Voluntários da Fauna: trinta anos de dedicação e luta pela preservação da vida

Gian Carlos Lorencet Panisson
poadobem
Published in
6 min readJun 19, 2019
Foto: Bárbara Bitencourt

Foi a paixão pelos animais que levou a veterinária Gleide Marsicano a criar, 32 anos atrás, os Voluntários da Fauna, projeto paralelo à clínica Toca dos Bichos, localizada no histórico bairro do IAPI, zona norte de Porto Alegre. O objetivo da iniciativa é proporcionar, gratuitamente, atendimento a animais silvestres capturados ou encontrados em Porto Alegre e região. Somente em 2018, os Voluntários receberam 2643 animais, uma média de sete por dia.

Foto: Bárbara Bitencourt

No local — que funciona por ora junto à clínica, por ora na casa da proprietária, nos fundos do estabelecimento -, é feito todo o acompanhamento necessário para que os animais oriundos de vida livre possam retornar ao seu habitat. Dos mais de 2,6 mil animais que o projeto recebeu no ano passado, 1,5 mil eram aves. Mas eles recebem, garante Gleide, todo o tipo de bicho — de filhotes de sabiás que caíram do ninho a gambás, capivaras, ouriços e até preguiças. Para dar conta de toda essa demanda, a equipe conta, atualmente, com oito veterinários e 14 estagiários. E, pra cuidar de tantos bichinhos, o projeto também tem muitos gastos — nem tudo pode ser feito só com amor, afinal de contas.

Foto: Bárbara Bitencourt

Embora já tenha recebido auxílio da Prefeitura em outras épocas, o projeto funciona de forma autônoma hoje. Todos os recursos — que são usados para alimentação, medicamentos, além de gastos com luz e equipamentos — vem de doações. “Cada um doa o que pode: vai ser uma moedinha de cinco centavos, 10 reais, 100 pila ou 400 pila. A gente sempre pede uma ajuda, mas, se a pessoa não tiver nada na hora — o que é bastante comum -, a gente não vai deixar de atender o animal por causa disso”, afirma Gleide.

Não é possível, segundo a veterinária, estimar os custos. Eles podem ir de 800 reais — nos meses mais ‘parados’ — a mais de R$5 mil, nos meses de maior movimento. A movimentação aumenta a partir de setembro e se estende até o início do verão. Isso se dá por conta da época de cria dos mamíferos, diz Gleide. Ela conta que eles já chegaram a receber, num único mês, quase uma centena de gambás.

Mesmo que não tenham, hoje, um canal oficial por onde as pessoas possam doar mensalmente, o projeto já movimenta uma rede de solidariedade. Um exemplo disso é uma senhora que todo sábado vai à feira do bairro buscar alimentos descartados pelos feirantes, com objetivo de doá-los ao projeto depois. “Ela está se doando com o que ela tem, com o que ela pode”, avalia Gleide. E isso, na visão da idealizadora, é essencial: “O objetivo é chamar as pessoas para que elas se sintam voluntárias também”.

Custo emocional

Foto: Bárbara Bitencourt

Além do custo financeiro, há, também, o custo emocional — e esse é o maior deles, de acordo com a veterinária. “Tu sofre quando o animal vai embora; tu sofre se o animal morre e tu sofre se ele vai pra vida livre porque tu não sabe se ele vai conseguir sobreviver”, comenta. O desgaste emocional é tão grande que, muitas vezes, acaba virando estresse, frustração e, principalmente, choro. “Nossas emoções estão sempre no limite. Aqui o choro corre solto”, conta Gleide.

Um dos motivos deste desgaste é a temida eutanásia. Ela ocorre nos casos em que a recuperação do animal não é possível. Cerca de 18% de todos os animais que passam pelas mãos dos Voluntárias acabam tendo esse fim — outros 28% morrem antes disso e a maior parte deles (54%) são recuperados. A eutanásia, entretanto, só acontece quando todos da equipe estão de acordo. “Se alguém diz que o animal ainda tem chance, a gente não faz”, afirma Gleide.

Histórias

Com 32 anos de vida, o local reúne muitas histórias. A mais marcante, na visão da proprietária da Casa, é a do Nicolau, um macaco que viveu por três anos com a família no final da década de 1990. O primata era tão inteligente que, conta Gleide, vivia fugindo e indo para a casa dos vizinhos. “Ele batia a cabeça na porta para a vizinha abrir e ficava lá”, lembra. “Ela nos ligava e dizia: ‘Gleide, o Nicolau tá aqui’”, conta. A relação da família com o bichinho era tão próxima que a veterinária diz ter fotos dele dormindo embaixo da coberta com seus filhos, Arthur e Mariana, crianças à época (hoje, adultos, eles também trabalham na clínica).

Mas o fim de Nicolau foi de tristeza. Semanas depois de terem colocado o animal num viveiro propício para a espécie e que atendesse às necessidades dele, Gleide recebeu um telefonema: Nicolau estava mal. Em viagem no momento da ligação, a veterinária conta que colocou, imediatamente, as malas no carro e correu de volta para Porto Alegre. Não deu tempo. No meio do caminho, outra ligação. Dessa vez, contando o pior: Nicolau havia morrido.

Na necrópsia, foi identificada uma alteração cardíaca no macaco — de nascença -, mas que nunca havia aparecido antes. “Ele literalmente morreu de tristeza”, conta Gleide, com os olhos cheios de lágrimas. “Isso é uma coisa que ainda mexe muito comigo”, afirma.

Quando questionada sobre a importância do trabalho exercido pelos Voluntários da Fauna, Gleide diz não ser apenas pelos animais, mas por todas as pessoas e pelo mundo, no geral. Ela afirma que, embora cuide dos bichos, o objetivo do projeto é muito maior que isso — a preservação na natureza e da vida. “Todo mundo que fica aqui precisa ter esse espírito de trabalhar para um bem maior”, diz ela, se referindo a pessoas que já se recusaram a ficar no local por não serem remuneradas pelo tempo dedicado aos silvestres. “Qualquer projeto é muito bem-vindo porque a gente é tão pobre disso. Tão pobre de dedicação, de coisas básicas. Qualquer coisa que qualquer um fizer é muito importante”, conclui.

Fotos: Bárbara Bitencourt

Grupo: Bárbara, Gian, Leonardo Fidelix, Pietro e Vitória.

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