Pode a psicanálise ter uma ontologia? Ser e direção do tratamento.

Letra 22
Letra 22
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7 min readNov 12, 2018
Imagem: Quero ser John Malkovich (1999)

Leonardo Araújo|Vitor Araújo

“No entanto, o ser é o ser, seja quem for que o invoque, e temos o direito de perguntar o que ele veio fazer aqui” — Jacques Lacan.

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Lacan não parte da ideia de uma subjetividade transcendente, posicionando a opacidade constitutiva dos objetos no núcleo do próprio conceito de sujeito. Tal reorientação, uma das possíveis consequências de sua teoria pulsional, relaciona-se a compreensão da morte como algo capaz de dissolver o poder organizador do Simbólico, levando, no limite, à própria ruptura do eu como formação imaginária. Isso acarreta não só importantes consequências ontológicas, mas também a reelaboração da estratégia clínica lacaniana.

Por essa razão, insistir no diálogo entre ontologia e psicanálise, seguindo as implicações clínicas dessa aproximação, longe de impossibilitar a dissolução das formações identitárias do eu, é o núcleo duro, a substância única, por assim dizer, da teoria psicanalítica.

Nesse sentido, este trabalho tem o objetivo de propor que a psicanálise não pode realizar o trabalho de desestruturar o imaginário sem, de antemão, entender o trabalho do analista a partir de uma posição ontológica. Ou ainda, estamos defendendo que Lacan não pode jamais entender os poderes desestabilizadores da pulsão de morte sem o auxílio de uma teoria do ser do negativo.

Visamos, portanto, explorar aqui alguns encaminhamentos conceituais da relação entre ontologia e teoria pulsional na clínica psicanalítica, partindo da hipótese de que a subjetivação da negação própria à pulsão de morte possui um lugar central na reflexão crítica sobre os protocolos de tratamento.

A falta-a-ser do sujeito é o que constitui o núcleo da clínica psicanalítica. Essa afirmação de Lacan (1998) nos ajuda a perceber o que está em jogo, em relação ao ser, no processo terapêutico: muitas vezes, quando ele aparece é como negado, como fruto de uma desidentificação que se volta contra o próprio sujeito e que aponta para o fato de que o reconhecimento do desejo, em alguns casos, só pode acontecer quando o ser “falta”.

Um exemplo famoso disso pode ser encontrado nas fantasias de espancamento relatadas por Freud no texto “Bate-se numa criança” de 1929. Nele, o psicanalista descreve o caso de pessoas, a maioria mulheres, que afirmam sentir prazer à imaginação de crianças apanhando. A princípio, ao serem provocadas por Freud, diziam se tratar de uma criança qualquer, só reconhecendo, em um segundo momento, tratarem-se delas mesmas. Há também o caso do “Homens dos Ratos”, em que o sujeito em análise, diante do horror pelo prazer sentido ao relembrar a cena de tortura descrita por um oficial, rejeita-o como não sendo seu.

Se há, portanto, um desejo cuja existência é reconhecida pelo sujeito como alheia a si, que posição ocupa esse quantum libidinal que extravasa, que não cabe em sua arquitetura subjetiva?

Para começar a responder a isso, é importante ter em mente, antes de tudo, que é a partir da força disruptiva do desejo que o sujeito se dá conta de que seu ser é, na verdade, seccionado, ou seja, que toda escolha de ser implica em uma perda de ser. Dito de outra maneira, há um ser que habita o inconsciente e ao qual o sujeito não tem acesso senão através de seus sintomas. É nesse sentido que, na lição 2 do Seminário 20, François Récanati vai afirmar “Vocês se lembram que, na última vez, Lacan caracterizou o ser como sendo uma secção de predicado” (p. 40, 2010).

Isso quer dizer, segundo Récanati, que todo predicado apresenta um ponto de incisão, mais ou menos como a linha pontilhada em algumas embalagens, e os cortes realizados a partir dele são o que dariam a ver a recorrência do ser. Tanto no exemplo das pacientes de Freud no “Bate-se numa criança” como no caso do “Homem dos Ratos”, o ponto de corte do predicado nas proposições “Esse desejo não é meu” ou “Isso não sou eu” é o que causa a clivagem entre o ser da consciência, abrigado em sua transparência fantasmática, e o ser que se apresenta como opacidade, resto ainda não simbolizável, o qual, por isso mesmo, só é passível de aparecer pela via da negação.

A ligação entre sujeito e predicado, entendida, na filosofia dialética, como o núcleo de resolução da problemática do ser encontra, portanto, uma forma distinta em Lacan. Inicialmente, poderíamos falar apenas de uma operação que não tem nenhuma forma possível de expressão no conceitual psicanalítico, ou seja, da conexão entre sujeito e predicado como fora-do-ser. Na verdade, essa amarração pode ser aproximada da relação entre dois amantes que, destinados a perseguirem uma identificação mútua, falham sempre em fazer Um. Sujeito e predicado, do mesmo modo, não podem jamais compor a fórmula “sujeito = predicado”. Esse é o momento em que Lacan se afasta da dialética, sendo, ao mesmo tempo, o ponto de aproximação mais fiel à racionalidade desta. Isso porque, embora sujeito e predicado permaneçam distantes um do outro, eles se articulam por meio da noção de objeto a. Essa mediação insere a impossibilidade dentro do conceito e não fora dele, como acontece, por exemplo, com as filosofias da diferença ou com as tradições da hermenêutica filosófica.

Qual o motivo para insistirmos na relação entre psicanálise e dialética?

Lacan, ao se valer de contribuições da dialética (lembremos dos diálogos deste com Kojève e Hyppolite), embebeu a psicanálise na substância dessa racionalidade, ao tentar dar uma forma ao negativo, conceito que é o coração da lógica das transformações em Hegel.

Nesse ponto surge uma questão central para nós: se não há reconciliação possível entre os dois termos, quais encaminhamentos poderiam ser tomados pela clínica psicanalítica, mais especificamente quanto ao final da análise? Pensamos que uma resposta possível seja a de que essa distância, representada pela impossibilidade da fórmula “sujeito = predicado”, constitua-se, de fato, na garantia da vitalidade dos processos de circulação dos desejos. Afinal de contas, Lacan não poderia admitir que significado e significante compusessem uma síntese, sem pagar o preço de uma circularidade viciosa.

A direção do tratamento, cujo nível operatório se dá na relação do analista com o ser (LACAN, 1998), deve ter no final da análise o momento de ocorrência da subjetivação de tudo que é refratário a um “processo de simbolização reflexiva, de rememoração” (SAFATLE, p. 9, 2005), os quais aparecem na clínica sob as categorias de “pulsão, Real e sinthome”. Em outras palavras, isso quer dizer que, em toda análise, há um ponto não passível de redução que se manifesta como negatividade, como algo que não pode ser nomeado. Isso não significa, como quer nos fazer acreditar Deleuze em sua crítica à psicanálise, que o máximo que ela teria a nos oferecer seria uma espécie de fatalismo masoquista, uma vez realizada a travessia da fantasia. E ainda que o filósofo tivesse razão, tal fatalismo não precisaria ser entendido como um aspecto eticamente reprovável da psicanálise. Afinal de contas, como nos afirma Britnel (2011), o masoquismo pode ser, na realidade, redentor. A autoflagelação é pensada, por ele, como um “lapso” nas narrativas hollywoodianas do período pós-guerra, manifesta, por exemplo, nos trabalhos do fotógrafo gay Robert Mapplethorpe, cujas imagens constantemente registram a experiência da laceração do ânus masculino encontram nesta a possibilidade da saída de uma expressão ortodoxa da masculinidade.

Masoquismo e pulsão de morte aparecem aqui como cúmplices. Ambos são entendidos como dissolução e recusa de permanência no terreno seguro das operações imaginárias.

Apesar do reconhecimento de sua importância, uma das finalidades da clínica é torná-las menos presentes nos mecanismos de decisão e posicionamento subjetivo. A orientação que visa desestruturar em parte a sutura que liga o eu às demandas que este exige busca, na verdade, revelar o sujeito que se encontra já operando, sem o saber, na construção da narrativa clínica.

Algumas considerações são possíveis diante do cenário apresentado.

A primeira delas é a de que é possível assumir uma ontologia e ao mesmo tempo rejeitar o caráter da identidade como substância ética da clínica. A influência da racionalidade dialética no pensamento lacaniano torna-o capaz de propor um horizonte que seja ao mesmo tempo irredutível ao eu e aberto à economia do negativo (operação subjetiva propriamente dita).

Em segundo lugar, o tratamento clínico tem um objetivo que não pode ser inteiramente destacado da ontologia a qual defendemos aqui. Se isso fosse verdade, seríamos forçados a acatar todas as críticas de Politzer à psicanálise quando este encontrou na teoria freudiana um rompimento definitivo entre a metapsicologia e os relatos clínicos. Caso seja razoável admitir tais críticas, a psicanálise estaria muito próxima aos mecanismos de tentativa e erro da ciência experimental. Não tendo a garantia de um núcleo ético, a psicanálise poderia acabar se comportando como um procedimento de tentativa e erro, a partir das particularidades da clientela atendida.

Ao mesmo tempo, não queremos com isso voltar a um horizonte normativo que prescreve os caminhos da clínica, como se se tratasse aqui do cumprimento de certos critérios e da previsão de seus resultados. A própria ciência contemporânea já não aceita tal posicionamento. Assim, uma solução possível seria pensar uma ontologia ou uma teoria do ser a partir de uma mínima determinação possível. Quando Lacan afirma existir na psicanálise apenas uma pulsão, a de morte, dissolvendo a dualidade fundada pelo gesto freudiano, não estaria ele, de certo modo, desenhando um contorno que orienta o tratamento analítico?

Isso quer dizer, portanto, que, se entendemos o saber produzido na psicanálise como não possuindo um mestre; e, ao mesmo tempo, que é necessário nos esquivarmos de uma teoria da multiplicidade da experiência sensível, então encontramos a pulsão de morte como o derradeiro destino da clínica.

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Letra 22
Letra 22

A Letra 22 quer tornar acessíveis temas importantes da psicanálise, método de investigação do inconsciente, inserindo-a nos debates políticos atuais.