A Grande Onda (Katsushika Hokusai)

Este quadro não se chama “A Grande Onda”

O que uma gravura de 190 anos pode dizer sobre nós

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4 min readAug 3, 2019

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É quase impossível nunca ter visto este quadro antes. A Grande Onda, como ficou conhecida popularmente, é uma das mais famosas obras de Katsushika Hokusai (1760–1849), um dos maiores artistas das história do Japão. Ele foi um expoente do ukiyo-e (literalmente “retratos do mundo flutuante”), um estilo de pintura e xilogravura que explorava cenas cotidianas, de viagens e de paisagens com linhas fortes e espaços plano.

O ukiyo-e floresceu em Edo (antiga Tóquio) em um período no qual a classe mercante cresceu em poder. Durante o século XVII essa recém-nascida burguesia passou a frequentar teatros e “distritos dos prazeres”, estilo de vida que ficou imortalizado no termo ukiyo (“mundo flutuante”). Para atender as demandas de decoração destes novos clientes abastados, artistas da região de Edo passaram a utilizar técnicas de xilogravura chinesa para retratar as cenas cotidianas da vida urbana. O ukiyo-e foi um sucesso: as gravuras baratas e elegantes se tornaram comuns nas casas da classe mercante e, por consequência, viraram objeto de desejo da maior parte da população.

Mas o estilo acabou se tornando maior do que seus objetos artísticos. Hokusai, por exemplo, ganhou notoriedade fazendo retratos de mecenas ricos e, a partir de 1800, passou a desenvolver sua técnica para outros propósitos.

Um Detalhe

Em 1831, Hokusai terminou o que seria sua obra mais famosa e uma das imagens mais conhecidas do mundo todo (ela é inclusive um emoji em algumas plataformas 🌊). De acordo com a descrição do Museu Britânico, a gravura retrata “pescadores agachados em três canoas, com uma onda gigantesca prestes a engoli-los” e marca o ponto alto do “processamento criativo de aprendizados sobre perspectiva espacial que deriva da arte europeia”. Pelo primor técnico e pela impressionante combinação de técnicas e influências, A Grande Onda foi uma gravura extremamente popular desde a sua primeira exibição.

Provavelmente cunhado por entusiastas europeus, o nome A Grande Onda, entretanto, é posterior à obra, e esconde o principal objeto sendo retratado pelo artista. Seu verdadeiro título é Sob a Onda de Kanagawa.

Observando atentamente a gravura, o título parece se referir aos pescadores sendo completamente subjugados pelo poder da natureza, encolhidos em preparação para o impacto da grande onda. Mas o drama humano também não é o tema desta obra. O que está sob a onda de Kanagawa é o Monte Fuji.

Sob a Onda de Kanagawa é na verdade parte de uma coleção de xilogravuras intitulada Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji, composta por 46 obras (36 originais e mais 10 posteriores) cujo verdadeiro tema é a maior montanha do Japão. Na esquerda superior, o artista fez uma inscrição identificando seu trabalho: “Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji / Alto-mar em Kanagawa / Sob a onda”. Assim como neste caso, a maioria das gravuras da coleção não coloca o Monte Fuji no plano principal da ação, mas sim como um detalhe ao fundo.

A Rota Marítima da Província de Kazusa (Katsushika Hokusai)
Vista do Campo Fujimi Fuji em Owari (Katsushika Hokusai)

Observe com atenção as imagens acima. Se fosse encarregado de pintar trinta e seis paisagens diferentes do Monte Fuji, como você as faria? Creio que a maioria de nós tentaria circundar a montanha em busca de seus melhores ângulos e suas melhores iluminações; nos afastaríamos da montanha para tentar retratá-la em seu contexto, mas sempre a tendo como objeto central das obras. É importante lembrar que o Monte Fuji é considerado sagrado pelos japoneses, além de ser um símbolo nacional e de beleza, então suas gravuras ainda precisariam honrar o nome da montanha.

A solução de Hokusai é, na minha opinião, uma das melhores possíveis: ao invés de colocar o Monte Fuji no centro de todas as pinturas, o artista o retrata quase como um observador da vida no Japão. No caso de Sob a Onda de Kanagawa, o primeiro plano é ocupado por uma cena da eterna luta do Homem contra a Natureza, mas, ao fundo, podemos ver o Monte Fuji impassível, imóvel, imperturbável pelo combate se desenrolando à sua frente.

A montanha adquire desta forma um caráter quase eterno e onipresente. As pessoas vão e vêm, as flores nascem e morrem, os mares sobem e descem, mas a única testemunha indiferente ao poder do tempo é o Monte Fuji.

O que isso pode nos dizer sobre a nossa atitude perante a vida? O que verdadeiramente importa, a onda ou a montanha, a fúria momentânea ou os nossos valores? O que é mais duradouro, a vida dos pescadores ou a montanha, o sorriso ou a felicidade? Como você lembra das pessoas que importam, algumas fotos com elas ao centro ou uma vida inteira com elas em seu zelo? Às vezes o que vale à pena não está no primeiro plano.

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