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Uma Resposta ao Mises Brasil

Destrinchando o artigo “Entenda por que é impossível acabar com a pobreza por meio da redistribuição de renda e riqueza”

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No dia 26 julho de 2019, o Instituto Mises Brasil publicou em seu site o artigo Entenda por que é impossível acabar com a pobreza por meio da redistribuição de renda e riqueza com autoria de Juan Ramón Rallo. De forma breve e contundente, o texto procura explicar a tese de seu título através de argumentos quantitativos ao mesmo tempo em que traz ao leitor um pouco da filosofia pregada pela Escola Austríaca.

Nesta resposta, minha intenção é destrinchar a linha de raciocínio do Entenda Por Que para avaliar sua validade. Meu objetivo não é de forma alguma atingir pessoalmente o professor Juan Rallo ou mesmo os editores do site Mises Brasil, mas sim explorar da maneira mais honesta possível a ideologia por eles discutida. Sendo assim, reproduzirei aqui todos os trechos do artigo original que julgar necessários para não distorcer seus argumentos e permitir que o leitor julgue por conta própria as minhas conclusões sobre o conteúdo.

Introdução

A primeira parte do artigo procura distinguir os conceitos de “pobreza” e “desigualdade” que, de acordo com o autor, muitas vezes são tratados como sinônimos. Nas palavras dele, o pensamento da maioria das pessoas parte de que “se há pobres é porque somos desiguais; se a desigualdade aumenta é porque aumentou a pobreza”. Mas isso não poderia ser verdade:

[…] o fato é que a economia de mercado se mostrou capaz, ao longo dos últimos 200 anos, de aumentar a renda de todos os cidadãos. Segundo as estatísticas compiladas pelo economista britânico Angus Maddison, passamos de uma renda per capita mundial de 1.130 dólares por ano em 1820 para uma de 15.600 em 2015. E isso ao mesmo tempo em que a população global aumentou de 1 bilhão de pessoas para 7 bilhões.

Partindo do princípio de que Angus Maddison esteja correto, a conclusão tirada pelo autor parece duvidosa… Mesmo que a renda per capita mundial tenha aumentado, não quer dizer que tenha aumentado a renda de todos os cidadãos. A renda per capita é uma média, ou seja, é possível que ela aumente sem que todos os valores aumentem também: a média entre 1, 2 e 3 é menor que a média entre 0, 0 e 100. Aqui, parece que Rallo está confundindo riqueza (a soma de todas as rendas dividida pelo número de pessoas) com igualdade (a distância entre os mais ricos e os mais pobres).

Mas nada disso fere o argumento sendo desenvolvido. Logo a seguir o artigo traz uma estatística verdadeiramente entusiasmante:

Igualmente, em 1820, aproximadamente 95% da população mundial vivia na pobreza, com uma estimativa de que 85% vivia na pobreza “abjeta”. Em 2015, menos de 10% da humanidade continua a viver em tais circunstâncias.

Esse dado faz sentido e de fato corrobora com a ideia de que a economia tenha diminuído a pobreza. Ao longo dos últimos séculos, os avanços tecnológicos permitiram que uma grande fatia da população mundial deixasse uma situação de insegurança alimentar por exemplo. Ao longo dos próximos parágrafos, o autor afirma que a economia “não é um jogo de soma zero” e que a riqueza do mundo não está fixa:

Este fato, por si só, mostra como estão errados aqueles que dizem que toda a riqueza do mundo já está dada e deve apenas ser “redistribuída justamente”. Se toda a riqueza do mundo já estivesse dada, devendo apenas ser redistribuída, seria impossível que a renda per capita e a população mundial aumentassem simultaneamente.

Confusões Básicas

A partir deste ponto, o artigo começa a preparar o terreno para os argumentos da sessão seguinte. A lógica que “uma sociedade pode ser muito igualitária e muito pobre[,] ou bastante desigual e rica” informa praticamente todo o raciocínio da análise apresentada.

O autor primeiramente apresenta o coeficiente de Gini, uma métrica de desigualdade: “quanto mais próximo de 1, mais desigual é um país”. A explicação é correta mas incompleta, porque o índice de Gini na verdade é expresso como uma porcentagem, ou seja, entre 0 e 100. Isso facilita a interpretação dos dados apresentados a seguir:

Tajiquistão (30,8), Iraque (30,9), Timor Leste (31,9), Bangladesh (32,1) e Nepal (32,8) são mais igualitários que Bélgica (33), Suíça (33,7), Polônia (34), França (35,2), Reino Unido (36), Portugal (38,5), Estados Unidos (40,8), Cingapura (42,5) e Hong Kong (43,4).

É fácil ver que países mais igualitários são mais pobres e os países mais desiguais são mais ricos. O autor conclui, portanto, que:

[…] o objetivo primordial de qualquer pessoa preocupada com o bem-estar alheio deveria ser o de aumentar a renda total de cada indivíduo, e não reduzir as diferenças de renda entre cada indivíduo.

Na minha opinião, isso é uma falácia perigosa. Partir do fato de que os países mais ricos também são mais desiguais e concluir que, portanto, deveríamos nos preocupar apenas com crescimento de renda e não com igualdade é apenas um exemplo da frase “correlação não implica causa”.

O que o texto não mostra é uma visão global do coeficiente Gini! Listando apenas alguns países, o autor sugere que quanto mais pobre um local, mais igualitário ele fica, mas a realidade é muito mais complexa: grande parte dos países pobres (na África e América do Sul) é extremamente desigual.

Quanto mais vermelho, mais desigual é o país (Wikipédia)

E é aqui que o texto dá uma guinada na direção do que, na minha opinião, é uma argumentação desonesta. O autor afirma, corretamente, que “o bem-estar de um indivíduo está estritamente relacionado com seu nível de renda” já que isso garante a ele melhores alimentação, bens e serviços. O fato de que isso vale apenas para uma sociedade capitalista como a contemporânea é absolutamente ignorado, mas o verdadeiro problema, para mim, é um parágrafo no fim da sessão:

Logo, não faz sentido nem mesmo qualquer preocupação indireta para com a desigualdade. É claramente preferível uma sociedade com rendas elevadas, porém muito desiguais, a uma sociedade de rendas ínfimas, porém igualitárias.

Imagine uma cidade fictícia na qual uma pessoa possui quilos de ouro em sua casa fortificada e o resto precisa tentar sobreviver com quilômetros e quilômetros de terras inférteis. Todos os bens e serviços do milionário são trazidos de longe com um helicóptero, de modo que os seus vizinhos miseráveis não recebam nem uma migalha do que é consumido na mansão. O exemplo é propositalmente exagerado para demonstrar que, mesmo a riqueza per capita dessa cidade sendo muito elevada, o fato dessa riqueza ser desigualmente distribuída faz com que a maioria das pessoas fique em uma situação pior.

Como não se preocupar então, nem indiretamente, com a desigualdade?

Redistribuir Renda e Riqueza é Redistribuir Miséria

Na penúltima sessão do texto, são articulados os seus argumentos principais. De modo a reforçar a lógica construída anteriormente, o autor parece construir uma caricatura daqueles que enxergam problemas em sociedades desiguais:

Para algumas pessoas, o crescimento econômico global não é desejável ou mesmo não é possível. Segundo elas, não podemos e não devemos seguir explorando um planeta com recursos limitados […]. Para tais pessoas, o objetivo é frear o crescimento econômico e redistribuir a renda e a riqueza que já existem: nós não precisamos de mais, precisamos apenas distribuir melhor.

Nem o próprio Karl Marx, cuja Escola Austríaca pretende refutar, argumentaria que o crescimento econômico global não é desejável ou possível; de acordo um dos grandes ideólogos do socialismo, já que a riqueza vem do trabalho humano, seria óbvio concluir que continuaria havendo “crescimento econômico” enquanto as pessoas continuassem trabalhando para a produção de mercadorias com valor de uso.

Em Primeiro Lugar

O texto prossegue teorizando como seria o mundo com uma renda completamente igualitária: como “a renda per capita global é de 15.600 dólares […], uma família composta por dois adultos e um menor desfrutaria de 46.800 dólares”. De acordo com o próprio autor, isso já é “mais do que a imensa maioria das famílias da Espanha” (que é o país no qual ele nasceu), mas seria “aproximadamente a renda per capita atual de países como […] Brasil, China, Costa Rica, […]”.

Ou seja, se redistribuíssemos perfeitamente a renda mundial, o padrão de vida de um europeu ou de um americano seria reduzido ao nível desses países [e nós brasileiros, como um todo, ficaríamos na mesma]. Trata-se de uma constatação nada esperançosa, ainda que, em uma análise superficial, os 15.600 dólares por cidadão pareçam bastante.

O trecho entre colchetes no excerto acima não é meu e estava em itálico no original. Sem querer construir teorias da conspiração, essa frase parece ter sido adicionada posteriormente ao texto, porque o argumento, partindo de um escritor espanhol, parece um pouco ofensivo a um leitor brasileiro: se redistribuíssemos a renda na Espanha ficaríamos como vocês.

Em Segundo Lugar

De acordo com o economista, uma redistribuição total de renda também seria problemática porque é sempre necessário reinvestir parte do dinheiro de modo a garantir “rendas futuras”:

[…] se esta renda for redistribuída entre todos, todos nós teremos de investir uma parte da nossa renda para manter a mesma capacidade produtiva da sociedade. Quanto deveríamos investir? O consenso é algo ao redor de 20% do PIB. Assim, da renda per capita de 15.600 dólares, somente 12.480 poderiam ser consumidos.

Não sei bem como responder a esse argumento a não ser dizendo que, então, a renda per capita de uma sociedade completamente igualitária seria 12.480 dólares depois de subtraídos os reinvestimentos. Esse valor ainda é enorme considerando quantas pessoas hoje em dia vivem com muito menos que isso.

Em Terceiro Lugar

O texto retrata o terceiro argumento como o mais importante:

[…] Após esta renda distribuída ter sido consumida, não haveria como ocorrer novas redistribuições.

O autor alega que “tão logo [a renda] seja consumida, tais pessoas voltarão ao estado de pobreza anterior.” Parece que, nesse momento, é ele próprio quem considera que a riqueza mundial é fixa. Essa renda será consumida e irá para onde? Para o fundo do mar? Evidentemente ela continuará circulando pelos mercados dessa terra utópica (ou distópica de acordo com o escritor) e permitirá a geração de mais riqueza. Enquanto as pessoas continuarem trabalhando e dividindo os produtos de seu trabalho, a “renda” continuará sendo gerada.

Em Quarto Lugar

O quarto e último argumento do texto é colocado como um complemento para o terceiro. Enquanto lia, eu próprio me perguntava qual seria a posição do autor sobre a riqueza que não é renda, ou seja, os meios de produção: “instalações industriais, maquinários, ferramentas” e assim por diante.

Esses meios de produção, além de tornarem o trabalho humano mais eficiente e produtivo, produzem os bens e serviços que todas as pessoas consomem […]. Quanto maior a riqueza de empreendedores e capitalistas, maior será a produção e a oferta de bens e serviços. Consequentemente, maior será a demanda por mão-de-obra. E maior será o padrão de vida de todos.

A descrição do texto é apropriada levando em conta a nossa sociedade atual, já que os meios de produção, controlados pelos capitalistas, permitem que o trabalho se torne mais eficiente e sejam produzidos mais bens e serviços. Mas o autor conclui então que:

Caso os ricos sejam espoliados destas posses (que são sua verdadeira riqueza), e caso estes bens de capital sejam “socializados” para todos, simplesmente não mais haverá a mesma alocação de recursos de antes. […] Os capitalistas detentores destes meios de produção são bem-sucedidos exatamente porque sabem como alocar racionalmente estes meios de produção.

O artigo neste momento flerta com a revolução comunista. Ele corretamente conclui que para distribuir completamente a renda, também será necessário distribuir a posse dos meios de produção, mas o autor afirma que isso acabará com a capacidade de “alocação racional” de recursos. Na minha opinião, ele só não considera a possibilidade de que pessoas com capacidade de planejamento continuariam existindo no mundo utópico e ainda poderiam informar as decisões de uma produção coletivizada.

Conclusão

A conclusão do artigo chama de “trapaça intelectual” dizer que a redistribuição de renda e de riqueza, sem crescimento econômico, seria solução para a pobreza mundial. O último parágrafo diz:

Desigualdade não é pobreza: combater a desigualdade não acaba com a pobreza e diminuir a pobreza não implica acabar com a desigualdade. É imprescindível separar esses dois conceitos para não sermos enganados pelos defensores do igualitarismo, os quais querem apenas redistribuir a pobreza.

Aqui também concluo minhas discordâncias em relação aos argumentos do texto. Em primeiro lugar, o próprio economista mostra que a distribuição da renda e dos meios de produção acabaria sim com a pobreza dado que todos passariam a receber 15.600 (ou mesmo 12.480) dólares por ano. Ele pode teorizar se essa é uma solução moral ou ética, mas ela aparentemente funcionaria! Em segundo lugar, os argumentos parecem depender do fato de que uma sociedade socializada não seria capaz de continuar gerando bens ou serviços para os seus membros, mas em nenhum momento isso parece ser adequadamente justificado.

Por fim, o verdadeiro problema do artigo (na minha opinião) é um certo “medo” subjacente sobre o que aconteceria com os países ricos da Europa e América do Norte nessa suposta sociedade socialista: eles seriam equiparados a nós do sul global. Sem pessoas desfavorecidas, os ricos não têm quem explorar, então a desigualdade é necessária para que o sistema capitalista continue funcionando em sua configuração atual. Como fechamento, deixo um parágrafo do meio do artigo que, para mim, parece revelar o verdadeiro sentimento por trás da Escola Austríaca:

Afinal, de onde viria a nova renda a ser redistribuída? Vale lembrar que não há mais ricos e pobres. Todos estão em igual situação. Consequentemente, não haverá mais de quem tirar.

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