Laços de sangue nas memórias da plantação: elaborando o trauma do racismo cotidiano

Letra 22
Letra 22
Published in
22 min readJan 23, 2019

Leonardo Araújo

Kindred: A Graphic Novel Adaptation: Octavia E. Butler, Damian Duffy, John Jennings

Arrastarem Cláudia pelo camburão|Caveirão|111 tiros contra 5 corpos|111 corpos mortos na prisão|Eu sei ser trovão?|Que nada desfez?|Eu já fui trovão e seu eu já fui trovão eu sei ser trovão!|Eu sei ser trovão que nada|Nada|Desfaz|Epahey Oyá!|Eu sei ser trovão|E nada|Me desfaz

— Luedji Luna

Segundo dados do Atlas da Violência1 de 2018, em 2016 foram registrados, no Brasil, 62.517 assassinatos, situação que fez com que alcançássemos a marca inédita de 30 mortes por 100 mil habitantes. Do total de vítimas, 71,5% eram pessoas pretas ou pardas. Isso quer dizer que, no referido ano, a cada três pessoas mortas no Brasil, aproximadamente 2 eram negras. Ainda de acordo com o relatório, enquanto registrou-se uma redução de 6,8% no número de mortes violentas entre pessoas brancas, houve um aumento considerável entre pessoas negras, 23,1%.

Outro dado impactante, trazido em matéria publicada no portal de notícias G1, por ocasião do Dia da Consciência Negra, mostra que, apesar de sermos um país majoritariamente preto ou pardo, segundo dados do IBGE (2016), a representatividade dessa população no ensino universitário é de apenas 16%, questão que se repete em todos os lugares onde há grande circulação de capital simbólico e/ou econômico, inclusive nos espaços de formação psicanalítica.

Esses dados dão a ver, de forma crua, a presença de uma ferida racial que continua aberta, revelando o real do trauma vivenciado pelo sujeito negro, em um país onde as relações sociais foram e são organizadas pela escravidão e suas atualizações. As senzalas se transformaram nos quartos das empregadas domésticas; os capitães do mato deram lugar à polícia e aos camburões que invadem as favelas com uma violência brutal; os trabalhos forçados foram substituídos pelos empregos subalternos e mal remunerados, incapazes de garantir as condições mínimas para uma existência digna.

Mas e o que a psicanálise tem a ver com isso? Essa é uma daquelas perguntas cuja resposta pode parecer óbvia (afinal de contas, a psicanálise não deveria se ocupar, por obrigação ética, de qualquer forma de angústia?) mas, em verdade, não é. Porque, se conceitualmente a psicanálise tem feito avançar debates importantes — talvez o mais célebre deles seja a crítica mordaz à modernidade e a racionalidade cartesiana representada pela ideia de indivíduo — em outros campos, como no debate racial, por exemplo, ainda falta um longo caminho a percorrer. Isso não é à toa. Aqui esbarramos novamente na problemática da representatividade2, uma vez que o pequeno número de discussões tematizando o papel da psicanálise frente ao contexto apresentado e suas implicações teóricas e clínicas se deve à dificuldade de acesso, para negros e negras, não só aos espaços de formação psicanalítica, como também à clínica, pois, no Brasil, os lugares de privilégio são majoritariamente ocupados por pessoas brancas.

Por isso, é fundamental levar em consideração que, em um país onde se pratica o que muitos e muitas ativistas, apoiados nos números trazidos pelo Atlas da Violência, classificam como um verdadeiro extermínio da população negra, há a produção de certo tipo de sofrimento vivenciado especificamente pelos sujeitos em questão, os quais têm de lidar, incessantemente, com o racismo em suas mais variadas formas, sejam elas institucionais ou cotidianas.

Nesse sentido, em um primeiro tempo, pretendo apresentar e discutir a proposta lançada pela psicanalista negra Grada Kilomba (2010), segundo a qual o racismo obedeceria à dinâmica do trauma evidenciada por Freud ao longo de sua obra, na medida em que, ao ser praticado contra o sujeito negro, ele o recolocaria dentro de uma cena colonial, na qual é completamente despossuído de si, ocupando o lugar de uma alteridade quase absoluta, à mercê de um conjunto de relações que são como um desdobramento da escravidão e que, portanto, violentam seu corpo e sua subjetividade. Uma consequência disso, ainda de acordo com Grada, é a enorme dificuldade que o sujeito negro encontra para elaborar o sofrimento provocado pelo racismo, sendo comum que seus efeitos se manifestem no campo dos sintomas, sendo sentidos como uma angústia ou como uma dor física.

Em um segundo momento, lanço a hipótese de que a elaboração teórica de Grada encontra seus antecedentes em um livro de ficção chamado “Kindred” (Laços de sangue, em tradução para o português) lançado no ano de 1976 pela autora americana Octavia Butler. Mulher negra, assim como Kilomba, Butler é considerada umas das escritoras mais importantes de sua geração, tendo sua obra sido adaptada para óperas, graphic novels e uma produção televisiva em andamento.

A relevância da discussão a que tento dar andamento aqui está não só no fato de que a nomeação de um sofrimento social pode ajudar a reforçar laços entre sujeitos que partilham vivências em comum, nesse caso o racismo, mas também em sublinhar a necessidade, dentro da clínica, de uma escuta informada pelas questões raciais que organizam, em grande medida, as relações sociais em nosso país.

Memórias da Plantação, racismo cotidiano e trauma

Grada Kilomba é uma escritora, poeta e psicóloga nascida em Lisboa, tendo origem nas ilhas de São Tomé e Príncipe, antiga colônia portuguesa localiza na África Ocidental. Foi uma das primeiras mulheres negras a atenderem o programa de doutoramento em filosofia da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, experiência que lhe fez sentir na pele o racismo existente dentro do “centro” acadêmico (KILOMBA, 2010), espaço onde negros e negras sempre tiveram seu direito de fala negado.

“Plantation Memories” lançado em 2010 é, portanto, a reivindicação de um assento na “mesa dos privilégios” historicamente interditados ao sujeito negro. Por meio do entendimento da escrita como um ato político, Grada concebe seu livro como uma forma de conferir a si mesma o estatuto de sujeito, ao dar voz à realidade psicológica do racismo cotidiano, baseado na experiência de mulheres negras. Em outras palavras, Grada Kilomba explora o racismo e suas consequências a partir do modelo freudiano do trauma, ao afirmar que, através de um choque violento, o preconceito racial posiciona o sujeito negro dentro de uma cena colonial onde é percebido como uma alteridade exótica e subordinada (KILOMBA, 2010).

O título, cuja tradução em português significa “Memórias da Plantation3”, faz referência direta ao passado colonial e à experiência da escravidão, interpretando o racismo cotidiano como uma forma de atualização constante desse período histórico, localizando o preconceito racial em um movimento contínuo entre passado e presente, uma das caraterísticas mais marcantes do trauma.

Com inspiração metodológica em Fanon, o livro pretende reconstruir experiências de mulheres com o racismo, levando em conta o impacto do gênero nesse tipo de opressão. Para tanto, Grada se valeu não só de suas experiências pessoais, mas principalmente de materiais colhidos em entrevistas com duas mulheres negras moradoras de Berlim, construindo o texto a partir de seus relatos sobre as vivências com o racismo cotidiano e os efeitos dele na construção de sua subjetividade.

Nesse sentido, o relato analisado por Grada no capítulo 9, intitulado “A palavra N4 e trauma” (tradução do autor) ilustra bem um dos principais argumentos da autora. Nele, ela traz a fala de Kathleen sobre um evento acontecido na cidade de Berlim, por ocasião de sua ida à casa da professora de piano de seu namorado à época. A pianista tinha uma filha pequena, uma menina branca que, muito provavelmente, tivera pouquíssimo contato com pessoas negras. Ao ver a figura de Kathleen, a garotinha não conteve seu espanto e, se dirigindo à mãe, disse: “A “criola” bonita! Olha como essa “criola” é bonita! E os olhos bonitos que essa “criola” tem! E a pele bonita que essa “criola” tem! Eu quero ser uma “criola” também!”(tradução do autor)5. (p. 94, 2010).

Grada afirma que o mal estar provocado em Kathleen se deve ao conteúdo traumático do termo racista constantemente dirigido contra ela pela criança, um termo que, segundo a autora, localiza-se dentro da história de colonização e de escravidão vivenciada pelo povo negro, ligada “a uma experiência coletiva de opressão, brutalidade e dor” (KILOMBA, p.94. 2010). Grada vai buscar as origens históricas do termo “Negger” ou “Nigger”, os quais decidi traduzir por “Criolo”, no final do século XVIII, quando era usado de forma pejorativa, para instilar no sujeito negro sentimentos de perda e inferioridade diante do sujeito branco. Dessa forma, toda vez que essa palavra é utilizada movimenta a cadeia de significantes a ele associada, como “primitividade — animalidade — ignorância — preguiça — sujeira — caos, etc.” (KILOMBA, p.94, 2010) (tradução do autor)6.

Por sua natureza discursiva, o racismo é capaz de se inscrever no corpo do sujeito negro, ativando cadeias significantes capazes de atualizar relações históricas de opressão, cuja dificuldade de elaboração advém de sua negação enquanto realidade social, traço que se faz mais presente ainda no caso brasileiro, devido à existência de um imaginário social construído a partir dos mitos da miscigenação e da democracia racial.

Segundo Grada, portanto, a experiência vivenciada por Kathleen se manifesta como um choque violento, cuja intensidade é, muitas vezes, sentida como uma dor física, advinda da impossibilidade de o sujeito vitimizado pela relação traumática elaborar sobre o que lhe aconteceu. A natureza indizível desse sofrimento, que aparece no relato de Kathleen como uma dor intensa nos dedos7, uma dor que ela nunca havia sentido antes, faz-se representar por uma linguagem igualmente gráfica e física, na medida em que tenta dar conta da violência do trauma e do sentimento de perda vivenciado pelo sujeito negro quando confrontado com o racismo cotidiano (2010). Esse choque violento seria, dessa maneira, a primeira característica do trauma presente nas relações de opressão racial.

A segunda diz respeito a uma sensação de separação e de fragmentação experimentadas pelo/a negro/a, na medida em que o preconceito racial faz com que ele/ela perca sua ligação com a sociedade, uma vez que lhe é negada, mais uma vez, sua condição de sujeito, ao ser interpelado/a a partir de um lugar de afirmação do mundo como branco.

No momento em que é chamada de “criola” pela garota, Kathleen é posicionada dentro de uma cena colonial, cujo fundamento é a dicotomia mestre-escravo. “Esse momento de surpresa e dor descreve o racismo cotidiano como uma mise-en-scéne, na qual os brancos se tornam subitamente os mestres simbólicos e os Negros, através do insulto e da humilhação, se tornam escravos figurativos”, afirma Kilomba (p. 95, 2010). Essa atemporalidade, pela qual o passado é vivido como presente e o presente como passado seria, por fim, o último elemento caracterizador da experiência do racismo como trauma.

Esse tipo de investida contra a subjetividade negra que se dá por meio da reprodução, com uma nova roupagem, de relações coloniais no presente é algo vivenciado constantemente pelo sujeito negro, fazendo com que as situações se repitam quase sem alterações, como prova o relato escrito em 1967 pelo psiquiatra e psicanalista Franz Fanon. Ao passar por uma mãe e seu filho, ele escuta este último se dirigir à mulher com as palavras, “Olhe o preto!… Mamãe, um preto!…”, ao que ela, olhando-o envergonhadamente responde, “Não ligue, monsieur, ele não sabe que o senhor é tão civilizado quanto nós…” (p. 106, 2008).

A aproximação do modelo freudiano realizado por Grada se liga ao desenvolvimento posterior da teoria do trauma, já que, de início, esta reivindicava à experiência sexual precoce o estatuto fundamental das causas das psiconeuroses de defesa (CASTILHO, 2013), cujo efeito traumatizante se daria no momento da “revivescência mnemônica da experiência arcaica por sua ressignificação em termos sexuais” (p. 239). A multiplicação, no entanto, de casos clínicos nos quais não era possível a identificação de um abuso sexual concreto, levou Freud a uma autocritica de sua etiologia traumática da neurose, ao sublinhar o papel da fantasia como articuladora entre a lembrança traumatizante e os sintomas experimentados pelo/a paciente. Isso representa a construção de um novo paradigma, uma vez que após 1897 a origem e o fundamento da fantasia não será mais decorrente de uma vivência empírica posteriormente rememorada, mas de uma fabricação da própria sexualidade infantil, “como evento universal e biológico produzido por um fator a que Freud daria o nome de Trieb” (CASTILHO, p. 245, 2013).

Entre 1915 e 1920, a teoria do trauma é ampliada por Freud, como tentativa de oferecer uma resposta aos traumas experimentados pelos combatentes que voltavam da Primeira Guerra Mundial. No caso deles, o evento traumático não tinha relação com objetos sexuais, mas resultavam de experiências intensas e dolorosas que não conseguiam ser integradas e que, por isso, causavam sofrimento considerável. Tal constatação levou Freud a considerar a existência de dois tipos de neurose: as espontâneas, ou seja, fruto da própria organização subjetiva do sujeito em seu processo de entrada na linguagem; e as traumáticas. Nas Conferências Introdutórias, Freud (2014) afirma que elas não passaram a existir com o advento da guerra, podendo ser observadas em qualquer evento que fosse vivenciado como um perigo muito intenso, fazendo com que o indivíduo acometido pelo acontecimento traumático permaneça nele fixado. Segundo o psicanalista, portanto, a partir de uma consideração econômica dos processos psíquicos, o trauma poderia ser definido como “uma vivência que, em curto espaço de tempo, traz para a vida psíquica um tal incremento de estímulos que sua resolução ou elaboração não é possível de forma costumeira, disso resultando perturbações duradouras no funcionamento de energia” (p. 367, 2014).

Dessa maneira, o que Grada tenta fazer a partir de sua hipótese é conferir realidade psíquica, isto é, dar nome a um tipo de sofrimento social provocado pela estrutura racista que, por exemplo, organiza as relações sociais no Brasil, transformando corpos negros em corpos violentados e subalternizados. Nesse sentido, a mobilização da noção de trauma em Freud possui não só um valor heurístico, na medida em que auxilia a traçar os contornos de um tipo de sofrimento que é coletivamente negado, uma vez que vivemos sob a égide de um pensamento que buscou construir nossa unidade enquanto nação pela denegação de processos históricos violentos, mas também político, ao conferir a possibilidade, para o sujeito negro, de produzir uma experiência de autonomia, em um contexto que busca, constantemente, aprisioná-lo no lugar de objeto.

“Laços de sangue” como metáfora do trauma

Partindo da proposta teórica de Grada Kilomba, meu argumento central é o de que a ficcionista negra Octavia Butler, em seu livro “Kindred” (Laços de Sangue) de 1979, parece ter antecipado, intuitivamente, a hipótese da psicanalista, ao descrever o mecanismo do trauma presente nas relações de opressão racial.

Kindred traz a história de Dana, uma mulher negra aspirante à escritora que, no dia em que completaria 26 anos, se vê misteriosa e repentinamente trasportada de seu presente, 1976, para o lugar de seus antepassados, o estado escravista de Maryland, no sul dos Estados Unidos, em 1815 aproximadamente. Ao empurrar uma das caixas que levava as coisas da mudança para seu namorado, um homem branco chamado Kevin, Dana começa a se sentir tonta e nauseada. Sua vista principia a embaçar e tudo ao redor vai se tornando escuro, como se estivesse prestes a desmaiar. Ela permanece em pé, tentando lutar contra a sensação de mal estar, mas finalmente cai de joelhos no chão. Porém, no momento em que Kevin se aproxima para ajudá-la, ela desaparece instantaneamente, como num passe de mágica.

Ao retornar a si, Dana percebe que não está mais no apartamento do namorado, mas em um lugar aberto e muito verde. À sua frente, corre um rio tranquilo e em suas águas uma criança se debate em desespero. Sem pensar duas vezes, ela mergulha para salvar o garoto que estava se afogando. Pelo seu tamanho, ele não devia ter mais do que cinco anos. Enquanto isso, uma mulher ruiva espera, à margem, o desfecho do salvamento, numa agonia paralisante. Antes que Dana pudesse colocar os pés na terra, ela sai de seu torpor e avança violentamente para tomar a criança de seus braços. Percebendo que o filho não está respirando, a mulher se desespera. Nesse instante, embora não fosse nenhuma especialista em primeiros socorros, Dana se dá conta de que teria que fazer algo para que a criança tivesse chances de sobreviver. Então, tomando-o de volta dos braços da mãe, encosta seus lábios nos da criança, para fazer respiração boca a boca. Imediatamente, a mulher ruiva começa a espancar Dana, acusando-a de haver matado seu filho. Com dificuldade, esta consegue segurar os punhos da mulher para avisar que o garoto estava vivo. Ao perceber que a estranha salvadora não estava mentindo, a mãe da criança confirma a boa nova com um grito “Ele está vivo! Oh, Rufus, meu bebê…”. A comemoração chega ao fim quando Dana percebe um “click” metálico, vindo de uma longa espingarda apontada contra sua cabeça. Ela tem certeza de que morrerá por ter salvado a vida de Rufus. No entanto, os mesmos sintomas da véspera começam a se manifestar: a tontura, a náusea, a visão turva… De repente, todos os elementos daquela cena onírica desaparecem, e Dana se vê novamente no apartamento de Kevin, molhada e suja de lama. Apenas alguns segundos haviam se passado.

Essa viagem no tempo se repete diversas vezes ao longo do livro, sempre para o mesmo lugar, a propósito de salvar a vida da mesma pessoa, Rufus, que continuamente se vê colocado em situações de perigo criadas por ele mesmo. Em sua segunda viagem, dessa vez para salvar Rufus de um incêndio, quando já era um garoto de oito ou nove anos, Dana descobre que ele é filho de um senhor de escravos, o futuro herdeiro da plantation de seu pai. Como da vez anterior, Dana não retorna a seu tempo imediatamente depois de salvar Rufus. Isso só acontece quando tem sua vida novamente ameaçada, ao dar de cara com um grupo de capitães do mato que se dirigiam a uma cabana, a fim de prender um escravo fugido. Ela consegue escapar por pouco de ser morta ou estuprada. De suas conversas com o garoto durante o período em que havia permanecido em Maryland, Dana percebe que ele se trata, na verdade, de um antepassado seu, mais especificamente o pai de Hagar, a ascendência mais antiga de que tinha registro em sua família.

Ela se dá conta, finalmente, de que é o laço familiar entre os dois que a faz viajar no tempo para ajudar Rufus quando ele se encontra em perigo. Se seu antepassado morresse, isso significaria que Dana deixaria de existir junto com ele. Sua função, portanto, deveria ser a de garantir que Rufus não sucumbisse pelo menos até o nascimento de Hagar, sua tataravó. Ela também descobre que a única possibilidade de retornar ao presente se dá quando sua própria vida é colocada em perigo.

Essas viagens, “como memórias convulsivas a deslocando no tempo” (p.3), levam apenas alguns minutos, horas ou dias em relação ao presente. O tempo na plantation, entretanto, é muito mais alargado. Lá, os dias podem equivaler a meses. Em suas permanências, que se tornam cada vez mais longas, Dana observa o sofrimento dos escravos que trabalham no campo, colhendo e arando a terra; dormindo no chão e se alimentando parcamente. Assiste as punições severas, verdadeiros espetáculos sanguinários, em que o chicote manipulado pelo senhor de escravos vibra com intensidade, dobrando a vontade até dos negros/as mais corajosos/as. Por ser considerada uma negra educada e gozar da afeição do garoto, Dana ganha lugar entre os escravos que trabalham na casa grande, mas isso não a impede de partilhar do mesmo destino de seus irmãos que trabalham no campo. Dana apanha, é chicoteada, envelhece, tenta fugir, em nada diferente dos outros escravos.

A medida que o tempo passa, Dana perde a proteção de Rufus, que, lentamente, vai ficando cada vez mais parecido com seu pai, autoritário e cruel, a ponto de obrigá-la a participar de uma trama para impedir que Alice, futura mãe de Hagar e interesse amoroso de Rufus, fuja com um escravo, o qual, depois de espancado quase até a morte, é finalmente vendido. Após uma surra brutal, Alice é trazida para casa aos cuidados de Dana, sendo, a partir daí, continuamente estuprada por Rufus. Dessa união nefasta nascem três crianças negras, também escravas. Hagar está entre elas. Alice tenta a todo custo garantir que seus filhos sejam libertados por Rufus, mas ele não acede a seus pedidos, temendo perder o controle sobre a escrava. Num toque final de crueldade, como punição pelas repetidas tentativas de fuga de Alice, Rufus a faz crer ter vendido as crianças, o que a leva, em um ato de desespero, ao suicídio.

Solitário, Rufus volta suas atenções para Dana, querendo que ela ocupe o lugar trágico de Alice naquela cena colonial. Semanas depois do acontecido, no momento em que conversava com Rufus tentando convencê-lo a libertar parte dos escravos da plantation e a dar um destino diferente a seus próprios filhos, Dana é atacada por ele, que deseja possuí-la à força. Nesse momento, ela alcança uma pequena faca que trazia consigo para se proteger e a enfia fundo na carne do agressor. Ele grita. O sangue gorgulha em sua boca. No instante em que Dana se vira para fugir, Rufus ainda tem forças para segurar o braço da mulher mais uma vez, evitando que escape. Com a faca ainda na mão, Dana desfere mais um golpe, desta vez nas costas de Rufus. Os dois caem no chão ao mesmo tempo. O estômago de Dana se revira e ela vomita nos dois. Um escravo, Nigel, chega a tempo de ver a cena. A mão de Rufus ainda segurava o braço da mulher.

Ao retornar ao presente, Dana percebe que havia algo errado. Seu braço ficara preso à parede, do cotovelo até a ponta dos dedos, como se tivesse se fundido a ela, encerrado em algum lugar entre os dois mundos. Ao puxá-lo, sente uma dor lancinante.

No prólogo do livro, como num anticlímax, Dana revela haver perdido parte de seu braço em sua última viagem. Dela, retornara mutilada, mas, ainda assim, viva.

Laços de sangue nas memórias da plantação

Nesse sentido, o dispositivo narrativo da viagem no tempo, muito comum nas ficções científicas, pelo qual Butler leva sua personagem de volta a um passado “esquecido”, mas não para aqueles e aquelas que guardam em seus corpos as marcas de sua violência, funciona como uma metáfora produtiva sobre a natureza atemporal do racismo. Em seus deslocamentos, Dana se vê de volta a um mundo onde corpos negros eram escravizados, violentados e objetificados, servindo como força de trabalho para a manutenção do regime econômico colonial, baseado na monocultura e na exportação de matérias-primas, modelo ostensivamente reproduzido, em maior ou menor grau, em todo continente americano. Nesse esquema, passado e presente se misturam, fazendo com que as feridas do passado sejam vividas como feridas do presente. Esse duplo registro do tempo, aliás, é um elemento muito importante no romance, já que as linhas das duas temporalidades habitadas por Dana não encontram correspondência. Poucos segundos que se passam no presente representam dias na plantation.

O tempo se arrasta lentamente nos campos de colheita, onde negros e negras trabalham sob a supervisão de um capataz munido de um chicote, para garantir que não haja direito a descanso e para punir prontamente qualquer reivindicação por alguma dignidade. Ele se arrasta nas noites quentes onde corpos suados e cansados tentam encontrar alguma posição que lhes permita descansar sua dor. Não há camas para eles, mas apenas esteiras de palha, que, quando muito, conseguem evitar que entrem em contato direto com a sujeira e com os bichos que tentam lhes subir pelo corpo.

Não à toa, no livro, o poder de acionar esse dispositivo é dado a uma pessoa branca. É Rufus que, por uma ação da qual sequer toma consciência, faz Dana se deparar com a dor e o trauma do racismo, ao arrastá-la para aquele mundo, onde o sujeito negro é tratado como algo entre o humano e o animal. Esse mesmo mecanismo pode ser percebido no relato de Kathleen sobre a garotinha alemã. Ao chamá-la de “Neggerin” — em seu segundo encontro com Dana, Rufus a trata pela mesma palavra, mas em inglês, “Nigger” — a menina branca tem o poder de fazer com que Kathleen retorne ao passado, pela presentificação da dualidade assimétrica “mestre-escravo”, referente ao período colonial. Não se trata de coincidência que, nos anos dois mil, uma garotinha alemã se refira a uma mulher negra nos mesmos termos utilizados por outra criança do começo do século XIX. Isso se dá porque, como percebeu Butler e, posteriormente, Grada, o racismo tem a propriedade de fundir presente e passado.

O mal estar e as náuseas que precedem as viagens de Dana podem ser comparadas às dores que Kathleen passa a sentir em seus dedos quando tem aquela expressão carregada de preconceito dirigida contra si. Esses sintomas físicos são outro elemento comum no trauma. O choque intenso provoca a mobilização de um quantum de energia no sujeito que, ao não encontrar significantes capazes de expressá-lo, reverte-se em afecções do corpo. Os efeitos do acontecimento traumático são agravados, no caso do racismo, pela dificuldade que o sujeito negro tem de elaborar sobre ele. Isso pode ser observado especialmente no Brasil, onde, como já afirmamos, houve um processo de apagamento do registro das violências praticadas contra parcela representativa da população, na tentativa de criar um falso sentimento de integração nacional; de que somos um só povo, com uma só história.

Por ser ainda tão pouco debatido, a realidade psicológica do racismo é pouco reconhecida, e os sujeitos que vocalizam seu sofrimento em razão dela são muitas vezes tachados de hipersensíveis ou de pessoas que “veem racismo em tudo”. Leva um certo tempo para que Dana convença Kevin, seu namorado branco, da realidade de suas viagens no tempo, confirmação que só vem definitivamente para ele, quando, em uma das ocasiões, é arrastado para Maryland com ela. No caso de Kathleen, seu companheiro, alemão e branco, assiste aquela cena como se fosse algo absolutamente normal, afinal se tratava apenas de uma criança que, provavelmente, ainda não sabia usar o termo correto para se referir a pessoas negras. O mesmo poderia ser dito para o caso vivenciado por Fanon.

A falta de reconhecimento do sofrimento psíquico provocado pelo preconceito, aliado à expressão de um conjunto de relações históricas de opressão condensados nas variadas formas de racismo obedecem a um movimento duplo: estabelecer a universalidade da branquitude, herdeira direta das estruturas raciais que datam do processo de colonização, e conferir à pessoa negra o estatuto de imagem invertida do sujeito branco. Daí, decorre uma outra característica do trauma, que é a sensação de fragmentação e de separação, advindas do alijamento do sujeito negro em relação ao mundo declarado branco. Isso se dá tanto em uma dimensão imaginária — basta ver a enorme quantidade de estereótipos existentes para representar o sujeito negro como preguiçoso, sensual, sujo, bandido, violento, malandro, perigoso — como real, haja vista o processo de ocupação das grandes cidades, que se deu a partir da marginalização espacial das pessoas pretas e pobres, com o estado se fazendo presente, na maior parte das vezes, apenas pela repressão policial.

No livro de Butler, a marca da fragmentação aparece no corte pelo qual se dá a interrupção dos fluxos temporais vividos por Dana, que pouco controle tem sobre eles, vendo-se jogada em situações extremas e em acontecimentos brutais, que exigem dela uma grande quantidade de energia física e subjetiva para serem contornados. E também, muito simbolicamente, esse elemento fragmentário se dá a ver em “Laços de Sangue” pela perda do antebraço de Dana, preso ao passado pelas mãos de Rufus, no momento em que ela retornava à sua época.

A mutilação de personagem serve como metáfora da ferida colonial que continua aberta, apesar das tentativas constantes de sua denegação. No Brasil, ela pode ser representada, por exemplo, pela linha de continuidade histórica que leva da senzala ao quarto da emprega. Nos Estados Unidos, pelo fato de a população carcerária ser majoritariamente negra, apesar de os afro-americanos representarem 13% do total de habitantes no país. Na Europa, pelo crescimento da extrema-direita e do discurso nacionalista como resposta a questão da imigração de árabes e muçulmanos para o continente.

O contato com o mundo branco deixa marcas indeléveis, ligadas aos sentimentos de perda e de inferioridade, levadas a efeito por uma estrutura que, se falha no processo de assujeitamento e subalternização do sujeito negro, pela produção de uma massa de trabalhadores precarizados, a ralé, segundo preconiza Jessé Souza, recorre sem pudor à máquina de guerra estatal, que vai deixando incontáveis corpos pelo caminho, obedecendo ao dito popular de que “bandido bom é bandido morto”.

É esse cenário que confere uma importância particular à história contada por Butler e também à tentativa de Grada de endereçar a questão do racismo por meio da psicanálise. Cada uma a seu modo, o que essas duas mulheres negras buscam é oferecer a possibilidade de que o sujeito negro vítima de racismo consiga nomear os significantes de seu sofrimento, os quais têm sua circulação interrompida no mundo social, por colocarem em risco o privilégio branco, suportado pelo silenciamento daqueles e daquelas a quem oprime. Em outras palavras, elas oferecem uma contribuição fundamental para que negros e negras, a partir de sua experiência singular, mas em laço com todos e todas que partilham a mesma condição, possam sair do lugar que lhes foi conferido pela opressão racial.

Em entrevista à revista Cult, a psicanalista negra Maria Lucia da Silva reforça a urgência da realização desse trabalho, ao dizer que

(…) é preciso olhar as teorias psicanalíticas à luz de um país em desenvolvimento, um país mestiço, e não a partir de um olhar europeu. É preciso discutir suas bases para que haja uma análise mais condizente com a realidade nacional. E, a partir daí, receber um não-branco em seu consultório e olhá-lo dentro de sua dimensão histórica. Não posso atender um negro sem levar em conta a dimensão do racismo ou o fato de que ele é alvo da polícia 24 horas. É preciso que os analistas ampliem sua escuta para que, ao ouvir essas histórias, possam fazer um link com a realidade das populações negras (ou indígenas, pobres, mulheres, LGBT), principalmente se o analista é homem e branco. É preciso que a psicanálise possa abrir o espaço de sua escuta para a diversidade, seja física, sexual, de gênero ou racial. Não dá pra aplicar uma teoria sem levar em conta o sujeito que está na sua frente. Além da história individual do sujeito, é importante pensar no racismo estrutural. Porque é o racismo que estrutura e que estruturou todas as instituições do Brasil. Pensar a psicanálise é pensar os lugares de poder que ela ocupa (SILVA, 2017).

Essa tarefa, que implica também a psicanálise, é ainda mais urgente em países como o Brasil, onde pretos e pardos são mais da metade da população, mas, ironicamente, representam a minoria das pessoas que procuram atendimento psicanalítico. Arrisco a dizer que não é porque não precisem. Como afirma Maria Lucia, talvez a questão tenha a ver, na verdade, com a necessidade de reconhecer que os espaços onde a psicanálise é praticada reproduzem, em alguma medida, privilégios, e que isso nos coloca como dever a ampliação dos lugares de escuta e de formação psicanalítica, a fim de espelhar a grande diversidade social existente em nosso país.

Isso implica, portanto, não só uma política de reconhecimento do sujeito negro pela psicanálise, mas também a criação de condições para que ele possa falar de dentro dela, isto é, como produtor de uma teoria psicanalítica. Nesse sentido, o reconhecimento confere a possibilidade de tratamento da pessoa negra, mas não é, por si só, suficiente. O real desafio que se coloca a nós, portanto, é a produção de espaços onde negros e negras possam ser não só pacientes, mas também psicanalistas.

1Relatório produzido pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) no ano de 2018 e que visa à compreensão do processo de violência no Brasil.

2Aqui, faço alusão ao conceito de representatividade social, mas entendendo que ele não pode ser a única chave de leitura para endereçar a questão do racismo. A representatividade é um ponto de partida fundamental, porém entendê-la como o núcleo da luta política contra o racismo seria incompatível, de um ponto de vista psicanalítico, com uma reflexão rigorosa sobre questões que dizem respeito, por exemplo, à relação entre aparência e realidade.

3Latifúndios monocultores baseados na mão-de-obra escrava, característicos da colonização americana.

4A palavra N faz referência, no texto, à expressão em alemão Negger ou Niggerem inglês, as quais diziam respeito a uma terminologia colonial e, portanto, pejorativa, para se referir a todos/as os/as habitantes da África sub-saariana.

5“The beautiful ‘Negerin’! Look how nice the ‘Neggerin’ looks. And the beautiful eyes that the ‘Neggerin’ has! And the beautiful skin that the ‘Neggerin’ has! I want to be a ‘Neggerin’ too!”.

6“…primitivity — animality — ignorance — laziness — dirt — chaos, etc.”

7Aqui é interessante perceber o deslizamento da cadeia significante “Neggerin” — “Negger” — “Nigger” — “finger”.

Referências

BUTLER, Octavia E.. Kindred. Boston: Beacon Press, 2003.

CASTILHO, Antônio Luiz Pereira de. Revisitando o primeiro modelo freudiano do trauma: sua composição, crise e horizonte de persistência na teoria psicanalítica. Revista Ágora (Rio de Janeiro), v. XVI, n.2, jul/dez 2013, p. 235–250.

CERQUEIRA, Daniel; LIMA, Renato Sérgio de.; BUENO, Samira; NEME, Cristina; FERREIRA, Helder; COELHO, Danilo; ALVES, Paloma Palmiere; PINHEIRO, Marina; ASTOLFI, Roberta; MARQUES, David; REIS, Milena; MERIAN, Felipe. Atlas da Violência 2018. Rio de Janeiro: IPEA, 2018.

FANON, Frantz. Piel Negra, Máscaras Blancas. Buenos Aires: Editorial Abraxas, 1973.

FAVEIRO, Ana Beatriz. A noção de trauma em psicanálise. Tese (Doutorado em Psicologia) — Pontífice Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

--

--

Letra 22
Letra 22

A Letra 22 quer tornar acessíveis temas importantes da psicanálise, método de investigação do inconsciente, inserindo-a nos debates políticos atuais.