Foto por elCarito no Unsplash

Ulisses e seu celular

Um herói de três mil anos pode nos ajudar a usar menos o Instagram

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Time Well Spent

O conceito de “tempo bem gasto” (ou time well spent em inglês) é capitaneado pela ONG americana Center for Humane Technology. O trabalho desse instituto envolve, dentre muitas outras coisas, reverter o que eles chamam de “crise da atenção digital”.

De acordo com o CHT, telefones celulares e redes sociais são desenvolvidos com um principal objetivo em mente: capturar o máximo possível a atenção dos usuários. As métricas utilizadas internamente pelas gigantes da tecnologia quase sempre envolvem o tempo que a pessoa passa usando um produto; mais tempo no Facebook implica que ele poderá te exibir mais propagandas. Em 2018 o Facebook faturou US$ 16,6 bilhões [1] com propagandas, então é seguro dizer que o plano está funcionando.

Os cofundadores do CHT, Tristan Harris e Aza Raskin, sabem muito bem o quanto essas práticas podem prejudicar a atenção humana. Harris é um cientista da computação que trabalhou na Google como especialista em ética do design, enquanto Raskin inventou nada mais nada menos do que a rolagem infinita, manifestada no Facebook, Instagram e Twitter como um feed que nunca acaba.

Em 2018 o Facebook faturou US$ 16,6 bilhões com propagandas, então é seguro dizer que o plano está funcionando.

Essa corrida pela atenção das pessoas tem resultado, nas palavras deles [2], em “vício, isolamento social, indignação, desinformação e polarização política”. Longe de problemas desconexos, eles são parte de algo chamado “downgrading humano”:

  • Mais deficit de atenção;
  • Valorização da indignação ao invés do diálogo;
  • Crianças viciadas;
  • Polarização do processo democrático e
  • A ideia de que a vida é uma competição de likes.

É importante ressaltar que o CHT não é contra a internet ou contra o uso de celulares. Eles propõem apenas que os incentivos mercadológicos atuais motivam práticas cujas consequências podem ser ruins para os indivíduos e para a sociedade. Desta forma eles publicam uma cartilha para ajudar qualquer um a assumir controle sobre suas mídias digitais.

Odisseia

Ulisses e as Sereias (H. J. Draper)

Um breve parêntese sobre literatura antiga. A Odisseia foi supostamente composta pelo escritor grego Homero no oitavo século antes de Cristo e narra o retorno de Ulisses (ou Odisseu) para Ítaca depois da Guerra de Troia. A viagem de Ulisses leva dez anos, ao longo dos quais ele e seus companheiros se deparam contra inúmeros empecilhos. Um deles são as sereias.

Nesse episódio, quando seu navio se aproximava da ilha das sereias, Ulisses ordenou que sua tripulação tapasse seus ouvidos com cera para que eles não pudessem ouvir o canto das criaturas que, de acordo com a lenda, faria com que eles se atirassem ao mar. Somente ele manteve sua audição intacta, mas amarrou-se ao mastro e proibiu a todos que o soltassem mesmo que implorasse para tal. Desse modo, o navio passou pela ilha das sereias e Ulisses ouviu o canto sem perder a vida.

Então aos companheiros disse, aflito no coração:
“Ouvi meu discurso, companheiros, mesmo sofrendo.
Amigos, não carece que só um ou dois conheçam
os ditos divinos que Circe me anunciou, deusa divina.
Assim eu falarei, para que, cientes, ou morramos
ou, evitando a perdição da morte, escapemos.
Das Sirenas prodigiosas, primeiro, mandou
que evitemos sua voz e o prado florido.
Mandou ainda que só eu a voz ouvisse; pois a mim,
com nó apertado prendei, para, imóvel, eu aí mesmo quedar,
reto no mastro, e nele fiquem amarrados os cabos.
Se eu vos suplicar e solicitar que me soltem,
que então vós com mais laços me amarreis”.

A lição de Ulisses é valiosa: às vezes precisamos nos cercear para não sermos vitimas das nossas próprias fraquezas. O paralelo é bastante dramático, mas serve como uma bela alegoria clássica.

O CHT fornece em sua cartilha [3] oito conselhos para aqueles que querem se amarrar metaforicamente ao mastro de seus celulares:

  1. Desligar notificações que não sejam de pessoas;
  2. Ativar o modo preto e branco;
  3. Manter na primeira tela apenas ferramentas;
  4. Acessar os outros aplicativos por meio da busca;
  5. Carregar o aparelho fora do quarto;
  6. Deletar os aplicativos de redes sociais;
  7. Enviar mensagens de áudio ao invés de digitar e
  8. Usar emojis para reações rápidas.

Para a maioria das pessoas, as cinco primeiras sugestões são as melhores. Desabilitar as notificações de aplicativos como Facebook e Instagram não tem praticamente nenhum ônus porque quase nada oriundo deles é urgente, diferentemente de um contato via Telegram ou WhatsApp que normalmente é muito mais relevante. Já remover os aplicativos viciantes da primeira tela e utilizar a busca do celular para encontrá-los adiciona atrito ao habito de abrir o celular e ir direto para uma rede social.

As sugestões mais úteis no entanto são ativar o modo preto e branco e carregar o aparelho fora do quarto. As paletas de cores utilizadas pela maioria dos aplicativos, bastante saturadas e chamativas, atraem a atenção humana da mesma forma que embalagens de doces; sendo assim, colocar o celular no modo preto e branco mantém toda a sua funcionalidade removendo apenas as cores mais distrativas. Carregar o aparelho fora do quarto durante a noite previne que, em um momento de insônia e fraqueza, o feed do Instagram se torne exponencialmente mais atraente (e acabe dificultando ainda mais o sono).

A sexta dica é definitivamente a mais efetiva, mas exige uma determinação muito grande. A melhor forma de usar menos as redes sociais é acessando-as somente pelo computador, removendo esses pequenos buracos negros de atenção da ponta de nossos dedos.

Assim como o canto das sereias para Ulisses, aplicativos sociais são algo extremamente belo. Mas se não tomarmos cuidado, nos atiramos ao mar por eles.

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