Psicanálise e Dinheiro (II)

Letra 22
Letra 22
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4 min readMar 22, 2019

Vitor Araújo

Escolher ser analisado implica no reconhecimento de que o espaço em que a escuta ocorre não opera a partir dos mesmos registros dos espaços imaginários da convivência cotidiana. Se no espaço do dia-a-dia, nos orientamos pela voz, pelo olhar, pelo toque, gesto e uma linguagem que implica noções ligadas ao sentido e à orientação por objetivos particulares ou coletivos, a análise rompe com a obrigatoriedade destas atividades para com o sentido. No entanto, pensar que o sentido não dita os caminhos do tratamento, não implica em afirmar que tudo é permitido. Dito isso, que as relações imaginárias não permanecem as mesmas quando o Eu adentra o espaço da análise para tornar-se sujeito, o que podemos dizer das funções que compartilham um espaço comum entre o lugar fora da análise e a análise propriamente dita?

O pagamento tem uma operação específica na análise. Ele deve ser um dos pontapés iniciais do tratamento a partir da ideia de que o que se paga com o dinheiro deveria retornar com a cura de um sintoma. Esses pressupostos, chamadas de condições de análise por Quinet, são requisitos do processo, índices imaginários que tornam uma análise possível. Isso porque Lacan mesmo nos disse que nosso acesso ao real, sempre indireto, se dá pelas falhas do imaginário e é na fala e na palavra que essa falta é experimentada.

O dinheiro, portanto, é, de início, um dado imaginário, mas também com uma operatividade no simbólico. Ele serve como um sistema de equivalência geral, o qual serve, ele mesmo, como medida das relações de troca. O dinheiro pode servir até, segundo Marx, para operar uma subversão qualitativa da sua relação de troca. Isso quer dizer que o dinheiro serve para trocar mercadorias que custam o equivalente ao trabalho que é investido na produção, mas também serve para comprar outras coisas que não estejam no circuito de valores e horas de trabalho. Como o dinheiro opera de acordo com uma autonomização do seu valor de troca, ele assume uma tarefa de flexibilização da sua função dentro da circulação, porque não há limites para aquilo que pode ser convertido em dinheiro. Logo tudo é comprável ou vendável. O dinheiro apaga todas as características qualitativas de uma mercadoria. O dinheiro pode comprar satisfação, afetos, honra, etc. Essa é a dimensão imaginária em operação no início da análise. O dinheiro pode comprar alívio ou felicidade e, uma vez ultrapassada essa distinção qualitativa entre as coisas, pode virar uma espécie de mercadoria universal dos contratos.

De qualquer forma, o dinheiro deve servir como uma aliança impossível na análise, mas segundo Pierre Martin, em seu livro Dinheiro e Psicanálise, pouco importa qual será o uso do dinheiro fora do espaço analítico. Mas o fato de que ele seja usado pelo analista para operar funções imaginárias e simbólicas pode fazer com que fique restrito à economia psíquica do analisante? Quer dizer, insistir na falta de função do dinheiro para o analista não poderia eclipsar que a economia psíquica do analista também está em jogo, uma vez que ao fim da análise, o dinheiro é usado pelo analista como parte de seus vencimentos? A psicanálise certamente procura subverter a lógica da aniquilação de diferenças operadas pelo dinheiro. Já diria Lacan que o equivalente dos significantes entre si consiste exatamente nas suas diferenças, não podendo haver uma relação causal entre significante e a referência feita pela palavra. Logo, essa relação de aniquilação das qualidades não opera no inconsciente. E mais ainda, se essa equivalência universal é a substância ética do dinheiro, a implicação do sujeito poderia ser facilmente convertida em moeda, uma vez que o dinheiro poderia comprar uma elaboração que cabe ao sujeito que fala e não ao operador de finanças fazer. No fundo, o dinheiro está presente na análise como uma relação que não pode ser quitada, a conta não deve fechar; o que se dá para o analista não é o mesmo que se recebe quando se sai do divã, porque o dinheiro, se usado a partir de sua função social, mascara a indeterminação operada pelo sujeito do inconsciente.

Se se cobra para que não haja a manutenção de uma dívida infinita, ou uma posição de gratidão ao analista que interfere na desconstrução de figuras imaginárias que sustentam os sintomas que o analisante veio descampar, o tratamento não deveria ser gratuito, ou, pelo menos, não deveria sê-lo para todos. Por que o pagamento se identifica com o dinheiro? A função de quitação poderia ser paga com outros elementos? E o valor? Quanto cobrar? É comum que analistas iniciantes tenham dificuldades de receber dinheiro, porque veem no recebimento de um determinado valor uma contradição do exercício do seu desejo, que faz parte do seu trabalho. Ou ainda, psicanálise deveria ser considerada como um trabalho?

No mais, a cobrança deve levar em conta não só aquilo que faz falta ao sujeito, mas aquilo que faz falta àquele sujeito. O pagamento, como parte do registro da transferência, deve obedecer a um tratamento igualmente analítico, assim como a escuta. Portanto, um analista poderia cobrar valores variados de acordo com sua clientela, ou até cobrar valores diferentes para cada sessão. Dizemos isso porque, mesmo que o cenário não seja o mesmo, já que temos analistas que trabalham de modo a oferecer a escuta em espaços diferentes daqueles da clínica para classe média ou alta, a psicanálise ainda esbarra no problema do acesso. O pagamento como um ato analítico e não somente como um ato de cobrança mecânica poderia incluir no circuito da formação de analistas uma dimensão diversa daquela encontrada atualmente.

Se diferentes pessoas têm acesso ao tratamento, isso vai permitir a produção de novas identificações com a psicanálise, possibilitando a formação de analistas com outras inscrições sociais e soprando novos ares na teoria como um todo.

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Letra 22
Letra 22

A Letra 22 quer tornar acessíveis temas importantes da psicanálise, método de investigação do inconsciente, inserindo-a nos debates políticos atuais.