A Balsa da Medusa (Théodore Géricault)

Fale com um fracassado

Quanto você pagaria para assistir a palestra de um empreendedor malsucedido?

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4 min readJul 6, 2019

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A pergunta do subtítulo parece um pouco provocativa e sem sentido, mas mesmo assim tente pensar sobre o quanto valeria o conselho de uma pessoa que não conseguiu atingir seu objetivo. Influencers digitais sem seguidores, escritores sem nenhuma publicação, startupeiros que voltaram a ser funcionários e assim por diante.

O papel do fracasso

Autoajuda parece estar para coaching assim como pequenas empresas estão para startups. Ambas essas culturas contemporâneas têm suas origens em fenômenos nada excepcionais e com pessoas majoritariamente bem-intencionadas, mas foram paulatinamente sendo dominadas por vigaristas, aproveitadores e enganadores, tipos quase tão antigos quanto a própria humanidade. O “empreendedor de palco” é simbólico nesse sentido porque seu principal empreendimento é ensinar os outros a empreender; um ouroboros de sapatênis. E é verdade que nem todos são assim! Entretanto, parafraseando o poeta Wesley S. (1990 -), pode ser que 1% dos coaches não sejam coaches de coaching, mas aqueles 99%…

As comunidades de empreendedorismo e coaching têm muitos pontos em comum, como o amor por tudo que é hype e uma entonação de voz bastante irritante, mas um dos que mais se destaca é o lugar dado ao fracasso. Uma expressão comum no meio startupeiro é “fail fast and fail often”, que normalmente quer dizer notar um fracasso o mais rápido possível e “pivotar” (trocar a proposta da empresa) de modo a evitar a falência. Essa ideia, no entanto, esconde o fato de que o verdadeiro fracasso, o fracasso que deve ser evitado a qualquer custo, é deixar de empreender.

Sendo assim, o fracasso é visto por essas pessoas como uma ferramenta de aprendizado, como uma oportunidade para recomeçar, como uma história engraçada a ser contada na sua biografia, mas nunca como um fim em si próprio. Isso porque o produto sendo vendido por elas não é a possibilidade de sucesso, é a certeza de sucesso, de um sucesso tão puro que até o fracasso mais espalhafatoso não pode passar de um mero contratempo.

A cultura do coaching especificamente, que parece estar se alastrando pelos grandes centros urbanos como fogo de palha, gira muito em torno de “receitas para o sucesso”: conselhos guardados às sete chaves por pessoas extremamente bem-sucedidas e que podem ser seus por uma pequena taxa mensal de R$ 10,99…

Aviões da Segunda Guerra

Durante a Segunda Guerra Mundial, o estatístico Abraão Wald foi encarregado de minimizar o numero de bombardeiros abatidos por fogo inimigo. Outros pesquisadores já haviam conduzido um estudo na época com os aviões que regressavam dos campos de batalha e recomendaram que fosse reforçada a fuselagem dos aviões nas áreas que exibiam mais buracos de balas. Wald, no entanto, notou que o estudo tinha sido realizado apenas com as aeronaves que sobreviveram às suas missões, ou seja, não consideravam aviões abatidos. As áreas com mais buracos nos aviões sobreviventes eram, portanto, aquelas nas quais maior dano poderia ser suportado sem causar uma falha fatal. Desta forma, o estatístico propôs que fossem reforçadas as áreas nas quais os aviões estudados não possuíam nenhum furo, porque elas seriam justamente as regiões que, se atingidas, causariam a queda da aeronave.

As regiões danificadas dos aviões sobreviventes indicam onde eles podem ser atingidos sem falha total

O raciocínio dos antecessores de Wald é, apesar de errado, bastante intuitivo: todos os aviões que regressavam estavam extremamente danificados em alguns pontos, logo isso deveria indicar que os aviões abatidos haviam sido ainda mais atingidos nas mesmas regiões. Essa lógica falha tem o nome de viés de sobrevivência (um tipo de viés de seleção).

Justamente por ser tão comum, não faltam exemplos de opiniões contaminadas por esse viés. Diógenes, que acreditava que os deuses não se importavam com as vidas humanas, teria sido confrontado por um amigo quando defronte de uma séries de pinturas que retratavam sobreviventes de naufrágios. Seu colega alegava que o fato de tantas pessoas terem perseverado seria evidência de que os deuses as estariam salvando, mas Diógenes argumentou que muitos mais não teriam sido salvos e que, por isso, não puderam ter seus rostos pintados.

E é aqui que Wald e Diógenes se encontram com coaches e empreendedores. Como já discutido, a busca incessante pelo sucesso dessas duas culturas faz com que os fracassos não sejam considerados eventos por si só, mas sim como um contratempo ou um acaso. Essa mentalidade é terreno fértil para o viés de sobrevivência, basta observar alguns títulos de livros populares nessas comunidades: 7 Hábitos de Pessoas Altamente Eficazes, Nação Empreendedora, Pai Rico Pai Pobre, etc.

Prestar tanta atenção nos ensinamentos daqueles que fracassaram quanto nos daqueles que foram bem-sucedidos parece extremamente contraintuitivo, mas é esse o ensinamento por trás da história dos aviões da Segunda Guerra. Viés de sobrevivência é o foco nas pessoas ou coisas que resistiram a um certo processo de seleção sem considerar aqueles que não resistiram, podendo levar a crenças otimistas demais justamente pela rejeição dos fracassos.

O que poderiam nos ensinar os ex-empreendedores? Talvez largar a faculdade não tenha funcionado para eles, talvez o dinheiro investido em suas startups nunca tenha retornado, talvez fracassar não seja uma escolha, talvez existam muito mais ex-empreendedores do que empreendedores, tudo aquilo já dito pelo @startupdareal.

Pode ser que devêssemos estar pagando fortunas por palestras de “fracassados”.

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