramente vistos. Para uma impressão não acontecer, também. Neste ensaio, temos como objetivo discorrer sobre como a utilização da tecnologia e das alternativas digitais, muitas vezes compreendidas como sustentáveis, também causam impactos ambientais e sociais, que podem passar despercebidas dos usuários devido ao caráter imaterializado das interfaces desses recursos.

Quando enviamos um documento por email ao invés de imprimi-lo, não é tão fácil enxergar que toda a movimentação digital necessária para isso acontecer também utiliza recursos e gera resíduos, como emissão de CO2 e de gases causadores do efeito estufa. Há até mesmo ferramentas que permitem calcular o CO2 gerado pelo envio de emails e o impacto individual no planeta. O processamento de dados necessário para uma ação digital é invisível aos olhos do usuário, que muitas vezes nem imagina a dimensão do que acontece com a atividade ordinária que é o envio de um email. Para que seja enviado, inclusive para o computador do colega de trabalho na mesa ao lado, poluentes são emitidos e recursos materiais e humanos são gastos.

Um exemplo de recurso utilizado para que se concretize uma ação digital é o lítio, presente em diversos dispositivos móveis. O metal é crucial para a produção de baterias, usadas em smartphones, que utilizam em torno de oito gramas, e carros Tesla, vendidos como uma opção sustentável aos carros movidos a combustíveis fósseis, mas que necessitam de cerca de sete quilos do material. Lítio é um recurso não renovável, ao menos pelos próximos milhares de anos; além disso, sua extração depende da exploração da mão de obra de trabalhadores, que passam longas e insalubres jornadas em locais como o Salar de Uyuni, na Bolívia (região excepcionalmente rica em lítio, contendo entre 50 a 70% das reservas mundiais), ou o deserto do Atacama, no Chile e Argentina (CRAWFORD, JOLER, 2014).

Datacenters armazenam os dados dos usuários de plataformas digitais

A própria ideia de “nuvem” (cloud) de armazenamento de dados é algo que nos dá uma ideia distorcida do que realmente é. Um arquivo digital parece uma opção mais limpa do que volumosas estantes com pastas e papéis, mas, assim como uma nuvem, a cloud é um conjunto de “micropartículas” — os dados — que estão em suspensão na internet, porém, são armazenados em sólidos datacenters. A metáfora etérea é uma contradição com a realidade da extração de minerais e exploração do trabalho de inúmeras pessoas para que o armazenamento e processamento de dados ocorram (CRAWFORD, JOLER, 2014). Para que sejam acessíveis de qualquer lugar do mundo, a força de trabalho de pessoas e recursos naturais do mundo todo são utilizados.

Essa extensa cadeia de recursos envolve também a extração de dados dos usuários, que, por sua vez, agem simultaneamente como recurso, usuário e trabalhador ao fornecer seus dados e contribuir com processos de aprendizado de máquina (machine learning) dos algoritmos de redes sociais e assistentes virtuais. O usuário não pensa em quantas pessoas trabalharam e quanta energia e recursos foram utilizados, nem na fibra óptica que passa pelas entranhas do mar, nem nos satélites que orbitam ao redor de todo o planeta para que ele possa curtir uma foto em uma rede social digital ou dar o play em um vídeo. Isso ocorre porque as interfaces de aplicativos para celulares, websites e assistentes virtuais que intermediam essas ações digitais são pensadas para invisibilizar as cadeias produtivas e poluentes necessárias para seu funcionamento.

Esse caráter imaterializado atribuído aos produtos digitais, por sua vez, não é exatamente novo. Embora tenha sido intensificado com as tecnologias digitais e dispositivos móveis, algo semelhante ocorreu na segunda revolução industrial, que encontrou no petróleo um recurso que impulsionou a industrialização e acelerou o ritmo das produções, substituindo o carvão, e

[o] poder que os mineradores tinham de bloquearem a produção, de se organizarem no fundo das minas fora da vista de seus supervisores, de fazerem aliança com os ferroviários que operavam próximo a suas bases, de enviarem suas mulheres para se manifestarem frente às janelas de seus patrões, tudo isso desaparece com o petróleo, essa fonte de energia controlada por um punhado de engenheiros expatriados em países distantes, liderados por pequeníssimas elites facilmente corruptíveis, cujo produto circula por oleodutos que são de fácil reparo em caso de dano. Se antes, com o carvão, os inimigos eram visíveis, com o petróleo eles se tornaram invisíveis. (LATOUR, 2020, p. 77)

Entretanto, diferentemente do carvão e do petróleo, em que há uma transição entre o recurso inicial material e sua invisibilização (afinal, não vemos o petróleo no dia a dia, mas sim as infraestruturas construídas para sua captação e produtos produzidos a partir dele), os dados já nascem imateriais. Quando falamos em dados, também precisamos lembrar que, assim como o petróleo, esse recurso é controlado por pequeníssimas elites: grande parte dos dispositivos e serviços digitais são oferecidos por um grupo de cinco grandes empresas, conhecidas como GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft). Devido aos impactos materiais causados pelos produtos e serviços digitais, muitas empresas de tecnologia adotam discursos sustentáveis — “descarbonização da economia” — , mas comumente com uma perspectiva interna, como mudanças nas ações realizadas por executivos e funcionários, além de ressaltarem que essa nova atitude traria ainda um impacto positivo nos lucros. Mas o que as companhias obscurecem em relação à sustentabilidade refere-se aos padrões de uso dos consumidores. De nada adiantam as modificações em estruturas, processos, fornecedores e matéria-prima se não houver uma problematização a respeito da produção, consumo e processamento diário de dados a partir dos serviços e produtos ofertados aos usuários. É preciso ampliar a discussão para além da ideia dos dispositivos que utilizamos e passar a observar nossos hábitos de consumo de dados intermediada por eles: vídeos assistidos e baixados, playlists reproduzidas, tuítes publicados, entre outras ações cotidianas na internet pelo coletivo de usuários, gerando enorme produção e processamento de dados. Em 2013, a ferramenta TweetFart possibilitou fazer o cálculo da pegada de carbono de hashtags compartilhadas no Twitter. Assim como andar de carro ou viajar de avião, práticas sabidamente poluentes, publicar tweets também depende de eletricidade e gera CO2. Isso vale para toda a movimentação online dos usuários. Porém, apesar de depender e resultar de processos extrativistas e exploradores, e também de gerar resíduos, permanece no imaginário coletivo a ideia de que a atividade digital seria mais “limpa” e não poluente.

O Antropoceno é a era geológica corrente, na qual o ser humano é a força dominante no planeta Terra

Assim, seguimos publicando tweets, compartilhando fotos, enviando emails, nos guiando por mapas digitais e dando comandos de voz às Siris, Alexas e outras assistentes virtuais sem nos darmos conta da imensa rede de recursos naturais e sociais necessária para que essas pequenas ações ocorram. Na era do Antropoceno (LATOUR, 2014; 2020), em que o ser humano se tornou a força dominante no planeta, é cada vez mais necessário pensarmos sobre como podemos mudar a forma como encaramos a natureza: a Terra não é uma fonte inesgotável de recursos, mas sim nossa morada — e está pedindo socorro.

Cada vez mais estruturadas por serviços, dispositivos e produtos conectados via internet, a sociedade gera uma quantidade imensurável de dados por segundo. Os prejuízos ambientais causados pela fabricação e uso de dispositivos e serviços digitais permanecem tão invisibilizados aos consumidores e usuários finais que muitas vezes passam despercebidos. É urgente que as cadeias produtivas, exploratórias e extrativistas que estão por trás das interfaces interativas dos aparelhos e serviços digitais sejam discutidas e reguladas. É necessário problematizar essa forma de emissão de poluentes, questionar governos e estabelecer regulamentações. E, sem o conhecimento sobre os hábitos de consumo e de uso nos ambientes plataformizados, não será possível começar a transformar essa realidade e pensar em caminhos mais sustentáveis para o desenvolvimento e fabricação de serviços e dispositivos, nem para o uso de internet.

Referências

CRAWFORD, Kate; JOLER, Vladan. Anatomy of an AI System. Virtual Creativity, v. 9, n. 1, p. 117–120, 2020.

LATOUR, Bruno. Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista de Antropologia, 57(1), 11–31, 2014. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2014.87702

LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Trad. Marcela Vieira. 1a edição. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

--

--