O Decálogo de ZapZap

Um exemplo antigo de fake news, como o WhatsApp se tornou um disseminador de desinformação e uma estética de esquerda

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O Decálogo de Lênin é supostamente um documento escrito pelo revolucionário soviético descrevendo seu plano em dez pontos para “derrubar uma sociedade”. O único problema é que ele é falso. Inventado. Fake news. Mas isso não o impediu de ser amplamente divulgado por perpetradores da direita. Ao procurar pelo termo no Google, o primeiro resultado tem o seguinte título: Os 10 mandamentos de Lênin: Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência.

Não sei o que é pior: a montagem ou a apologia à Ditadura

Um usuário mediano de WhatsApp que tenha sobrevivido à eleição de 2018 deve ser capaz de reconhecer o tipo de linguagem utilizado na “manchete”. Pronto para ser compartilhado pelo seu tio reacionário, o texto é curto, não apresenta absolutamente nenhuma fonte e ainda vem acompanhado de uma montagem que traz Lênin em uma pose impositiva perfeita para o aplicativo de mensagens.

A esse ponto do discurso político brasileiro, qualquer imagem que pretenda glorificar a Ditadura Militar vai direto para a caixa de spam do meu cérebro. Entretanto, acho que de vez em quando vale a pena destrinchar esses engôdos com o objetivo de entender o que está por trás deles.

Os dez mandamentos

Tal qual um horóscopo, o Decálogo de Lênin pode ser esticado para se aplicar a essencialmente qualquer governo. Os dez pontos nunca serão atendidos completamente, mas podem facilmente ser afrouxados para permitir uma falácia da bola de neve.

Como o texto não tem uma fonte oficial, cada versão com a qual me deparei era ligeiramente diferente das outras e, sendo assim, tentei consolidá-las através das suas semelhanças. Abaixo seguem os dez mandamentos para derrubar uma sociedade capitalista:

1. Corrompa a juventude e dê-lhe completa liberdade sexual;

2. Infiltre e depois controle os veículos de comunicação de massa;

3. Divida a população em grupos antagônicos, incitando-os a discussões por causa de assuntos sociais;

4. Destrua a confiança do povo em seus líderes;

5. Fale sempre sobre Democracia e em Estado de Direito, mas, tão logo haja oportunidade, assuma o poder como um ditador;

6. Colabore para o esbanjamento do dinheiro público; coloque em descrédito a imagem do país, especialmente no exterior e provoque o pânico na população por meio da inflação;

7. Promova greves, mesmo ilegais, nas indústrias vitais do país;

8. Promova distúrbios e contribua para que as autoridades constituídas não as coíbam;

9. Contribua para a derrocada dos valores morais, da honestidade e da crença nas promessas dos governantes. Infiltre outros partidos, obrigando-os a votar somente no que for de interesse da sua causa;

10. Procure catalogar todos aqueles que possuam armas de fogo, para que elas sejam confiscadas no momento oportuno, tornando impossível qualquer resistência à revolução.

Depois de apresentar o Decálogo, acho importante frisar que ele não passa de uma invenção da primeira metade do século XX. Já em janeiro 1983, o Washington Post publicou uma matéria desmentindo um discurso do então presidente americano Ronald Reagan no qual ele falava sobre “os dez mandamentos de Nikolai Lênin”. De acordo com a escritora do artigo, eles são uma “ficção de origem incerta”.

“Os ‘Dez Mandamentos’ de Lênin são igualmente apócrifos, aparentemente uma ficção de origem incerta frequentemente encontrada em textos conservadores.”

Na minha opinião, os “dez mandamentos” são uma ótima janela para entender o discurso e a estratégia de mídia da direita radical (seja ela bolsonarista ou mera facilitadora). Eles são uma invenção que acaba por provocar medo em leitores que já estão acostumados a compartilhar um texto sem se importar com a sua veracidade; um ataque a um fantasma esquerdista cujo único propósito é agitar o campo conservador.

Ao longo do Decálogo, fica evidente um certo tom de red scare: “promova distúrbios”, “destrua a confiança”, “divida a população”… Estes princípios parecem ter sido escritos deliberadamente de modo a provocar pânico no leitor. Temos até um vislumbre do clássico “comunistas comem criancinhas” no primeiro mandamento.

Algo que sempre mantenho em mente ao ler esse tipo de texto é no quão direto ao ponto e honesto ele é: não existe a necessidade de procurar por segundas intenções, está tudo lá escancarado. Mesmo que Lênin de fato acreditasse em tudo isso e tivesse escrito uma cartilha para a destruição do Capitalismo, dificilmente os seus pontos seriam tão abertamente assustadores.

Enquanto isso, no mundo real, os mal-intencionados costumam acobertar seus verdadeiros objetivos; nos Estados Unidos o nome para isso é dog-whistle politics (“política do apito de cachorro” ou “criptopolítica”, referência ao fato de que apenas os iniciados em uma certa ideologia serão capazes de entender o que está de fato sendo dito). Vide, por exemplo, o termo em inglês para “diretos dos estados”, que na realidade é utilizado como código para segregação e racismo institucionalizados.

Se a carapuça serve…

É fácil imaginar como algum reacionário pode tentar aplicar a cartilha do Decálogo aos governos do PT, mas, como dito anteriormente, é trivial manipular esses pontos de modo a encaixá-los em qualquer outro contexto.

Tomemos o governo Bolsonaro. Podemos dizer que ele tem uma política de antagonismo ferrenha (item 3), vem destruído nossa imagem no exterior (item 6), está contribuindo para a derrocada do valor da honestidade (item 9), tomou posse com um discurso democrático mas tem agido cada vez mais de forma ditatorial (item 5) e empregou como seu ministro uma das pessoas que mais destruiu a confiança em nossos líderes (item 4). Como um verdadeiro seguidor de Olavo de Carvalho, ainda é possível dizer que os outros mandamentos já foram atendidos (mentir) ou que eles serão atendidos em um futuro próximo (bola de neve).

Trazendo a linha de raciocínio de volta para o WhatsApp, o Decálogo de Lênin, apesar de ser bem mais antigo que o aplicativo, traz consigo quase um arquétipo do conteúdo compartilhado em listas de mensagens. Ao que me parece, as pessoas acreditam em coisas absurdas não porque elas são convincentes, mas porque elas querem acreditar ou mesmo porque não se importam com a veracidade da informação.

Acusar o PT de controlar os veículos de massa é uma mentira quase inconcebível (basta lembrar que pouco tempo atrás a Globo era chamada de golpista por ter construído todo o clima político para o impeachment da ex-presidente Dilma), mas mesmo assim esse se tornou um grande argumento da direita contra qualquer tipo de jornalismo minimamente responsável.

Hoje em dia os bolsonaristas cancelaram todos os jornais, todas as revistas (incluindo a Veja) e a maioria dos canais de TV, restando apenas os defensores incondicionais das atitudes do presidente. Encurralados por notícias negativas, os defensores de Bolsonaro se dividem em alguns grupos: os com medo de admitir o erro, os que preferem isso a um governo corrupto (leia-se de esquerda), os que de fato gostam de autocratas, os conservadores nos costumes, etc.

E, na minha opinião, é justamente por causa de peças como o Decálogo sendo compartilhadas em massa diariamente que esses núcleos de resistência podem continuar existindo.

Só um aplicativo

Notícias falsas existem há muito tempo, mas recentemente houve um aumento considerável na produção desse tipo de conteúdo. Não importa o quanto a Globo tenha passado pano para a Ditadura, ela nunca fez isso de forma tão escancarada e ampla quanto o que podemos ver hoje em dia nas redes sociais.

Nos Estados Unidos, a vitória de Donald Trump na eleição de 2016 foi largamente atribuída ao compartilhamento de fake news no Facebook. Por causa da internet e dos smartphones, hoje em dia temos mais consumidores de informações do que em qualquer período da história da humanidade: na América do Norte, por exemplo, tecnologias antigas como o rádio FM têm essencialmente a mesma taxa de adoção que o smartphone (em torno de 90%). A internet móvel é algo muito novo, mas que mesmo assim foi capaz de permear todas as esferas sociais.

Diferentemente das mídias tradicionais (jornal, rádio e TV), a internet possui uma barreira ínfima para a publicação de conteúdo. Qualquer um com um celular consegue escrever anonimamente um texto com o potencial de alcançar milhões de pessoas, o que significa que praticamente qualquer indivíduo pode ser um vetor de notícias falsas.

No Brasil, calcula-se que o Facebook tenha tido um impacto menor no voto da população. O WhatsApp (e sua funcionalidade de redirecionamento de mensagens) permite que uma imagem ou texto seja compartilhado diretamente para os contatos de um usuário; e, diferentemente dos posts do Facebook, não é possível adicionar comentários a uma mensagem, fazendo que ela seja consumida infetada pelas opiniões de outros leitores.

É sabido que as pessoas confiam mais naquilo que elas recebem de conhecidos e para entender isso basta notar a diferença exponencial entre o valor de propagandas soltas e recomendações de influenciadores nas redes sociais. Sendo assim, um engodo compartilhado via WhatsApp apela a múltiplas facetas da nossa psicologia: confiança em amigos, apelo para raiva e medo, concordância com opiniões prévias, conteúdo breve e de fácil consumo.

Sendo assim, conteúdo com o Decálogo vai longe nas listas de mensagens, permitindo que, por exemplo, executivos pró-Bolsonaro comprem pacotes de disparos e tenham um efeito significativo na eleição.

O que fazer?

Dizer que a esquerda precisa fazer mais trabalho de base já ser tornou um clichê nos tempos de hoje. Além disso nunca ter sido abandonado, não faz sentido esperar uma insurgência progressista vinda da classe trabalhadora enquanto ela estiver sendo exposta a propagandas fascistas diariamente através de seus aparelhos digitais mais preciosos.

Parafraseando Natalie Wynn, existem momentos para razão e momentos para espetáculo. Em certos períodos, ideias e soluções conquistam as mentes, enquanto em outros, estéticas e sofismos. Não estamos em Atenas, estamos em Roma.

Isso não é um argumento a favor da Realpolitik, mas sim um pequeno manifesto por uma estética de esquerda. Em uma época em que mentiras deslavadas como o Decálogo de Lênin fazem multidões se afastarem do campo progressista, é essencial que nós nos organizemos com isso em mente.

“À mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer honesta.”

O ditado acima (ignorando o sexismo), tem uma mensagem sutil por trás. Se você estiver envolvido com uma figura famosa ou importante, é necessário evitar atrair atenção negativa ou qualquer suspeita; neste caso, a Esquerda é a figura de relevância e nós somos aqueles associados a ela. Não basta estarmos “certos”, isso não importa na era do WhatsApp; nós precisamos parecer certos.

Isso quer dizer que, enquanto a população no geral associar a esquerda somente a cancelamentos no Twitter, ela nunca sentirá que o pensamento esquerdista merece atenção. Pessoas cometem atos horríveis e muitas vezes merecem sofrer consequências reais por eles, mas as respostas para isso têm de ir além de textos enormes “cancelando” o culpado.

A esquerda faz coisas incríveis e nunca precisou mentir sobre seus feitos, mas, mais do que isso, ela carece de aprender a vender esses triunfos… Com montagens ruins e textos de WhatsApp se necessário.

Os doze mandamentos

Como resposta ao Decálogo de Lênin, eu trago O Código Moral para o Construtor do Comunismo. Esse texto (diferentemente do primeiro) é verdadeiro e foi aprovado no 22º congresso do Partido Comunista da União Soviética em 1961 como parte do programa partidário. Ele pretendia ser um conjunto de doze regras morais que todo membro do Partido Comunista deveria seguir. Abaixo trago a minha tradução do Código:

1. Lealdade ao Comunismo, e amor pela pátria socialista e outros países socialistas;

2. Trabalho consciente pelo bem da sociedade: aquele que não trabalha, não tem de comer;

3. Cuidado pela propriedade coletiva, além da multiplicação dessa propriedade;

4. Elevado sentido de responsabilidade social e intolerância à violação dos interesses sociais;

5. Coletivismo e companheirismo: um por todos e todos por um;

6. Relações humanas entre seres humanos: uma pessoa é uma amiga, uma camarada e uma irmã para outra;

7. Honestidade, pureza ética, e simplicidade e modéstia nas vidas pública e privada;

8. Respeito mútuo pela família e carinho pela criação das crianças;

9. Intolerância à injustiça, ao parasitismo social, à deslealdade, à especulação e à ganância;

10. Amizade e irmandade com todas as nações da URSS, intolerância a todo preconceito racial e nacional;

11. Intolerância aos inimigos do comunismo, paz e liberdade dos povos do mundo;

12. Solidariedade fraterna todos os trabalhadores de todos os países e nações.

Este texto me toca profundamente. Não só ele cobre grande parte das demandas sociais relevantes à atualidade (preconceito, desigualdade, etc.), mas também aborda assuntos que hoje em dia foram completamente colonizados pela direita como “carinho pela criação das crianças”, “trabalho consciente”, “pureza ética” e assim por diante.

Esse é o potencial das ideias que estão no cerne da filosofia progressista: mensagens de igualdade, respeito, irmandade, honestidade, solidariedade, paz, liberdade, responsabilidade social, dentre muitas outras não perdem a relevância com o tempo (diferentemente da “corrupção da juventude” que já fede a naftalina).

Intolerância à injustiça, ao parasitismo social, à deslealdade, à especulação e à ganância

Repare bem no “dodecálogo” e na imagem acima. Salvo as referências à finada União Soviética, eles poderiam fazer parte de uma campanha política contemporânea sem soar demasiadamente antigos. Note que isso não é um argumento a favor da estética soviética em si (provavelmente as pessoas hoje em dia já são muito avessas a essa linguagem visual), mas sim à sua estratégia de comunicação.

Nessa linha, qual é a estratégia de comunicação da esquerda atual? Textão de Facebook, lacração no Twitter, … Obviamente isso não é só o que a esquerda faz, muito pelo contrário, mas esses são os elementos comuns da dialética progressista. E a direita? Dado que os conservadores dominam as mídias tradicionais (por mais que eles se recusem a admitir isso), o WhatsApp, o YouTube e a ala mais mainstream do Facebook, as estratégias deles podem ser muito mais amplas: desde memes de baixa qualidade, até a pauta do debate como um todo.

E essa é a grande consequência da desarticulação midiática da esquerda: o quanto ela precisa se esforçar só para responder as insanidades proferidas pelos articuladores da direita. É claro que é mais fácil produzir conteúdo quando você está claramente mentindo, mas isso não é desculpa para a nossa incapacidade de dominar a pauta pública. Enquanto não tivermos, portanto, uma unicidade dialética e/ou estética, não seremos capazes de nos sobressair ao barulho.

Sendo assim, concluo meu texto com um pedido pela atenção à estética. Assistam os vídeos de Sabrina Fernandes, e ouçam Revolushow e Viracasacas; entendam a diferença entre estar certo e parecer certo; produzam conteúdo e compartilhem no WhatsApp sem medo. Como a verdade está do nosso lado, a aparência será só a cereja no bolo.

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