O flop inicial (2/11)
Agnaldo sempre foi um homem de convicções.
Possuía filosofias e opiniões muito bem formadas desde pequeno. Indagava professores a respeito da própria existência, evolução, religião e até política. Manteve-se assim até a vida adulta. Não fez muitos amigos, mas os pouco que fez demonstravam-se dignos da sua companhia. Não que eles realmente acreditassem nas opiniões de Agnaldo, mas o toleravam e aceitavam seu jeito intransigente e obtuso. Agnaldo sabia do posicionamento deles, porém aceitava, pois a ideia de permanecer sozinho era suficiente para que suas rédeas afrouxassem. Contudo, foi na época da faculdade, quando resolveu aprender poker, que Deus virou as primeiras três cartas; o flop inicial desta "aula show" celestial.
Olhando como quem não vê, Agnaldo encarava fixamente a face de Deus. À sua frente existiam apenas escolhas sem opção de blefe. As cartas foram distribuídas por um anjo magro de cabelos muito negros. Com duas asas cobria o rosto, com duas os pés, e com as duas restantes encobria seus movimentos de pulso e o bailar das cartas, deixando Agnaldo curioso com o sussurrar compassado que o baralho fazia.
Agnaldo, encantado com a figura do anjo, não conseguiu prestar atenção quando maquinalmente as cartas lhe foram entregues. Sua desatenção era tamanha que Deus precisou pigarrear vigorosamente para trazê-lo de volta à realidade, se é que assim podemos chamar o estado em que ele se encontrava.
— Como é que eu vou confiar nesse seu anjo? — Indagou Agnaldo enquanto profissionalmente tomava as cartas de sobre a mesa, levantando apenas as pontas para verificar quais havia recebido. — Quem me garante que ele não está fazendo maço ou contando cartas para você?
— Não se preocupe — Deus respondeu quase sem mover os lábios, erguendo as cartas que também recebera do seu anjo. — Eles não conhecem o bem e o mal. Além disso, os anjos não enxergam absolutamente nada além daquilo que eu permito que eles vejam.
Já com as cartas em mão, Deus observou-as com desconfiança, o que desta vez não passou desapercebido por Agnaldo. Era a vez Dele começar, mas cedeu ao visitante que rapidamente olhou ao seu redor procurando fichas para apostar.
— Acho que o Senhor não entende muito desse jogo, não é? Onde estão as fichas? — Ao encerrar seu comentário, Agnaldo ainda soprou com as narinas e balançou a cabeça desdenhando de Deus.
— Pensei que pudéssemos jogar de uma outra maneira. Mas, se você faz tanta questão, eis suas fichas. — Num movimento leve de cabeça e apontando com os olhos, Deus indicou para Agnaldo que logo à sua frente havia fichas multicoloridas. De tantas cores, com tantos valores, que calculá-las seria difícil até para os matemáticos mais inteligentes da Terra.
— Nesse jogo não existem valores específicos — continuou falando Deus enquanto se deliciava com o espanto do pobre homem. — Nessa mesa ora aposta-se muito, ora aposta-se pouco e, assim como na vida, jogamos às cegas, fazendo escolhas sem enxergar um palmo à frente do nariz. Afinal, nunca se sabe quais cartas nossos adversários estão segurando. Jogamos por confiança, achismos, hipóteses. Já eu prefiro chamar de fé.
O anjo parecia impaciente, esperando pela jogada de Agnaldo.
Após pensar por alguns instantes tamborilando os dedos no tampo da mesa, Agnaldo finalmente resolveu empurrar um punhado de fichas em direção ao anjo. Automaticamente, após a aposta no blind ser concluída, surgiu ao lado da pilha de fichas entregues ao anjo uma outra idêntica em cores e quantidades. Deus havia pagado a aposta dele e assim prosseguiram o jogo.
Agnaldo, imerso em pensamentos observava fixamente o anjo crupiê que se preparava para o flop inicial. O brilho que emanava do seu rosto era quente e perceptível a uma boa distância. Quando finalmente conseguiu quebrar contato com o ser celestial viu que à sua frente estavam seus amigos de faculdade, jogando cartas e bebendo durante o horário da aula mais chata do curso: qualquer uma.
Entre piadas, goles e palavrões sem sentido de seus companheiros, os olhos dele foram dragados para o lado de fora do estabelecimento. Lá, uma jovem mulher estava conversando com as amigas enquanto enrolava com o indicador direito seus longo cabelos castanhos. Estava frio naquela época do ano, o que de forma alguma impedia que ela estivesse "vestida para matar", como dizem as más línguas.
Para a infelicidade da garota, o vestidinho curto que usava naquela noite sempre acabava atraindo muitos olhares — desejados e indesejados —, comentários e até assobios. Contudo, foram os olhos profundos olhos pretos de Agnaldo que chamaram sua atenção naquela ocasião.
Decidida, caminhou de forma confiante em direção ao rapaz, deixando nítidas suas intenções a cada novo passo.
Ele, completamente absorto com a movimentação da garota em sua direção, acabou empurrando para o centro da mesa de plástico uma aposta maior do que deveria, ainda que fossem apenas alguns torresmos do boteco onde estavam matando aula ao invés de fichas ou dinheiro.
Perdeu aquele jogo. A perda virou pretexto. O pretexto virou conversa. A conversa virou um convite. Acabou saindo do boteco com a garota, o que acabou lhe rendendo uma certa reputação com os amigos. — Azar no jogo, sorte no amor — comentavam entre gargalhadas os rapazes enquanto devoravam os torresmos que haviam ganhado do "AgnalDon Juan".
A pauta na mesa mudou completamente com a ausência de Agnaldo. Apesar de seu temperamento confuso, aquele grupo de amigos aprendeu desde muito cedo a lidar com as diferenças. Todos ali sabiam que não era do feitio do "sortudo" ser arrastado por uma mulher para longe do hobby que compartilhavam desde muito tempo atrás, antes mesmo de iniciarem a faculdade juntos — não por vocação, mas pelo companheirismo.
— Cara, nunca pensei que o Naldin pudesse ficar mais idiota do que já é! — disse Pedro sem olhar para ninguém enquanto mascava um pedaço mal frito de torresmo como se fosse chiclete.
— Já vi ele ficar assim antes por conta de video game quando a gente era pivete, mas nunca por um rabo de saia. Ainda mais um com "re-puta-ção" entre a homarada — Cleiton respondeu orgulhoso com seu trocadilho maldoso.
— Cara, olha como tu fala das minas que isso é vacilo — interpelou Cezar, espiando suas próprias cartas. — Agora faz sua aposta ô filadaputa!
— Calma lá! Da minha mãe tá liberado falar?
— Ninguém fala mal da tia Neiva nessa mesa! — Pedro interrompeu o bate boca. — Aquela mulher é uma santa por aguentar a gente toda semana lá na sua casa! É gostosa? Sim, mas santa!
— Pelo menos eu tenho mãe! — retirando um pelo do torresmo da boca e rindo da cara de Pedro, Cleiton botava um ponto final daquela conversa amistosa.
— Mas e o Agnaldo hein? — Cezar voltou sua atenção à ausência do companheiro parcialmente visível em um canto escuro próximo dali.
— Já já ele volta — respondeu Pedro. — Posso virar as cartas? Quem apostou apostou, quem não apostou a mãe tá na zona!
— Pedro, então nem aposta que talvez tu encontra a tua lá! — respondeu Cezar confiante, certo de que sem Agnaldo na mesa, ainda que sem a mesma graça, ganharia aquela rodada.
Passaram-se algumas semanas, outras partidas foram realizadas, mas cada vez menos Agnaldo era visto entre seus amigos. Vivia grudado à garota de gostos estranhos, roupas peculiarmente curtas e atitudes questionáveis.
Ela continuou — intencionalmente — atraindo olhares aqui e acolá, mas Agnaldo não enxergava o que estava acontecendo. Estava cego às intenções dela e ao seu próprio afastamento das pessoas que realmente valiam alguma coisa. Em todo caso não levou muito tempo para que o valor da garota fosse colocado à prova e, ao final de uma festa na casa de amigas, acabou se permitindo ser levada por outro como prêmio de uma disputa de virar shots de vodka barata.
Agnaldo viu tudo acontecer com seus próprios olhos; viu e se lembrou do que deixara para trás.
Quando finalmente voltou à tradicional mesa na qual jogavam poker no velho boteco a única coisa que encontrou foram pessoas desconhecidas. Seus amigos estavam em outra, estudando para as provas finais, preocupados com suas vidas e muito pouco dispostos a darem atenção àquele que os abandonara por uma "aposta duvidosa". Tornara-se carta fora do baralho.
— Me dá uma dose de algo forte, Chico —encostado no velho balcão bege pediu ao garçom sem sequer fazer contato visual.
Recebeu seu copo de conhaque vagabundo e virou-o garganta a dentro em um piscar de olhos; tão rápido que, incrédulo, encarou fixamente o fundo do copo, o qual se abriu e engoliu Agnaldo tão rápido quanto.
— Viu, Agnaldo? — quando terminou de ser tragado pelo trago de conhaque encontrou-se novamente com Deus, o qual recolhia suas fichas do centro da mesa. — Você apostou muito sem ter certeza da vitória. Algumas vezes sair da rodada é a melhor opção para quem realmente tenta ganhar todas as fichas e sair vitorioso.
— Era só uma garota! — Agnaldo tentava argumentar ainda zonzo da viagem que fizera. — Eu perdi "aquelazinha", mas e daí? Só porque eu lambi o chão onde ela pisou e fui pisoteado por ela e aquele beberrão não significa que perdi grandes coisas.
— Ganhar e perder são aspectos naturais da vida — dizia Deus acenando discretamente com a cabeça para o anjo à mesa. — O problema é perder o pouco que se tem de verdade. Nesse caso você não perdeu a garota, pois você já não a tinha. O que você abriu mão naquela mesa foi dos seus amigos. Eles seguiram jogando, enquanto você perdeu todas as suas fichas numa aposta furada.
— Amigos eu faço outros! — Respondeu a Deus em tom de desafio.
— Será que você tem fichas suficientes para apostar? — Deus olhou com para as fichas de Agnaldo com leve sorriso no rosto. — Parece que não.
Nesta hora o anjo dealer recolheu as cartas e começou a embaralhá-las novamente. Pensativo, Agnaldo permaneceu calado após a resposta de Deus, porém seu ego não permitia que ele aceitasse a derrota dialética.
Sorrindo, Deus olhava seu parceiro de poker com extrema compaixão, admirado com as fraquezas e fragilidades do ser que havia criado. Contudo, esta partida não poderia acabar até que tudo fosse colocado em jogo.
— Gabriel! — Gritou Deus. — Traga os pistaches. Eu adoro pistaches!