A produção do sujeito na clínica

Letra 22
Letra 22
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3 min readFeb 13, 2019

Vitor Araújo

A psicanálise tem como eixo da prática o sujeito do desejo. Do ponto de vista de uma teoria da gênese da função subjetiva, que sustenta o sujeito desejante, a psicanálise, desde Freud, defendeu a posição de que não há sujeito sem que haja uma relação entre pessoas. Desse modo, quando dizemos que há aí um sujeito que fala, este carrega, junto desta, não só a posição de um Eu falante, mas de um sujeito que opera uma linguagem. O que isso quer dizer? Quer dizer que a imagem de um Eu que defende posições, que nomeia objetos e que nega identificações não se encerra num Eu particular.

Se a constituição da linguagem, dirá Lacan, antecede o sujeito falante, aquele que se apossa de um enunciado, se apossa também de múltiplas enunciações. O lugar a partir do qual algo é dito sempre excede a imediatidade sensível composta de sons articulados e é feita de várias vozes.

Assim, o sujeito, em vez de ser entendido como uma Substância, pode ser entendido como um processo. Tanto no sentido de algo que não é fixo, de que é gerado a partir de certas condições que imprimem neste a condição de uma marcha sem finalidade, como também no sentido de que processos também produzem sujeitos. Ordens, regimes, métodos são as condições materiais a partir quais uma subjetividade pode ser produzida.

Mas onde está o caráter inventivo da linguagem se não há como sustentar, na clínica, uma fala personalizada e autônoma? É exatamente aí onde Lacan deixa de ser um estruturalista. Ora, se sujeitos são constituídos de processos, a autonomia não consiste em separar sujeito e sociedade ao modo de uma teoria liberal, mas também não se trata de se livrar inteiramente da ideia de uma posição autônoma (uma vez que uma autonomia constituída é radicalmente distinta de uma autonomia pressuposta).

A clínica é o espaço no qual é possível ao sujeito pôr-se ao patamar de um processo constituinte, embora essa constituição não seja entendida, de modo algum, como definitiva. Ou, ainda, como uma elaboração de uma narrativa composta de suturas, de buracos e de lacunas.

Se, como dirá Lacan, o amor é o ato de oferecer algo que alguém não possui a alguém que não o quer, a clínica é o ato de oferecer ao analisando o trabalho de reconhecer-se como sujeito onde havia apenas um Eu. Ou seja, é o ato de dar lugar a uma função subjetiva reconhecida na sua falta.

Assim, o sujeito pode ser entendido como uma universalidade porque faltosa como outras, mas, ao mesmo tempo, singular. Singular no sentido de que o sujeito, reconhecido enquanto processo, é capaz de romper com a repetição característica da organização neurótica, tornando-se capaz de criar horizontes que nomeiem espaços antes impossíveis.

A singularidade, portanto, não existe como emergência de novas particularidades. Na verdade, trata-se sim da instauração de novos processos, e isso é definidor para qualquer experiência de autonomia, inclusive política, na medida em que abre a possibilidade de criação de novas dinâmicas instituintes e de outras formas de vida.

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Letra 22
Letra 22

A Letra 22 quer tornar acessíveis temas importantes da psicanálise, método de investigação do inconsciente, inserindo-a nos debates políticos atuais.