Das ruas para as páginas dos jornais

Laura Lima
poadobem
Published in
5 min readJun 13, 2019

Presidente da ONG Renascer da Esperança nunca desistiu do sonho, mesmo não tendo recursos e incentivo

Enquanto ela fita o jornal por entre as mãos, seus lábios se abrem num largo sorriso. Quem a conhece, sabe que o riso de Rozeli da Silva é seu melhor acessório. Ali, na capa daquele jornal, está estampado a realização de um sonho. No entanto, nem sempre as oportunidades estiveram assim tão a mão. “Na minha vida, eu nunca estudei, foi sempre tudo muito difícil”, murmura.

Moradora de rua, vítima de relacionamento abusivo até os 17 anos, mãe aos 12, analfabeta até os 32, e com mais de três décadas na função de gari do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), ela decidiu que precisava mudar a vida da comunidade onde morava em poucas horas de sono.

“Eu tive um sonho. Era um campo, com muitas margaridas amarelas e cheio de crianças. Nele também tinha a minha amiga Learsi Kelbert, assistente social do DMLU. Enquanto eu estava ali sentia que precisava cuidar dessas crianças”, afirma Rozeli sorrindo alegremente. No outro dia, quando acordou, o sonho tornou-se latente em seus pensamentos.

O que Rozeli não sabia era que Learsi perambulou pelo mesmo campo durante o sono. “Nenhuma das duas conseguia acreditar no que estava acontecendo: tínhamos tido o mesmo sonho. Foi então que decidimos abrir a ONG Renascer da Esperança”, esclarece Rozeli, enquanto balança a cabeça incrédula, como se ainda não acreditasse na coincidência (ou não).

No começo, algumas pessoas não acreditavam nela. “Me diziam para eu primeiro ir aprender o “a e i o u” para depois ajudar os outros”, lamenta Rozeli. Sexta filha de 10 irmãos, ela sempre precisou cuidar da casa, mesmo sendo uma das caçulas. Essa tarefa lhe deu espírito de liderança e força para nunca desistir. E foi assim.

Localizado na Restinga, zona sul de Porto Alegre, a ONG nasceu em 1996. Rozeli mantinha a instituição de dia, varria as principais avenidas da Zona Sul, à noite, e estudava no tempo que lhe restava. Inicialmente o projeto atendia 40 crianças, de idades entre 7 e 14 anos. Aos poucos, ele foi ganhando forma e hoje atende mais de 300 crianças, de 0 a 17 anos. “Eu percebia que as crianças de 14 anos saiam da Renascer e depois eu não sabia o que acontecia com elas. Então, eu ampliei a faixa etária pra poder largar o jovem no mercado de trabalho. Esses eu sei que vou conseguir salvar”, garante Rozeli.

O projeto cresceu tanto, que hoje a unidade está em fase de construção. Essa será só para qualificar adolescentes para o mercado de trabalho. O Renascer oferece aulas de capoeira, judô, dança, informática, tem orquestra sinfônica própria, biblioteca e uma longa lista de atividades.

As crianças aprendem de forma lúdica e os educadores são responsáveis por realizar atividades que incentivem a valorização ética e o respeito ao ser humano. Aos maiores, as dinâmicas ganham peso e as conversas são mais complexas. Temas como o exercício da cidadania, consumo de drogas, mercado de trabalho e as dificuldades do processo de amadurecimento são frequentes nas rodas de diálogo. “A escolaridade na Restinga é incompleta, porque as crianças precisam trabalhar cedo. Eles chegam até o 7º ano e largam, pra ajudar a mãe e o irmão”, lamenta Rozeli.

Os dados refletem a preocupação de Rozeli. Conforme a pesquisa mais recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, a taxa de analfabetismo na Restinga é de 4,03% e o rendimento médio dos responsáveis por domicílio é de 2,10 salários mínimos. O bairro possui 60.729 habitantes, representando 4,31% da população do município, com área de 38,56 km², sendo sua densidade demográfica de 1.574,92 habitantes por km².

Em Porto Alegre, existem 395 escolas que ofertam o ensino fundamental, entre estaduais, federais, municipais e particulares, segundo dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), de 2017. De ensino médio e integrado são 141 escolas. Ao todo, cerca de 290 mil crianças e jovens estão matriculadas nas escolas, sobretudo nas particulares, 41%. A taxa de analfabetos da população de Porto Alegre com 15 anos ou mais é de 2,27%.

Por isso, Rozeli não desanima. “A gente tem um impacto muito grande na comunidade. A gente faz a Restinga caminhar pra frente e sair para o mundo”, afirma sorrindo com os olhos.

I have a dream

Digo a vocês hoje, meus amigos, que, apesar das dificuldades de hoje e de amanhã, eu tenho um sonho. Tenho um sonho de que um dia esta nação se erguerá e corresponderá em realidade o verdadeiro significado de seu credo: ‘Consideramos essas verdades manifestas: que todos os homens são criados iguais’..*

Apesar de já ter realizado um grande sonho, Rozeli quer chegar mais alto. “Eu ainda vivo sonhando, porque só não sonha quem não tá vivo”, afirma entre uma gargalhada e outra. O próximo degrau de conquistas dela é ganhar o prêmio Nobel da Paz, reconhecimento concedido a pessoa que tenha feito a maior ou melhor ação pela fraternidade entre as nações, pela abolição e redução dos esforços de guerra e pela manutenção e promoção de tratados de paz. “Daqui a 10 anos eu me quero ganhar esse prêmio, porque quero expandir meus projetos e começar a trabalhar com sustentabilidade também. Quero agregar trabalhos sociais”, salienta.

Para quem deseja começar um projeto social, Rozeli afirma que o medo é a principal barreira. O importante é ter vontade. “As pessoas dizem que se tivessem dinheiro fariam alguma coisa. Eu nunca tive dinheiro. A gente não precisa disso, precisa acreditar em si e não desistir”, afirma, enfatizando, ainda, que contar com a ajuda de outras pessoas é muito bem-vindo.

Do trabalho nas calçadas ela foi para as páginas dos jornais, porque todos se encantam com Rozeli da Silva. Ela jamais imaginou chegar onde está hoje. De forma alegre, com o brilho dos olhos de uma criança, ela conta a sua história a quem quiser ouvir. Entre um devaneio e uma palavra entrecortada, ela afirma que todos viemos para a terra com um propósito. Ela está cumprindo o seu.

*Parte do discurso do pastor protestante e ativista político estadunidense Martin Luther King. No dia 28 de agosto de 1963, ele discursou para cerca de 250 mil pessoas sobre seu sonho de ver uma sociedade em que todos seriam iguais sem distinção de cor e raça.

Grupo: Ana Luísa Ribeiro Martins, Fabiana Marsiglia, Juliana Irala, Juliana Irala e Naesha Carvalho

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