“Enquanto tiver uma pessoa que tenha o sentido da audição, vai ter rádio”

Carlos Guimarães fala sobre como rádio e podcast são (quase) idênticos

Rodrigo Pereira
Pochete Jornalismo
8 min readOct 18, 2019

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Crédito: Carlos Guimarães/Arquivo pessoal

Formado em jornalismo pela PUC-RS, Carlos Guimarães trabalha especialmente com jornalismo esportivo. Coordenador do Departamento de Esportes e comentarista da Rádio Guaíba, é conhecido por seus comentários firmes e posições, digamos, radicais, tanto no esporte quanto em outras áreas. Autor do livro “O Comentarista Esportivo Contemporâneo”, traz o pensamento crítico para suas intervenções, sempre realizando análises embasadas teoricamente e traçando paralelos do futebol com demais áreas do conhecimento. Nessa entrevista, comentou sobre as influências tecnológicas no jornalismo, especificamente sobre mudanças no rádio e o (res)surgimento do podcast.

Pochete Jornalismo: A tecnologia vem transformando radicalmente um número cada vez maior de profissões em todo o mundo. Como vês essas transformações no jornalismo?

Carlos Guimarães: Acredito que as modificações tecnológicas não são um fato recente. Temos essas modificações desde a invenção da imprensa, dos tipos móveis e desde a escrita, na verdade. É uma tecnologia que foi inventada e, assim como os tipos móveis, passa pela revolução industrial, pelo surgimento dos jornais, das imagens nos jornais, pela fotografia e seu desenvolvimento, com o desenvolvimento de como se produz um jornal, televisão, rádio, cinema… Enfim, as tecnologias se alternam ao longo dos anos. A gente tem, de fato, uma revolução com a internet e as redes sociais, mas não é a transformação, na minha opinião, mais impactante do jornalismo. Em todas as transformações, o jornalismo teve que se adaptar e correr atrás. Então, hoje, a gente está vivendo essas modificações e parece que o impacto é muito grande, que “vai terminar o jornalismo” e não é por aí. O jornalismo se adapta, se altera. Essas transformações são normais, mas vejo que elas são muito mais no sentido instrumental e operacional do que no sentido de alterar a profissão. Altera-se o modo de fazer. A profissão existe, embora tenha uma prova, seja colocada em cheque, na medida em que esses dispositivos tornam-se acessíveis para todo mundo, mesmo para quem não é jornalista.

O que significa isso? Como tem gente que faz música sem ser músico, tem gente que faz filme sem ser cineasta, vai ter gente fazendo jornalismo sem ser jornalista. E acho que o reassentamento da profissão não passa exatamente pela tecnologia. A tecnologia é um instrumento, um meio, uma forma de mediar o que o jornalista faz com o público que recebe, mas o maior impacto para mim é nessa espécie de Do It Youserlf (DIY), em que qualquer um pode produzir conteúdo. Aí, confunde absolutamente tudo: questões técnicas, questões do ethos da profissão, questões da essência do jornalismo e do jornalista. Acho que esse é o principal desafio. Não teria a resposta para “qual seria o melhor caminho”, acho que podem ter vários caminhos: jornalismo autoral, jornalismo mais independente tanto no financiamento quanto na linguagem e no conteúdo.

Pochete: Com um espaço cada vez mais disputado nos grandes veículos de mídia, iniciativas como Ponte Jornalismo, Agência Sportlight, do jornalista Lúcio de Castro, e até mesmo organizações como Nexo Jornal e The Intercept Brasil têm surgido como alternativas. Acreditas que esse possa ser um caminho para o jornalismo?

Carlos: Eu não vejo esses veículos como um caminho para o jornalismo. Acho que é um jornalismo. É jornalismo, melhor dizendo. Quando a TV surge, e tem um impacto profundo no rádio, diziam que o rádio ia morrer, que a televisão ia substituir o rádio. A televisão seguiu o seu caminho e o rádio segue o seu caminho. Se está dizendo um jornalismo mais autoral, em que há uma tomada de posições, livre das concessões (a gente tem que lembrar que as televisões e as rádios são concessões governamentais), livres de grandes famílias (que é a história do jornalismo brasileiro, com Roberto Marinho, Sílvio Santos, Paulo Machado de Carvalho e por aí vai), acho que esse é um caminho em que há uma independência de pensamento, mas essa independência tem uma tomada de posição. Ela assina embaixo o que ela pensa, ela tem uma linha editorial. E toda linha editorial vai tomar partido para determinada situação. Acho isso positivo na medida em que eu preciso ver pluralidade. E que o jornalismo seja honesto, também. Não adianta ter uma tomada de posição e não enxergar ou distorcer ou omitir as coisas, daí não é jornalismo, é uma espécie de militância. Não vejo isso nesses veículos. O que vejo é uma espécie de tomada de posição, mas que também é um perigo, porque abre caminho para um monte de aventureiro que diz estar fazendo jornalismo. Aí, não vou nem citar os nomes, mas eu crio meu portal, crio minha conta, crio um podcast e vou dizer um monte de bobagem dizendo “jornalismo 100% honesto” e não é.

A gente também tá muito voltado para o seguimento de opinião, quando acho que o jornalismo tem tantas características, tantas funções, tantas finalidades, que não é só a opinião, não é só a tomada de posição. Tem a reportagem mais aprofundada, que impacta e interfere na sociedade, mas também tem a prestação de serviços, tem o dia a dia, tem o cotidiano e isso também é jornalismo. Então, acho legal que esses veículos estejam surgindo, com matérias investigativas e aprofundadas. É um caminho. Não sei se vai ser hegemônico porque tem algo que destrói isso que é o fato. A gente não pode prever o fato, o dia a dia. Cai um avião, temos que documentar a queda do avião, independente da tomada de posição. O trânsito está pesado ou não. Um time ganhou o jogo. Tem que documentar com uma certa importância o factual. Acho que a profundidade não pode desprezar o factual.

Pochete: Cada vez mais se debate que tipo de influência tecnologias como inteligência artificial, algoritmos e deepfake possam ter dentro do jornalismo. Qual a tua perspectiva?

Carlos: Não sei se sou a pessoa mais indicada, porque não entendo absolutamente nada disso. Parece que entendo, mas não. Sei o que são fake news, mas deepfake, por exemplo, não sei o que é. Inteligência artificial não sei nada. Acho que é um meio, um instrumento, dispositivos que são criados para, digamos, encurtar o caminho da prática jornalística. Tem toda a questão do jornalismo de dados, acesso a dados. Não trabalho com isso. Eu me sinto até incapaz de responder uma pergunta com relação a algo tão específico. Realmente não entendo sobre algoritmos, onde podem ajudar. Não sei, mesmo. Talvez pesquise, mas é uma área do jornalismo que eu não tenho intimidade e não é meu objeto de estudo.

Pochete: O rádio é reconhecido na profissão como uma mídia que sempre consegue se reinventar e adaptar as mudanças tecnológicas. Como vês o futuro do rádio com a chegada da chamada quarta revolução industrial? Acreditas que continuará se adaptando? Por quê?

Carlos: Estudando a histórias das revoluções industriais, não sei se concordo com isso de quarta revolução industrial. Acho que é mais uma revolução comunicacional, ou informacional, melhor dizendo. É uma revolução do modus operandi do trabalho, talvez, mas não sei se uma quarta revolução industrial. Mas, sim, o rádio se adapta. O podcast é um formato que tá aí, as pessoas acreditam que o consumo é cada vez mais on demand, e é, é on demand e personalizado. É um consumo voltado para a pessoa, mas esse tipo de mídia não é nada mais que uma adaptação ao que as pessoas consideram relevante, importante, fundamental dentro do processo de comunicação que tem por si determinadas evoluções e práticas que se alteram ao longo do tempo. Então, o rádio não vai morrer. Enquanto tiver uma pessoa que tenha o sentido da audição, vai ter rádio. O rádio não morre. O podcast não é substituto do rádio e não tem nada a ver com substituição do rádio. Tem vários conceitos de rádio, como instituição social, como dispositivo em que emissão e recepção precisam acontecer ao mesmo tempo (o podcast não tem isso, mas tem programa gravado no rádio também).

Acho que o rádio se adapta e acho que onde o rádio se apega na sua sobrevivência é justamente no ao vivo, no fato, aquilo que a gente não pode prever: o jogo de futebol, o acidente, o trânsito. São fatos que acontecem ao vivo, e o rádio tá ali para documentar. Isso não tem podcast que segura, não tem nada que segure. “Tem o Twitter que pode documentar ao vivo”, tá bem, mas quando escrevo demoro mais tempo do que quando falo, ou seja, a informação chega antes para quem está ouvindo. Para mim, o rádio precisa ser mais perto do ouvinte, investir em bate-papo, coloquialidade, ser uma extensão do que é o papo da família, dos amigos. As formalidades que o rádio sempre teve, acho que são dispensáveis nesse momento. Isso afasta, se distancia do ouvinte. Mas o rádio tem a situação do ao vivo e eu não sei como documentar senão enxergar, apurar e transmitir. Não tem outro segredo para isso. Às vezes, a gente fica muito impressionado com as novas mídias, podcast, YouTube e coisas assim, e não percebe a força do ao vivo. E, às vezes, a gente fica mais interessado na repercussão do que na notícia. A notícia alguém documentou e falou, esse alguém falou ao vivo, quando ela aconteceu. E é aí que tá a salvaguarda do rádio.

Pochete: E podcast? O que pensa sobre essa mídia que não é tão nova, mas parece conquistar cada vez mais público?

Carlos: Tô estudando podcast, tenho vários conceitos, e, na minha opinião, podcast é o rádio num formato diferente. Nada mais é do que o rádio. Se a gente for ouvir um podcast decente, o podcast vai ter uma abertura, vai ter uma apresentação, vai ter uma pauta, vai ter um debate ou uma entrevista… Ele vai seguir normas jornalísticas iguais às de um programa de rádio, a única diferença é que o rádio é ao vivo e o podcast tá disponível para se ouvir quando quiser. Podcast nada mais é, a grosso modo, que um programa de rádio gravado. Tem vários conceitos como rádio expandido, rádio hipermidiático, não é rádio porque a essência do rádio é emissão e recepção simultâneas, mas acho que o podcast é rádio. Ele tem todas as características de rádio, exceto não ser transmitido ao vivo.

E conquista cada vez mais público, eu tenho muito cuidado com isso, porque pode ser, num primeiro momento, uma bolha. Lembro que teve a bolha dos blogs, nos anos 2000, onde todo mundo tinha blog, vai acabar com o jornal, todo mundo vai ler blog. Teve a bolha de outros sites, como Fotolog, Flickr e vários outros sites que morreram com o tempo, e o podcast eu tenho muito cuidado para que ele não seja uma bolha, mas algo permanente e que as pessoas vão consumir com o tempo. Não vejo semelhança, ele é rádio, só que gravado e que fica disponível. Acho que tem muito da questão on demand, da questão de querer consumir cada vez mais um conteúdo personalizado na hora que a gente quer, mas tem conteúdos que a gente se obriga a consumir na hora. Por exemplo, tu não vai ouvir um jogo de futebol gravado depois de saber o resultado do jogo, né? O jogo de futebol pode ser transmitido no podcast? Talvez tenha um outro conceito, como podcast ao vivo. Podcast, para mim, é rádio.

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