Um pot bem maior (3/11)

Felipe A. Carriço
Poker com Deus — Conto
6 min readMar 18, 2022

Vindo de longe. De um lugar tão estranhamente distante e esbranquiçado como o que rodeava a mesa de poker, um anjo desengonçado trazia uma bandeja com acepipes.

Parecia que andava com dificuldades devido ao tamanho aparentemente reduzido de suas pernas, uma vez que não voava como os outros. Ao se aproximar foi possível ver que não flutuava porque suas asas estavam postas para dentro de uma calça bem esquisita, feita de tecido fino com grande espaço na região traseira para acomodá-las.

— Saruel, meu querido! O que traz você até aqui? — Deus levantou-se do assento para ajudar o anjo de calças a colocar a bandeja sobre uma mesinha que se materializou ao seu lado. — Havia pedido para que o Gabriel trouxesse as comidinhas. Onde ele está?

— Está ensaiando, Senhor — respondeu o anjo claramente incomodado em realizar aquele tipo de tarefa.

— Mas que coisa! O que era mais importante do que atender a um pedido meu? — seus olhos tornaram-se como brasas, inquirindo o pobre anjo desengonçado. — Responda-me, Saruel!

— Senhor, desculpe-me ter que falar assim — respondeu timidamente ao seu senhor —, mas me parece que Gabriel ficou meio bravo quando perdeu seu melhor barítono para o… para o Senhor sabe quem. Mas eu não gosto de fazer fofocas.

— Eita… — seu olhar se abrandou, mas uma interrogação flutuava perante seus olhos — , pensei que depois de tanto tempo ele já tivesse superado a perda, afinal de contas existe toda uma infinidade de outros anjos que ele poderia utilizar.

— Mais ou menos, né? — Saruel tentava olhar para Deus, mas com grande dificuldade devido a luminosidade que emanava dele. Luz que aparentemente não incomodava Agnaldo. — O "coiso" levou um terço do pessoal com ele.

— Todo número número finito dividido pela infinidade é tão próximo a nada que sua afirmação não faz sentido! Infinito menos um terço ainda é infinito, porque infinito não tem fim, sacou?

— Desculpa, Senhor. Sou um anjo de humanas e matemática nunca foi o meu forte.

— Suas calças deixam isso bem claro, Saruel.

— O que tem de errado com elas, Senhor? — Perguntou olhando-se intrigado com a afirmação de Deus.

— Nada não — respondeu Deus com um sorrisinho escapando do canto de seus lábios. — Deixa esse papo da calça pra lá e me explica o que tá pegando com o Gabriel que ele não podia ter delegado o ensaio para algum outro anjo.

— O Senhor bem sabe como Gabriel é. Ele sabe reconhecer quem canta bem e quem canta mal.

— Às vezes me arrependo de ter dado este discernimento para ele. Em todo caso, você sabe cantar, Saruel?

— Não, Senhor. Dessa banda eu sou apenas o roadie, por isso prefiro não voar.

— Por isso as calças, suponho?

— O Senhor não gostou mesmo das minhas calças, né? — Comentou envergonhado, olhando para o chão e esfregando a ponta de seu pé descanso no chão enfumaçado. — Mas senhor, tente carregar os instrumentos de um terço do céu sozinho voando. É muito difícil! E as asas ficam esbarrando em tudo.

— Você quer dizer os instrumentos de um terço de dois terços de infinito?

O anjo olhou para as próprias mãos e esboçou algum tipo de conta usando os dedos.

— Esquece essa conta, Saruel — e o anjo imediatamente esqueceu. — Vamos fazer assim: a partir de agora você cantará na banda! Porém só peço que passe a voar, ou pelo menos a andar direitinho. Combinado?

O anjo não respondeu. Apenas retirou as asas de dentro da estranha calça e partiu sobrevoando a mesa de poker, o que fez com que as cartas do anjo dealer caíssem sobre o feltro e ele precisasse recomeçar o trabalho de embaralhamento.

Num piscar de olhos tudo estava novamente no lugar, inclusive Deus, que voltou a se instalar confortavelmente na cadeira enquanto procurava palitos de dentes para “caçar” alguns tremoços de dentro de uma grande tigela. O processo era engraçada de se ver. Deus, com suas imensas mãos segurando um pequeno palito de dentes, ciscando os aperitivos com grande dificuldade.

Agnaldo esboçou um sorriso ao ver a cena. Se deliciava ao ver um ser de tamanha imponência ser vencido por aperitivos escorregadios.

Após derrubar quase metade do conteúdo da tigela, Deus abandonou o palito e apelou para a onipotência. Um a um os tremoços saltavam em direção à sua imensa boca, como atletas fazem nos jogos olímpicos.

— Senhor — entre os dentes serrados de Agnaldo permanecia um sorriso devido à sujeira fruto do desengonço de Deus — , me permite uma pergunta? — Agnaldo esfregava as pernas com as mãos, tamanha a ansiedade.

— Claro, meu filho — respondeu limpando algo de seus dentes com a imensa língua. — Sou questionado milhões de vezes todos os dias por milhões de pessoas. Por que não lhe permitiria este direito? Vamos. Pergunte-me!

— Esse anjo esquisito acabou de comentar a respeito de uma perda. Provavelmente ele estava se referindo aos anjos que caíram com o Diabo, correto? Lembro-me muito bem disso nas aulas de religião que fui obrigado a assistir no colégio.

— Sim — Deus pontuou em tom seco — , ele se referiu exatamente a isso.

— Então quer dizer que o Senhor perdeu para o Diabo! O Senhor não é tudo isso que me fez imaginar — sem se conter, Agnaldo levantou-se da cadeira, deixando-a cair no chão. — Pior! Você mentiu pra mim dizendo que ele sempre perde.

— Filho meu, creio que é preciso esclarecer uma coisa.

Dizendo isso, Deus também levantou-se da cadeira ficando enorme. Gigantesco. Ocupando cada espaço do infinito que o cercava. Sua voz de trovão ecoou pelo universo e todos os planetas tremeram com o ressoar de tamanha magnitude.

— Eu Sou o Eu Sou, criador dos céus e da terra. Aquele que em 7 dias criou tudo o que você já viu ou imaginou. Estou em todos os lugares, posso todas as coisas e sei de absolutamente tudo!

Agnaldo tremia-se muito com tamanho furor provocado por seus questionamento, porém não exatamente de medo. Ele logo percebeu que ali onde se encontrava as coisas não era exatamente como pareciam ser. Seus movimentos eram telegrafados. Tantos os dele como os de Deus. Era como se ele soubesse exatamente o que aconteceria: Deus inflando e inflando, exaltando sua criação e seus poderes; um baiacu nervoso e inflado, como os que Agnaldo lembrava-se ter assistido no Discovery Channel.

Menor, e novamente com seu ar simpático e amistoso — provavelmente devido à comparação infantil e inocente com um baiacu realizada inconscientemente por Agnaldo —, Deus sentou-se na cadeira, dando vazão a um sentimento de grande afeto pelo homem curioso e afrontoso ali sentado, o qual inundou o ambiente.

— Filhinho. Sei tanto de tudo que já sabia inclusive que você questionaria este ponto tão intrincado da história da eternidade. Contudo, a eternidade é tempo demais para ser colocada num tanto de páginas; a complexidade é demais para ser escrita por mãos humanas e de tudo que ocorreu na queda dos anjos a única coisa que precisa ficar clara é que Eu ainda não dei minha cartada final.

Agnaldo olhava-o com um redescoberto interesse causado pela demonstração de força do ser eternal à sua frente. Olhava seus grandes olhos fixos em sua direção, as mãos apoiadas sobre a barriga saliente e os tremoços e rodelas de salame que saltitavam até serem friamente mastigados pela sua boca que derramava sabedoria.

— Digamos que existe uma mesa de poker muito maior do que esta. Uma tão grande que você não seria mais do que um pequeno farelo se estivesse sobre ela. Nesta mesa o jogo ainda não acabou. Ele tem durado muito tempo e certas jogadas podem parecer loucas, mas são todas feitas com imensa sabedoria de quem era, é e há de vir. Você, meu querido Agnaldo, é um jogador. Sabe destas coisas! Nós — tocou o braço de Agnaldo com firmeza— sabemos pescar fichas. Fazemos apostas medíocres, perdemos pots pequenos, mas tudo isso visando o all in no momento certo; visando um pot bem maior. E lhe garanto que este está preste a chegar.

A compreensão de Agnaldo não foi suficiente. Os segundos seguintes foram de imensa quietude, um observando ao outro, avaliando-se como adversários e como amigos. Contudo, o silêncio foi logo quebrado por um imenso estrondo. Saruel entrou voando, mais uma vez derrubando as cartas por todos os lados com seu farfalhar desastrado.

— Senhor, o novo roadie foi tentar carregar os instrumentos voando e derrubou tudo. Acho que deu para ouvir daqui, não deu?

— Ai, ai… — Deus bufou fazendo as cartas que já havia sido recolhidas caírem novamente. — Vá ajudar o novato. E vê se empresta uma dessas suas calças para ele.

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