Crise Para Quem?

Já sacrificamos demais para apaziguar os deuses do mercado

--

Há quanto tempo estamos em crise? Nem lembro mais da última vez em que vi uma notícia falando positivamente do desempenho econômico brasileiro, mas aparentemente a resposta é mais ou menos 62 meses. Ainda não voltamos ao nível de investimento de abril de 2014, mês no qual começou a crise econômica mais recente.

Com a perspectiva de uma recessão global no horizonte, consequência principalmente da guerra comercial entre EUA e China, fica difícil imaginar um cenário no qual o Brasil consiga um respiro. Atualmente já temos 13 milhões de desempregados (26,2% dos quais procuram emprego há mais de 2 anos) e índices de informalidade cada vez maiores, números que poderiam piorar muito caso a economia mundial passasse por um revés.

Entretanto, nem todos estão tão mal assim.

Dinheiro de sobra

O presidente do Itaú Unibanco, Candido Bracher, destacou em uma entrevista recente à Folha “um conjunto de elementos macroeconômicos que contribui para o cenário positivo”. Qual cenário positivo, você se pergunta? O lucro na casa dos R$ 7 bilhões que o banco apresentou só no segundo trimestre do ano:

Destacou ainda que o nível elevado de desemprego, hoje na casa de 12%, permite crescimento sem impacto sobre a inflação. “Quando tem fator de produção sobrando tanto, significa que podemos crescer sem pressões inflacionários”, afirmou.

“Isso deixa a situação macroeconômica do Brasil tão boa quanto nunca vi na minha carreira”, disse. Bracher tem experiência no setor financeiro, onde atua há quase 40 anos. “Tudo isso que me faz ser otimista no curto e médio prazo”.

De acordo com o Novíssimo Dicionário de Economia, o termo “fator de produção” pode dizer respeito à terra, ao homem e ao capital; na fala de Bracher parece ser evidente que o que está sobrando é o segundo item da lista, ou seja, trabalhadores. Mesmo com milhões de famílias desempregadas no país, uma crise que dura mais de 5 anos e uma conjuntura de polarização política crescente, de acordo com seu presidente, o Itaú Unibanco se encontra em uma situação digna de otimismo.

Se somarmos o lucro líquido dos bancos no ano de 2018, chegaremos à cifra de R$ 98,5 bilhões. Coincidentemente, no mesmo ano, o governo federal investiu uma quantia muito parecida, R$ 103,5 bilhões, na educação do país. Provavelmente em 2019 os bancos já serão capazes de assumir completamente o orçamento de educação sem perder um centavo sequer, ou ainda, de unir-se ao governo para subir o gasto com educação de R$ 0,50 por brasileiro para pelo menos R$ 1,00.

Se os valores absolutos não tiverem sido suficientes para convencer o leitor de que há algo de errado no nosso sistema, sugiro observar as tendências históricas. Desde 2014, o lucro dos bancos aumentou mais de 40% enquanto as despesas com educação caíram aproximadamente 11% (ambos ajustados pela inflação):

O lucro dos bancos cresceu mais de 40% desde 2014, enquanto o investimento federal em educação caiu 11% no mesmo período

Em setembro do ano passado, o governo anunciou a estimativa dos incentivos fiscais que pretendia conceder em 2019: impressionantes R$ 376 bilhões, sendo R$ 306,9 bilhões somente em renúncia de tributos. Pensando de novo em somas, se juntarmos os orçamentos previstos para educação, saúde e segurança pública, chegaremos apenas a R$ 228 bilhões; sendo assim, abandonando os incentivos fiscais, poderíamos mais que dobrar a despesa das áreas que talvez sejam o tripé de qualquer sociedade desenvolvida.

Longe de ser um bastião do marxismo, até o Banco Mundial sugeriu que o Brasil revisse esse tipo de política:

O Banco Mundial avalia que o teto de gastos […] permitirá retomar os superávits fiscais em 2022 e estabilizará a dívida pública em torno do ano 2026. A instituição propõe, porém, excluir os gastos com investimentos públicos do teto e a preservação dos gastos sociais, como o Bolsa Família.

O Banco Mundial também propõe reduzir os benefícios fiscais (renúncias de tributos para alguns setores da economia e subsídios orçamentários) para melhorar as contas.

Excluir investimentos públicos do teto de gastos e reduzir os benefícios fiscais? Retiro o que escrevi acima, na atual conjuntura política até o Banco Mundial seria taxado de reduto comunista.

O elefante na sala

Depois de tantos valores e porcentagens, resta ainda uma cifra que paira sobre todas as outras, o número que tem sido vendido para os brasileiros como a solução para todos os males pelos quais passamos: os R$ 1 trilhão dos cortes da previdência.

Apesar de a mídia ter sido majoritariamente convencida de que a reforma da previdência é necessária, alguns ainda tentam argumentar o contrário. As justificativas contra a reforma vão desde morais (as pessoas demorarão mais para se aposentar) até fiscais (a seguridade social como um todo não se resume à previdência), mas na minha opinião, pouco importa se a reforma é ou não é essencial, o que me chama a atenção é a narrativa construída ao redor desse problema.

O discurso público, durante os últimos meses, girou muito em torno de se a reforma passaria ou não pelo Congresso, de quanto ela poderia economizar, de quais seriam as suas consequências para os trabalhadores e assim por diante. Pouco foi dito, entretanto, sobre possíveis caminhos para manter a previdência do jeito que ela era, ou seja, de onde mais poderíamos tirar o dinheiro para financiá-la?

Essa pergunta é importante porque a sua resposta, muito mais do que servir de alternativa para a reforma da previdência, poderia servir de alternativa para o completo desmonte ao qual os nossos serviços públicos têm sido submetidos.

Paulo Guedes, atual ministro da economia, afirma que a reforma sendo votada economizará R$ 1 trilhão ao longo de 10 anos, então pois bem, onde mais conseguiríamos encontrar esse tipo de dinheiro? Como visto anteriormente, apenas 10 anos de lucro dos bancos ou meros 3 anos de benefícios fiscais seriam plenamente suficientes para sustentar o atual regime da previdência social e ainda garantir os 12 zeros supostamente tão necessários para a nossa economia.

Somos reféns

Insisto em dizer que nada disso é sobre a reforma da previdência, pois, quando enxergamos que o problema do nosso país não é falta de dinheiro, tudo (não só a previdência) entra em perspectiva.

A batalha contra a corrupção foi tão importante durante as eleições de 2018 que muitas pessoas preferiram votar em um candidato fascista do que em um candidato filiado a um partido corrupto. Uma frase simbólica desse movimento foi “o PT destruiu o Brasil”, mas quanto de fato o PT foi capaz de desviar em seus maiores escândalos? O mensalão englobou R$ 101 milhões, ou aproximadamente 2 dias de lucro do Itaú de acordo com as minhas contas. Ainda, mesmo assumindo que todo o petrolão tenha sido culpa do PT e que, na estimativa mais conservadora, R$ 42,8 bilhões tenham sido desviados, a sua cifra ainda não chega a 2 meses de incentivos fiscais do governo federal.

Comparando as cifras: valores desviado no mensalão e no petrolão vs. lucro dos bancos e benefícios fiscais em 2019

Não gostaria de ser lido como uma apologista da corrupção ou como um defensor do Partido dos Trabalhadores, mas sim como alguém argumentando contra à crença de que a sociedade precisa se desdobrar ano após ano para encontrar novas formas de economizar dinheiro.

O fato é que atualmente somos reféns das forças econômicas. Reflita por um instante na fórmula com que certas manchetes são escritas: dólar sobe após X ou Y faz a bolsa fechar em alta ou até mercado recua com medo de Z. O “dólar”, a “bolsa” e o “mercado” são tratados como agentes independentes e amorfos, respondendo às nossas decisões de forma imparcial, mas a realidade não poderia ser mais diferente.

A manchete parece sugerir que isso só aconteceria caso Lula fosse eleito

A bolsa de valores não vai muito além de um conjunto de pessoas comprando e vendendo ações de empresas de capital aberto, tentando antecipar as movimentações do mercado geradas pelas suas próprias atitudes. Entretanto, o capital financeiro tornou-se tão parasitário da economia global que, hoje em dia, pouco importa as cadeias produtivas de bens materiais continuarem funcionando perfeitamente se as ações das empresas envolvidas estiverem em baixa (ou até subindo mais devagar do que o esperado).

Dia 22 de agosto o governo anunciou que haveria um remanejamento do orçamento federal e que isso implicaria na educação perder quase R$ 1 bilhão. As justificativas são, como sempre, a necessidade de cortes na verba pública para que “a conta feche” no final do ano, a austeridade fiscal, o teto de gastos, ou qualquer coisa que o valha. O mercado regojiza com a aparente responsabilidade econômica exibida pelo governo, mas logo se decepciona com alguma crise no oriente e volta a esperar ansiosamente por mais boas notícias vindas de dentro do Banco Central.

O argumento que tento traçar aqui é que o governo não precisa tirar mais nenhum tostão da educação, da saúde ou da segurança (que, apesar de ter sido uma das maiores bandeiras do presidente na campanha, não recebeu praticamente nenhuma atenção até agora). Não acho que o Brasil seja um país tão eficiente quanto deveria, que a corrupção não seja um problema ou que nunca deveríamos nos preocupar com as flutuações do mercado; mas acho que basta da ditadura do setor financeiro.

O candidato do mercado é sempre aquele que parece oferecer menos resistência ao establishment das grandes instituições financeiras e, naturalmente, aquele cujos resultados positivos nas pesquisas fazem com que “a bolsa” mais se empolgue. Pouco importa se ele promete segurança pública, mas não a entrega, ou se ele jura que não vai cortar dinheiro da educação básica, mas o faz ainda no primeiro ano de governo. Para os bancos, faz pouca diferença se em 50 anos o Brasil será um grande deserto povoado por analfabetos; o nosso espólio já estará nos bolsos deles.

Para uma sociedade que se acha tão superior aos seus antepassados, tratamos o mercado como se ele fosse um deus vingativo que demanda sacrifícios constantes. Nossas fábricas não se recuperam? Sacrificamos a previdência. Nossos bancos lucram menos do que o esperado? Sacrificamos a educação. Gastamos uma quantidade imensa de energia humana tentando encontrar áreas das quais cortar mais verbas quando poderíamos simplesmente acabar com a mamata daqueles que detêm o poder do capital.

Uma metáfora melhor ainda é a história medieval do dragão que exige o sacrifício de virgens para que ele não queime a aldeia. No final a solução não é continuar procurando mais donzelas para entregar a ele, mas sim matar o dragão.

--

--