O céu de Agnaldo (1/11)

Felipe A. Carriço
Poker com Deus — Conto
5 min readMar 10, 2022

— Onde estou? — indagou Agnaldo, perplexo.

Quando abriu os olhos, Agnaldo estava em um corredor estreito e muito claro. Atrás dele havia apenas o nada. Era um caminho único que desembocava em uma sala mais ampla, com atmosfera leitosa, cheia de fumaça e cheiro forte de um incenso agradável.

Abanando um pouco com as mãos para dispersar a fumaça que ofuscava sua visão, pode ter a dimensão exata do local misterioso no qual chegara: inimaginavelmente enorme.

Em meio à vastidão descomunal daquele local, logo à sua frente se deparou com algo muito familiar. Era uma mesa oval, com tampo de feltro verde muito bem esticado e marcado; uma linda mesa de poker como algumas das que teve a oportunidade de experimentar. A única diferença que saltou aos olhos de Agnaldo foi que nela havia apenas uma cadeira.

Compreendendo o recado de forma quase inconsciente, dirigiu-se até ela para se sentar, testando o chão a cada passo para não tropeçar, já que a visibilidade permanecia prejudicada. A cadeira na qual se sentou era muito confortável, diferente dos banquinhos mequetrefes que experimentara por aí em alguns bares e cassinos clandestinos.

— Como vai, Agnaldo?

Uma voz grave surgiu em meio à fumaça, bem do outro lado da mesa, onde ainda há pouco não havia nada senão imensidão.

— Vou bem, obrigado — respondeu ele sem se dar conta do aparecimento repentino da voz e de seu dono, respondendo a saudação como se tudo, desde sempre, estivesse em seu devido lugar. — Mas, onde é que eu estou?

— Você está no céu, meu caro. Mais especificamente na sala de jogos!

Enquanto falava, o ser misterioso começou a embaralhar um maço cartas com a maestria de um crupiê com muitos anos de prática. Agnaldo só não soube dizer se as cartas eram muito pequenas ou as mãos da figura misteriosa que eram grandes demais.

— Ahh, vá — desdenhou ele! — Nem te conheço e você já está tirando onda com a minha cara? Quem é você afinal de contas?

— Bom — fez uma pausa como quem prevê a confusão que gerará —, eu sou Eu! Ou melhor, eu sou o Eu Sou. Mas pode me chamar só de Deus mesmo porque a tradução do meu nome para português é meio difícil de explicar.

Olhando mais atentamente, Agnaldo conseguiu reconhecer as formas do seu interlocutor. Era um homem grande, de aspecto idoso, porém de olhar altivo e jovial. Não era muito forte, mas possuía um porte imponente, mesmo trajando uma ridícula túnica listrada, branca e azul anil e um brilhante boné plastificado, daqueles usados por alguns jogadores de cartas mais antiquados. Suas mãos robustas manejavam o baralho fervorosamente. Cortava, mesclava, mostrava todas as cartas misturadas, tornava a embaralhar e mostrava-as novamente, magicamente em ordem. Mais uma vez embaralhava e, mais uma vez, mostrava todas as cartas misturadas.

— Então você é Deus? — mesmo incrédulo e ateu convicto, novamente seguiu com o diálogo quase que involuntariamente. — Mas o senhor não parece nem um pouco com o que as pessoas falam por aí. Esperava ver um cara resplandecente, com um triângulo na cabeça e uma enorme barba branca ou coisa do tipo. Se você pensou em me pregar uma peça eu acho que escolheu a fantasia errada.

— Meu querido — ria-se deixando as bochechas salientes um pouco avermelhadas — , eu sou o Eu Sou e sou o que quero ser, quando quero ser. Sacou?

— Tudo bem — a estranha explicação do ser curiosamente fizera sentido para Agnaldo. — Compreendo. Só que eu sempre ouvi dizer que o céu era um lugar monótono, sem nada pra fazer, cheio de anjinhos voando com suas auréolas douradas. Nunca poderia imaginar que o Senhor jogasse cartas! Ou pior… Que você compactuasse com jogos de azar. Vai me dizer que você joga com o Diabo!? Ele deve ser barra pesada no poker! Afinal, não é ele o pai da mentira?

Agnaldo achou-se inteligente pela observação que acabara de fazer, exprimindo aquilo que ouviu a vida toda de seus amigos e conhecidos, quando brincavam dizendo que o inferno deveria ser mais divertido, cheio de mulheres, bebidas e carteado. Para ele, por jogar cartas, Deus estaria agindo contra seus próprios princípios, igualando-se ao seu inimigo. Porém Deus não se abalou com tal comentário.

— Agnaldo — reclinou-se mais para perto de Agnaldo, encarando-o profundamente, como ninguém jamais fizera com o ele antes. — Vejo que você é um ser sagaz! Todavia, não é como se eu gostasse de jogos de cartas, mesmo tendo-os criado.

— Mas então por que você criou os jogos de carta?

— Olha, eu não te trouxe aqui para justificar minhas razões. Eu apenas costumo utilizar meios não convencionais para falar com vocês, homens. No seu caso, a mesa de poker foi a melhor escolha, não acha? — perguntou retoricamente, deixando Agnaldo encabulado.

— Eu mesmo prefiro dominó — continuou Deus —, porque muitos me chamam de Domini. Sem falar na quantidade de vezes que o número sete aparece nesse jogo.

— Mas por que sete? — indagou Agnaldo confuso com a informação.

— Oras, porque eu gosto muito do número sete! Precisa de outra razão?

Agnaldo ficou em silêncio, tentando refletir a respeitos das razões de um Deus no qual sequer acreditava minutos atrás, mas que agora estava na sua frente embaralhando cartas.

— Ah! — exclamou Deus — Sobre o Diabo, sim, nós jogamos de vez em quando. Mas ele sempre perde! — Disse entre gargalhadas, observando Agnaldo calado, surpreso pela resposta que a essa altura já não esperava mais escutar.

A mera menção do nome Diabo pela boca de Deus fez com que o local já silencioso se tornasse praticamente hermético. Àquela altura, Agnaldo sabia que estava conversando com um jogador. Jogador nenhum faria um lance como esse sem um motivo em mente.

— O senhor me pegou — disse Agnaldo após pensar em possíveis motivos de estar ali, sentado numa mesa com Deus. — Confesso que sou viciado em poker! Mas e daí? Pelo menos eu jogo muitíssimo bem. Pior são aqueles caras que mal sabem jogar e se afogam nas mesas de carteado.

Deus o encarou por alguns instantes. Analisou a empáfia de Agnaldo, seu olhar vago e gestos apressados enquanto dizia com os lábios coisas que a mente sequer tivera tempo de processar.

Deus conhecia Agnaldo, mas por alguns instantes não conseguiu acreditar na maneira narcísica com que ele justificava seu vício.

— Você sabe jogar, Agnaldo? Tem certeza disso? — Deus indagou com olhar benevolente, cheio de paciência.

— Claro que sei — falou desenhando seu nome no feltro da mesa.

— Então prepare-se, meu filho. Nós vamos jogar.

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