Nenhuma a menos, e quantas mais, melhor

Das cinzas de um crime bárbaro, nasceu um dos movimentos feministas com poder de mover estruturas na América Latina. É assim que surge o Latfem

Vitorya Paulo
Pochete Jornalismo
4 min readNov 28, 2019

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Com Kellen G. Dalbosco

Nome da iniciativa: Latfem

Quando surgiu: 2016

Onde surgiu: Argentina

Foto: Reprodução/Wikimedia commons

Em uma mescla de América Latina e feminismo, nasce a sigla LatFem, nome do dispositivo midiático que se propõe a fazer jornalismo de uma maneira consciente, certas das implicações do fazer da profissão e dispostas a contemplar o feminismo em suas produções, uma vez que se reconhecem membros da luta feminista, usando do jornalismo como uma ferramenta de disseminação do conhecimento.

A Argentina, a exemplo do histórico da América Latina, tem relatos bárbaros de feminicídios que abalaram a estrutura de poder e civil do país. Em 2015, a adolescente de 14 anos Chiara Páez foi assassinada pelo seu namorado de 16 anos e teve seu corpo enterrado no quintal dos avós do assassino, que contou com a ajuda de seus pais. Neste ano, nasceu o movimento “Nenhuma a menos” (em espanhol, “Ni una menos”).

O crime chocou o país. Mas foi em 2016, com a morte de Lucía Perez, que foi drogada, brutalmente violentada e empalada, que as fronteiras do movimento se expandiram. Protestos surgiram por todo o território latino. Em 8 de março de 2017, dia mundialmente conhecido como Dia Internacional da Mulher, data que também rememora uma tragédia envolvendo vidas de mulheres trabalhadoras, o LatFem surgiu.

Com um sentimento de identidade fortemente permeado por entre as integrantes do dispositivo jornalístico, o LatFem se identifica como integrante do movimento Ni Una Menos, fazendo frente para o debate de gênero, classe e raça, e as violências simbólicas oriundas de espaços de poder desiguais. O veículo aborda seus conteúdos através de uma perspectiva feminista, e consegue realizar o trabalho em produções diversas, como notas, coberturas, vídeos, infográficos, crônicas, reportagens, investigações, dossiês e artigos de opinião sobre cultura, análises políticas e arte.

Por se sentir parte de um movimento tão significativo na Argentina e em toda a América Latina, o LatFem realiza um jornalismo consciente das desigualdades que a profissão é capaz de provocar através da reprodução de normas de poder em uma sociedade heteronormativa. Reconhecer-se parte de um movimento que milita pela igualdade de gênero, e utilizar do jornalismo como ferramenta de demonstração das possibilidades de produções conscientes de seus efeitos na manutenção da cadeia de poder simbólico faz com que movimentos como o LatFem se destaquem no mercado jornalístico da América Latina. Também, o dispositivo se destaque pela realização de conteúdos diversos, não se restringindo a comentários em artigos de opinião e/ou reportagens. O LatFem realiza coberturas, divulga notas e pensa em conteúdo multimídia.

Além do trabalho jornalístico realizado, o LatFem oferece treinamentos, consultorias e realiza grupos de conversa a fim de disseminar o pensamento crítico dentro do jornalismo, e fortalecer o pensamento feminista dentro das redações. São 14 membros, todas mulheres: três diretoras, sete redatoras, uma programadora, uma coordenadora institucional, uma fotógrafa e uma desenhista.

O pensamento crítico em relação ao jornalismo já faz com que movimentos como o LatFem se destaquem por seu conteúdo. O número de veículos que se intitulam independentes e alternativos tem tido um crescimento exponencial, mas é possível perceber a reprodução de modelos de produção de grandes veículos, o dispositivo argentino aparece como um alternativa que se propõe mais do que redigir reportagens, mas o fazer de uma maneira didática, que faça com que o leitor perceba de forma explícita o discurso reverberado nos textos do site. O LatFem ainda dá um passo mais longo e se coloca como fonte de criação e disseminação do conhecimento adquirido, levando treinamentos e consultorias para as redações de demais veículos, a fim de ensinar uma visão feminista sobre comunicação.

Os projetos financiados por Grants, assim como os serviços de consultoria e oficinas e treinamentos são os responsáveis por manter o LatFem economicamente, uma vez que o dispositivo não recebe dinheiro público e/ou não é financiado por grandes empresas.

Perceber-se como parte de uma cultura heteronormativa presente nas estruturas de poder de toda a América Latina, no caso do LatFem, faz com que o dispositivo se coloque lado a lado na luta pela busca da igualdade de gênero e pela consciência das implicações de gênero, raça e classe, provocadas por um jornalismo que ainda acredita na objetividade. Mais do que realizar um jornalismo consciente através dos próprios conhecimentos das jornalistas e comunicadoras da equipe, o veículo argentino articula saberes sociais, jornalísticos e acadêmicos com o intuito de tornar acessível o conhecimento e que ele possa ser reproduzido e multiplicado. As oficinas, treinamentos e consultorias oferecidos reiteram a finalidade de expansão do conhecimento e das mudanças provocadas pelo LatFem ao jornalismo. Mais do que ser parte do Nenhuma a Menos, o importante é multiplicar e tornar-se cada vez mais. Essa é a maior inspiração possível para demais iniciativas em toda a América Latina, não somente no Brasil.

A seguir, confira trechos da entrevista com uma das co-diretoras do Latfem, Agustina Paz Frontera:

Pochete Jornalismo: Qual é o diferencial da LatFem? Qual é a lição que podemos ter com o LatFem?

Agustina Paz Frontera: O diferencial é a perspectiva feminista e intersetorial, o público jovem e a mistura de idiomas: pop, acadêmico, militante.

Pochete Jornalismo: Por que investir em jornalismo crítico, não sexista e consciente? Como o mercado da comunicação se concentra nessas questões?

Agustina: Como a sociedade está no meio de uma transformação histórica, as normas sociais, os pactos sexuais mudam. O jornalismo deve acompanhar e incentivar esse processo, não obstruir a transformação.

Pochete Jornalismo: Quais outras iniciativas de comunicação feminista se destacam na América Latina?

Agustina: Malquerida, Revista Emancipa, Zoila, Gênero e Número

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Vitorya Paulo
Pochete Jornalismo

Jornalista, nascida no Rio Grande do Sul mas com sotaque indefinido. Apaixonada por cachorros, gastronomia italiana, maquiagem, bom senso e empatia.