“As pessoas precisam se identificar com as notícias para consumi-las”

Reflexões sobre ética e futuro do jornalismo abordados em entrevista com Marília Gehrke

Camila Tempas
Pochete Jornalismo
12 min readOct 18, 2019

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Marília Gehrke, 28 anos, jornalista graduada pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) e atualmente faz doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Seus interesses de pesquisa são: jornalismo de dados, fontes jornalísticas, contexto e desinformação. Dessa forma, sobre o futuro do jornalismo, Marília acredita que ainda haverá um constante trabalho de combate contra a desinformação e as Fake News, com base na abertura de dados, por exemplo.

Marília é mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), onde está fazendo o doutorado. (Foto: Divulgação/ Aquivo Pessoal)

Pochete Jornalismo: Na sua opinião, como será o jornalismo no futuro (daqui a 10 anos, por exemplo)?

Marília Gerkhe: O jornalismo do futuro continuará inserido em um cenário complexo. Ao mesmo tempo em que existe um ecossistema diverso, com veículos tradicionais e nativos digitais, a desinformação igualmente encontra espaço para se desenvolver, pondo em xeque a credibilidade jornalística. Acredito que a redação (ou outro modelo de trabalho) do futuro terá aprendido algumas lições com o fact-checking, que deverá ser incorporado à prática de reportagem antes mesmo da publicação de conteúdo (a boa e velha verificação que esperamos antes de ler alguma matéria). Penso que deep fakes ou formas que ainda não imaginamos continuarão a gerar muita dor de cabeça para os jornalistas, que terão de se esforçar para detectar tais falsidades e manipulações. Penso que haverá maior demanda e fiscalização pela abertura de dados públicos, gerando matéria-prima para a prática de jornalismo guiado por dados, que deve se popularizar ou surgir na forma de outros nomes, como o jornalismo explicativo (veja o que faz o Nexo, no Brasil, e o Vox, nos Estados Unidos). São formas que dialogam com o jornalismo investigativo e contextual, práticas que reforçam a importância de seres humanos na coleta e no tratamento das informações. Penso que a automatização chegará para resolver processos lentos, como a extração de um grande volume de dados e a produção de matérias diárias sobre assuntos repetitivos (previsão do tempo, informações sobre a bolsa de valores etc.). Além disso, penso que se ouvirá falar muito de jornalismo estruturado, um tipo de jornalismo que busca trabalhar com o uso e reuso de informações em formatos abertos. Refletindo sobre questões éticas da profissão, espero que o jornalismo do futuro tenha coragem de dar nome às coisas, não resumindo-se ao papel de reportar os fatos. Quando o presidente ofende alguém, ele não “diz”, e sim “insulta”. A construção de personagens da vida pública passa pelo jornalismo, que precisa se manter confiável e se mostrar necessário às pessoas. Por fim, o jornalismo do futuro terá de reforçar seu papel de serviço público, orientando a sociedade sobre as consequências da desinformação.

Pochete: Qual a importância dos métodos no jornalismo?

Marília:

Pochete: Você acredita que a tecnologia esteja gerando um impacto na produção e no consumo de conteúdo jornalístico? De que forma?

Marília: Certamente. Tomemos como exemplo os sites de rede social, especialmente o Facebook. Em termos de produção de conteúdo, os jornalistas têm de pensar em títulos atraentes, que gerem acessos ao seu próprio site e o engajamento dos leitores. Em termos de distribuição e consumo de conteúdo, é preciso considerar que atualmente pouco se acessa as notícias por meio da homepage do site noticioso — em geral, os sites de rede social servem de porta de entrada. O problema disso tudo é que os veículos de comunicação acabam tendo que jogar o mesmo jogo das empresas de tecnologia, que priorizam determinado tipo de conteúdo ou alteram seus algoritmos. Se o Facebook prioriza as interações com amigos, as páginas de jornais não são prioridade e acabam sendo menos acessadas. Assim, as empresas de tecnologia acabam exercendo um papel de mediador do qual muitas vezes tentam se eximir. Isso também vale para a distribuição de desinformação (links de procedência duvidosa que ecoam pelas redes). Muitas pessoas sequer consomem notícias fora dessas plataformas, acessando, assim, pouco conteúdo que não seja acidental. Um dos problemas é a confusão gerada em torno do que pode se considerar uma fonte de informação. É preciso ficar atento quando as pessoas citam Facebook, Twitter e WhatsApp como fontes de informação — ao invés dos veículos de comunicação que produziram uma notícia.

Pochete: Levando em consideração as evoluções tecnológicas e digitais que ocorreram nos últimos 10 anos, você acredita que os veículos de comunicação tradicionais tenham que se reinventar? Como?

Marília: Engajar a audiência de modo eficiente é, provavelmente, um dos maiores desafios. Isso significa trazer para perto pessoas que estejam dispostas a pagar pelo conteúdo consumido. O jornalismo brasileiro segue tentando construir narrativas atraentes. Se lá pela metade dos anos de 1990 os jornais de referência passaram a povoar a Web fazendo apenas a transposição de conteúdos para o ambiente online, hoje existem múltiplas formas de contar histórias por meio de textos com hiperlinks, fotos, áudios, vídeos e narrativas guiadas por dados. Em se tratando de forma, é preciso fazer tentativas e perceber como a audiência responde. Outra questão diz respeito ao conteúdo. Para continuar importante, o jornalismo precisa oferecer mais do que os textos breves que cabem nos sites de rede social. É preciso oferecer conteúdo mediado, preciso e de qualidade, diferenciando-se de outros tipos de produções.

Pochete: A Inteligência Artificial já é parte do processo produtivo em algumas situações. Como você vê essa incorporação? De alguma forma, a IA auxilia na produção de conteúdo informativo? Ou ainda, acredita que ela possa vir a substituir o papel do profissional humano? Por quê?

Marília: A automatização de processos, o que inclui o uso de robôs, pode facilitar o trabalho dos jornalistas na tarefa de coletar informações ou grandes conjuntos de dados, deixando para o profissional fazer o trabalho em que ele realmente é bom: contar histórias de qualificada a partir de fontes consultadas. Penso que o trabalho do jornalista não será substituído pelas máquinas, pois são atividades que se complementam. É difícil fazer um exercício de futurologia e arriscar que tipos de dados serão coletados nos ambientes urbanos e domésticos. Potencialmente tudo pode ser quantificado. Talvez o jornalista seja mais necessário do que nunca para apreender os dados que serão gerados e colocar sentido em tanta informação — ao mesmo tempo em que terá de respeitar a privacidade dos dados.

Pochete: Pudemos perceber, também, que nos últimos anos veículos tradicionais incorporaram modelos mais dinâmicos e interativos em sua apresentação, como é o caso do JN. Que impactos isso pode ter gerado?

Marília: A desconfiança em relação ao jornalismo de referência, motivada em grande parte por acusações infundadas de presidentes que intitulam “fake news” toda a notícia com a qual não concordam, faz com que o jornalismo tenha de confirmar sua importância como instituição. E isso passa pela aproximação com a audiência, gerando programas ou conteúdos mais interativos e que demandam o engajamento do público. É sempre difícil mensurar impacto, especialmente em curto prazo. O fato é que muitas pessoas evitam, deliberadamente, o consumo de notícias. Segundo o Relatório de Notícias Digitais de 2019, do Instituto Reuters e da Universidade de Oxford, 34% dos cerca de 2 mil brasileiros entrevistados disseram evitar consumir notícias porque isso afeta negativamente o seu dia a dia. As pessoas se sentem ansiosas e impotentes ao lerem notícias ruins. Existem correntes teóricas que defendem a existência de um jornalismo construtivo, que não se resuma a relatar os fatos, mas ofereça soluções para problemas cotidianos de uma comunidade. Modelos de jornalismo que pressupõem forte interação estão preocupados com as necessidades da audiência. Além disso, as pessoas precisam se identificar com as notícias para consumi-las. É preciso captar seu interesse e desenvolver conteúdo a partir disso.

Pochete: Com a intensa digitalização de plataformas, o que poderá acontecer com os jornais impressos?

Marília: Jornais impressos e digitais continuarão coexistindo. O papel ainda é importante para algumas gerações e contextos geográficos. Como tem um caráter definitivo e de memória uma vez que é impresso, pode-se associar o jornal impresso a um conteúdo credível e acurado. Segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia (PBM) de 2016, realizada pelo governo federal, dois terços dos entrevistados declararam confiar sempre ou às vezes nas notícias que circulam no jornal impresso, acima de outras plataformas. Outro ponto importante diz respeito à força deste tipo de produto em municípios do interior, por exemplo. Para manter um senso de comunidade e de pertencimento, as pessoas precisam se sentir representadas pelos temas abordados na imprensa (mais do que manter-se atualizado sobre assuntos estaduais e nacionais). Só o jornalismo local ou regional tem condições de fazer isso. É preciso considerar, contudo, que as próximas gerações esperam mudanças no conteúdo jornalístico e nos formatos oferecidos. O relatório “Como os jovens consomem notícias e as implicações para a mídia de referência”, do Instituto Reuters e Universidade de Oxford, dá pistas do que vem por aí.

Pochete: Qual é o maior desafio que o jornalismo precisa enfrentar para superar a desinformação?

Marília:

Pochete: Os consumidores pagam por entretenimento (assinantes de Netflix, Spotify, etc), mas não pagam assinaturas de veículos jornalísticos. Como você explicaria isso?

Marília: Como são serviços diferentes, acho difícil fazer uma comparação acurada. As pessoas que pagam por entretenimento talvez não sejam as mesmas que veem importância em consumir um conteúdo jornalístico de qualidade. As pessoas estão acostumadas a ter à disposição conteúdo jornalístico pelo qual não pagam diretamente, como ocorre no rádio, na televisão e em alguns sites de notícia. Na internet, pagar pelo conteúdo consumido talvez seja algo relativamente novo, que as pessoas ainda não estão habituadas ou não enxergam valor. Além disso, consumir entretenimento é mais fácil do que se concentrar para ler notícias. No Brasil, de acordo com o Relatório de Notícias Digitais de 2019, que mencionei antes, 22% dos cerca de 2 mil entrevistados declararam pagar por notícias na internet. Em países da Europa, esse percentual é muito mais baixo. Talvez estejamos no caminho certo.

Pochete: Qual seria a alternativa ou a saída para buscar um público fiel ao conteúdo jornalístico pago?

Marília: Compreender a audiência e suas necessidades a partir de pesquisas e análises de dados de consumo, bem como entender que modelo de pagamento se encaixa na realidade do público-alvo pretendido.

Pochete: Além disso, você acha que o “pagar por informação” se manterá daqui a dez anos, ou vê o surgimento de formas cooperativas de produção e consumo?

Marília: O jornalismo de qualidade precisa ser financiado de alguma maneira. Alguém precisa pagar, seja uma grande empresa ou instituição, seja o consumidor final. O crowdfunding (financiamento coletivo) vem sendo uma das formas mais utilizadas para apoiar o jornalismo e deve se manter nos próximos anos, ao menos enquanto não se descobrir outras formas mais efetivas. É um jeito de não depender de grandes anunciantes e tentar sensibilizar principalmente pessoas físicas. Alguns jornais pelo mundo adotam a forma de micropagamento, em que não é preciso ser assinante da publicação e pagar determinado valor por mês, mas é possível pagar apenas por conteúdo X que se deseja acessar.

Pochete: Na sua opinião, qual é o papel das Universidades para a formação de futuros jornalistas?

Marília: A universidade tem o papel de promover o senso crítico e a reflexão entre os alunos de graduação. O debate entre professores e estudantes prepara os futuros jornalistas para um olhar acurado e voltado ao mundo real, com empatia. Ainda que a universidade tenha de se manter atualizada e oferecer conteúdos atuais aos alunos, é preciso lembrar que estamos falando de uma formação intelectual e não tecnicista. Também é importante que as universidades recebam e formem alunos de perfis variados, assegurando que os veículos de comunicação do futuro sejam povoados por pessoas com diferentes bagagens e contextos sociais, ampliando a cobertura temática feita por essas empresas de comunicação.

Pochete: De que forma o ensino de futuros profissionais pode ser afetada com as novas mudanças e tecnologias?

Marília: É provável que seja cobrada uma formação diferenciada dos profissionais de jornalismo. De algum modo, isso sempre foi feito. Quando trabalhei como repórter, a questão principal era ser um profissional multimídia, capaz não só de escrever bons textos, mas também saber fazer um boletim para o rádio, gravar vídeos etc. O que vejo, neste momento, é uma grande especulação sobre o jornalista ter de saber programar e trabalhar com análise de dados. De fato, é um diferencial e auxilia no processo de contextualização da notícia, mas também envolve uma competência que não se aplica a todo e qualquer profissional de jornalismo.

Pochete: O que você pensa sobre a plataformização das coisas/serviços?

Marília:

Pochete: E em relação aos desertos informativos? Quais as possíveis soluções?

Marília: Primeiramente, é preciso investigar quais são as formas de comunicação que podem auxiliar essas regiões em que há poucos veículos de comunicação. Talvez nesses lugares tenha sinal de rádio, mas não de internet. É preciso compreender o cenário e encontrar alternativas de veículos viáveis para cada região. O jornalismo local é importante para que as comunidades se reconheçam e se sintam representadas.

Pochete: Durante a maior parte do curso, ouvia os professores falando que a imparcialidade deve fazer parte do processo de produção, embora saibamos que a simples escolha de vocabulário já sejam um sinal de imparcialidade. Por outro lado, isso não toma partido nas histórias que são contadas. No ano passado, participei de algumas palestras em que os convidados, profissionais que já tem um histórico de caminhada, declaram a importância de assumirmos um lado da situação. Como você vê a questão da imparcialidade? Ela vai continuar sendo um critério importante de credibilidade no futuro, na sua opinião?

Marília: Imparcialidade, equilíbrio, neutralidade e objetividade são palavras que trouxeram problemas ao jornalismo com o passar dos anos. Em geral, são mal interpretadas. Não é segredo para ninguém que o jornalismo é financiado (por empresas/anúncios, assinantes ou outras formas). Quem investe quer que suas premissas ou pontos de vista estejam contemplados de alguma forma. A transparência com o público sempre é o melhor caminho. O ideal seria abrir essas informações ao público (quem financia a empresa de comunicação), mas isso dependeria de uma mudança cultural muito forte em países como o Brasil. Mais do que isso, o jornalismo pecou, ao longo do tempo, em não abrir os seus processos. Poucas pessoas sabem como funciona um fluxograma dentro de uma redação. Não raro as pessoas culpam o repórter pela publicação de alguma informação equivocada, mas não levam em conta que este mesmo repórter consulta fontes e tem um editor acima dele que toma as decisões. A questão de utilizar um ou outro termo para se referir a uma situação não dialoga, necessariamente, com a imparcialidade. É a subjetividade do repórter que está em operação — a subjetividade existe na dualidade com a objetividade (entendida, aqui, como método para apreender aspectos da realidade). Nem toda escolha do jornalista é de caso pensado. Às vezes se utiliza um verbo ou um substantivo porque pareceu adequado no contexto (no caso do jornal impresso, as palavras precisam se encaixar em determinado número de colunas). Se o jornalismo abrisse seus processos e fosse mais transparente, as pessoas saberiam disso.

Pochete: Você acredita em novas linguagens como forma de aproximação com o público?

Marília: Dar uma nova roupagem a linguagens já existentes pode ser um dos caminhos para compreender de que forma o público deseja se informar. Os podcasts, por exemplo, têm feito muito sucesso no Brasil e no mundo. Em alguns casos, empresas jornalísticas fazem programas muito bem produzidos, que lembram muito o formato de uma mesa redonda para o debate no rádio. Outra aposta no jornalismo digital são as visualizações de dados como forma de “desenhar” ao leitor as informações. É necessário experimentar para ver o que dá certo.

Pochete: Vídeo ou texto?/Impresso ou digital?

Marília: Para as duas perguntas, a resposta é: depende. Tanto o formato do conteúdo quanto a plataforma em que esse conteúdo é oferecido funciona de acordo com a preferência do público, aspectos de geração, contexto social e geográfico etc. Audiências mais jovens tendem a se engajar com conteúdo curto e efêmero, como os vídeos. No interior do Estado, por experiência própria, sei que o jornal impresso ainda tem muita força. Não é possível dizer que só o vídeo faz sucesso. Do contrário, formas mais complexas e contextuais de jornalismo simplesmente não encontrariam espaço para prosperar. A questão me parece ser aproveitar os formatos da melhor forma possível, conhecendo a audiência.

Pochete: Tempo ou qualidade?

Marília: Qualidade, claro, lembrando que meu lugar de fala é de pesquisadora e não de repórter ou proprietária de veículo de comunicação, para os quais essa percepção pode ser diferente. O fato é que o ambiente digital congrega diferentes formas de se fazer jornalismo, desde os alertas e constantes produções de breaking news até conteúdos mais complexos, como o jornalismo de dados e o jornalismo explicativo. De maneira geral, o tempo de produção tem sido debatido na academia. Além das formas que mencionei há pouco, há movimentos de desaceleração inclusive no jornalismo, a exemplo do chamado slow journalism, que prioriza o contexto.

Pochete: Tradicional ou inovação?

Marília: O melhor dos dois, eu diria. Não se pode anular tudo o que foi construído até o momento, assim como também não é possível insistir em modelos que já não dão certo. A questão me parece ser aprender com as falhas e ficar atento aos novos modelos, a fim de compreender o que pode ser aplicado em cada contexto. Novos formatos e novos veículos dependem da demanda por jornalismo.

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