Psicanálise e dinheiro (I)

Letra 22
Letra 22
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3 min readMar 7, 2019
OBNOXIOUS LIBERALS (1982) — Jean-Michel Basquiat

Leonardo Araújo

Apesar de a psicanálise ser bem mais acessível, hoje em dia, do que algumas décadas atrás, ainda se pode perceber a presença marcante, tanto nos espaços clínicos, como nos de formação, de um público muito específico — classe média e branco — detentor de capitais não só materiais, como simbólicos que o posicionam em um lugar social de privilégio.

Nesse cenário, para as populações periféricas, tanto no campo quanto nas favelas e comunidades situadas nos espaços urbanos do país, esse método terapêutico continua ou tendo sua existência ignorada — muitas vezes confundida com outros saberes como a psicologia ou a psiquiatria — ou sendo percebido como algo muito distante de suas realidades.

Quando se leva em conta a democratização do acesso à saúde mental, no contexto de precarização constante da vida — violência policial, extermínio da população negra e trans — e das relações de trabalho — flexibilização da CLT e a tentativa de levar a cabo uma reforma da previdência desastrosa — torna-se central refletir sobre a questão do dinheiro na psicanálise para além das posições instituídas sobre o tema, as quais, quando observadas de um ponto de vista mais amplo, podem acabar por reproduzir, inadvertidamente, privilégios estruturantes das relações sociais no país.

Segundo informações do DIIESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Econômicos), veiculadas em matéria do portal de notícias Uol (https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/01/08/salario-minimo-dezembro-dieese.htm), o salário mínimo no Brasil deveria ser de R$ 3.960,57, ou seja, aproximadamente quatro vezes mais que o valor atual, fixado pelo Governo Federal, no início do ano, em R$ 998,00.

Se levarmos em consideração o preço médio cobrado por sessão nos consultórios privados, comparecer a quatro sessões por mês, custaria ao/à trabalhador(a) comum praticamente metade de seus vencimentos, o que, na prática, torna quase inviável que esse sujeito considere a clínica psicanalítica como um espaço para falar de suas angústias.

Em que pese a garantia do acesso universal à saúde, inclusive mental, ser de responsabilidade do Estado, a desigualdade de classes no país e os males sociais que ela acarreta não devem ser desconsiderados por uma clínica eticamente voltada para as demandas do sujeito diante de seu sofrimento.

Com isso, não reivindico que sejam desconsideradas as reflexões metapsicológicas, desde Freud, sobre a importância do pagamento para o andamento da análise e sobre suas consequências transferenciais, na medida em que, de acordo com Quinet (p. 93, 2009)

O analista é depositário das cartas roubadas dos analisantes: cartas que não chegam a seu destinatário e que são transferidas ao analista. O peso da responsabilidade de ser o depositário dessas cartas é contra-balançado pelo dinheiro, pois ao fazermos pagar neutralizamos a responsabilidade da transferência, fazendo-a equivaler ao significante mais aniquilador de significação: o dinheiro.

O que está em jogo, na verdade, o que alguns e algumas psicanalistas parecem querer ignorar, é que a perda, representada pelo pagamento em dinheiro, ou seja, a dívida que o sujeito assume para a entrada no simbólico (QUINET, 2009), deve ser modulada com base em um conjunto de relações sociais com efeitos no real. Por exemplo, o luto sem endereçamento das mulheres negras e pobres por seus filhos — a priori elimináveis pela máquina necropolítica — vítimas da guerra às drogas e da violência urbana, tem produzido sintomas graves, sem que haja um acolhimento para suas demandas.

Não se trata, portanto, apenas de garantir, teoricamente, o direito de o pobre fazer análise, mas sim oportunizar espaços para a escuta de sujeitos socialmente precarizados, para os quais uma passagem de ida e volta — o custo atual em Fortaleza é de R$ 7,20 — pode representar uma perda capaz de fazer o dinheiro cumprir sua função: metaforizar a falta implicada no desejo (QUINET, 2009).

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Referências

Quinet, Antonio. As 4 +1 condições da análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

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Letra 22
Letra 22

A Letra 22 quer tornar acessíveis temas importantes da psicanálise, método de investigação do inconsciente, inserindo-a nos debates políticos atuais.