Mapa Ideológico do Brasil

Como os partidos se orientam em relação a liberdade econômica e pautas progressistas

Leonardo Sales
Política com Dados
9 min readJan 20, 2021

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Todo mundo reclama dos partidos políticos, dos políticos, do “sistema” e etc. Cazuza, lá nos primórdios, demandava uma ideologia pra viver. Sempre que escândalos novos de corrupção atingem todos os “lados”, parece aumentar a sensação de que não tem muita diferença entre os políticos, e que ninguém tá onde está pra defender ideias.

Neste estudo busco justamente quantificar as diferenças ideológicas, que, bem ou mal, como veremos, existem no espectro político brasileiro. Para isso, empresto inspiração do chamado Diagrama de Nolan¹ e classifico as orientações político-ideológicas dos partidos segundo 2 dimensões:

  • A concordância com pautas liberais na economia (em contraposição a pautas de maior intervenção estatal)
  • A concordância com pautas progressistas² (considerando o que recentemente vem sendo defendido nesse espectro)

O meu diagrama, portanto, pode ser representado por um plano dividido em 4 quadrantes, onde os partidos serão posicionados:

Diagrama teórico

Os quadrantes mostram o antagonismo entre liberalismo e intervencionismo no eixo vertical (econômico-liberal) e entre progressismo e conservadorismo no eixo horizontal (social-progressista).

Vou além. Após classificar os partidos, crio um novo mapa do Brasil, considerando o poder de cada grupo ideológico. Vejamos.

Método: Como identificar a orientação ideológica de cada partido?

Considerei uma seleção de votações ocorridas entre 2016 e 2020, escolhidas por representarem claramente pautas de cada eixo ideológico. Foram votações relevantes e que exigiram posicionamento público dos partidos.

2 elementos são fundamentais para a quantificação do posicionamento ideológico:

  • O 1º é o que chamo de polaridade da votação em relação ao eixo ideológico. Ela nos diz se aquela votação em específico reforça a ideia central do eixo ou a prejudica.
  • O 2º é o índice de apoio à medida em pauta, que é a subtração do percentual favorável pelo percentual contrário, no partido, resultando em valores entre -1 (100% contrário) e 1 (100% a favor).

Para cada votação, esses 2 índices acima são multiplicados, resultando numa medida de avanço ou retrocesso para o partido no referido eixo.

Vejamos um exemplo: Uma pauta claramente progressista seria a proposição de medidas positivas para inclusão racial no mercado de trabalho. Imagine uma proposta de lei que busque criar uma obrigação para as empresas adotarem essas medidas. Tem, portanto, polaridade positiva, pois fortalece a ideia base do eixo progressista. Suponha que determinado partido, entusiasta desse tipo de medida, tenha 100% dos votos favoráveis a ela. Temos então um resultado de avanço da legenda em relação ao eixo progressista (1 x 1 = 1). Um outro partido, porém, contrário a esse tipo de medida, pode votar 100% contrário, resultando num retrocesso em relação ao eixo (1 x -1 = -1). Agora, caso um terceiro partido fique dividido em relação à pauta (50% a favor e 50% contrário), acaba ficando “parado” no eixo (1 x 0 = 0).

Pois bem, as votações utilizadas como referência para definir a orientação ideológica das legendas foram as seguintes:

Pautas do eixo Liberalismo Econômico

PL 3261/2019: Marco legal do saneamento básico; Polaridade = 1
PEC 6/2019: Reforma da Previdência; Polaridade = 1
MPV 881/2019: MP da Liberdade Econômica; Polaridade = 1
PL 4476/2020: Desregulamentação do setor do Gás Natural; Polaridade = 1
PL 4372/2020: Destaque para permitir a participação de entidades privadas no Novo FUNDEB; Polaridade = -1 (veja observação³)
PL 4199/2020: BR do Mar (estímulo ao transporte por cabotagem); Polaridade = 1
MPV 897/2019: MP do Crédito Rural; Polaridade = 1
PEC 241/2016: PEC do Teto de Gastos; Polaridade = 1
PL 4302/1998: Flexibilização da terceirização; Polaridade = 1
PEC 395/2014: Cobrança de mensalidade em cursos de especialização em universidades públicas; Polaridade = 1
PL 6787/2016: Reforma trabalhista; Polaridade = 1
PL 4567/2016: Retira participação obrigatória da Petrobras no pré-sal; Polaridade = 1

Pautas do eixo Progressismo Social

PL 3723/2019: Flexibilização do comércio de armas de fogo; Polaridade = -1
PL 1581/2020: Emenda a projeto que trata de perdão de dívidas com a União, incluindo igrejas; Polaridade = -1
PDC 861/2017: Convenção Interamericana de Combate ao Racismo; Polaridade = 1
MPV 746/2016: Reforma curricular do ensino médio; Polaridade = -1
PEC 171/1993: Redução da maioridade penal; Polaridade = -1
PL 1075/2020: Auxílio emergencial para o setor cultural (Lei Aldir Blanc); Polaridade = 1

Vejamos um exemplo da “pontuação” de um partido na votação de uma pauta liberal. O PL 4476/2020, que promove desregulamentação do setor do Gás Natural, teve o texto principal votado em 01/09/2020. Nessa votação, o PDT não estava com posicionamento fechado (embora mais tendente a rejeitar o texto), e votou da seguinte forma: Sim = 8 votos; Não = 17 votos. Conforme explicado, o índice de apoio à medida seria, portanto:

Subtração entre a proporção de “Sim” e a de “Não”

Como a polaridade da norma é +1 (reforça a ideia central do eixo), a pontuação do PDT nessa votação foi de -0,36.

Esse mesmo procedimento foi adotado para todos os partidos em todas as 18 votações selecionadas. O posicionamento final da legenda nos eixos foi dado pela média das respectivas pontuações.

Vamos aos resultados

Primeiramente, o posicionamento final dos partidos nos eixos de Liberalismo Econômico e Progressismo Social:

Dividimos o diagrama em 4 quadrantes, conforme já ilustrado. Veja que o quadrante intervencionista conservador não tem nenhum partido. Isso porque todos os partidos que defendem pautas mais intervencionistas na economia se posicionam como defensores de pautas progressistas.

Temos 3 grandes grupos partidários:

# Os liberais conservadores (liberais na economia e pouco aderentes a pautas progressistas), composto por partidos ditos de centro e centro-direita: AVANTE, CIDADANIA, DEM, MDB, NOVO, PATRIOTA, PL, PODEMOS, PP, PSC, PSD, PSL, PTB, REPUBLICANOS e SOLIDARIEDADE.

# Os intervencionistas progressistas (defendem maior intervenção estatal na economia e são muito aderentes a pautas progressistas), composto pelas legendas classificadas normalmente como de esquerda: PCdoB, PDT, PT, PSOL e REDE.

# E o grupo dos liberais progressistas, que é formado por poucos partidos que têm adotado ao mesmo tempo a defesa de pautas liberais na economia e tidas como progressistas no campo social: PROS, PSB, PSDB e PV.

Veremos adiante quais grupos têm ganhado força nas últimas eleições.

Antes, alguns insights dos resultados até aqui:

# Insight: O gráfico apresenta uma clara correlação entre intervencionismo e progressismo (perceba que os partidos parecem estar dispostos sobre uma diagonal descendente). Isso pode decorrer do fato de que as proposições progressistas que vêm sendo colocadas em pauta no Congresso têm uma certa natureza de intervenção do estado na atuação privada (um exemplo são as medidas positivas de inclusão racial no mercado de trabalho), o que tende a afastar os liberais da economia.

# Insight: O Centrão de hoje (e o de sempre!) é base do governo, que por hora é de viés liberal (pelo menos no plano inicial), e isso talvez explique essa proximidade no eixo econômico. É razoável se pensar que nos governos do PT, o Centrão tivesse uma postura mais intervencionista. Esse é um ponto a se aprofundar.

# Insight: Partidos do quadrante dos liberais progressistas são frequentemente classificados por “de esquerda” pelos partidos “de direita” e por “de direita” pelos partidos “de esquerda”. Isso deve ocorrer porque eles saem do padrão de posicionamento sobre a diagonal imaginária (intervencionismo progressismo). Fugindo dessa correlação, acabam desagradando os “2 lados”.

# Insight: Os 2 partidos com maior distância entre si, considerando essas 2 dimensões, são o Novo e o PSOL. Ambos são partidos relativamente mais recentes no mundo político e têm de fato perspectivas de mundo, especialmente quanto à relação estado-indivíduo, bem distintas.

# Insight: Os partidos mais “ao centro” do grupo dos intervencionistas são PDT e REDE. Recentemente, durante a votação da Reforma da Previdência, o PDT apresentou algumas dissidências em relação ao posicionamento (contrário) da maioria da legenda. A REDE apoiou, por exemplo, a MP da Liberdade Econômica e a desregulamentação do mercado de Gás.

# Insight: Existem partidos fortemente antiliberais, no plano econômico. Vide PSOL e PCdoB que tiveram índice mínimo (-1). Mas não existem partidos fortemente antiprogressistas (o menor índice desse eixo está com o NOVO, e é de -0,53).

Mapas de Poder no Brasil

Vejamos agora como evoluiu o poder político desses grupos partidários no Brasil com os mapas abaixo, que foram construídos a partir dos resultados das últimas 3 eleições municipais.

Poderia aqui (e vou, só pra ilustrar) cometer o erro de criar um mapa geográfico do Brasil, colorido segundo a ideologia do partido dominante (prefeitura eleita):

Mapa do Brasil, colorido segundo a orientação ideológica da prefeitura. Áreas cinzentas são municípios controlados por partidos sem representação no Congresso (portanto sem linha ideológica mapeada).

Utilizar um mapa geográfico é bonito mas sempre uma má escolha, a menos que você esteja interessado em ressaltar o território.

Mas nosso interesse aqui é verificar o poder de cada linha ideológica sobre o eleitorado ou sobre os recursos (PIB). Assim, vamos utilizar mapas de calor, que vão servir melhor a esse propósito.

O mapa abaixo quantifica o poder político de cada grupo ideológico. Vamos usar inicialmente como fator de ponderação o PIB dos municípios.

Em 2020:

Mapa de Poder — Brasil, Eleições de 2020, Fator de Peso: PIB

Clique para ver este painel em formato dinâmico.

Explicando o mapa: Cada célula do gráfico é um município. Veja que o tamanho das células indica o “peso” do PIB municipal (por isso São Paulo tem o maior tamanho). Os municípios estão juntos numa célula maior que indica o partido do prefeito. Já a cor representa cada grupo ideológico, agrupando os partidos. Claramente vemos uma preponderância forte do grupo liberal conservador (em azul no gráfico). Isso se mantém inclusive se mudarmos o seletor para quantificação pelo eleitorado:

Mapa de Poder — Brasil, Eleições de 2020, Fator de Peso: Eleitorado

Clique para ver este painel em formato dinâmico.

Mas nem sempre foi assim. Vejamos o mesmo mapa, por PIB, em 2016:

Mapa de Poder — Brasil, Eleições de 2016, Fator de Peso: PIB

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Agora vejamos o cenário em 2012:

Mapa de Poder — Brasil, Eleições de 2012, Fator de Peso: PIB

Clique para ver este painel em formato dinâmico.

# Vemos que há uma mudança muito crítica de 2012 para 2016. As chamadas “esquerdas”, ou o que classificamos aqui como grupo intervencionista progressista, perdeu muita força. Veja que, em 2016, as grandes cidades migraram ou para o liberal progressismo ou para o liberal conservadorismo (veja descrição dos grupos mais acima). Creio que seja evidente uma correlação com os fatos trazidos pela Lava-Jato, bem como com o desgaste do programa econômico intervencionista, implementado a nível federal, no período.

# De 2016 para 2020, o que parece ocorrer é um fortalecimento ainda maior do grupo liberal conservador, principalmente sobre os liberais progressistas. É nítido o encolhimento do PSDB no período, apesar de o partido ainda manter o maior share do PIB nas mãos.

O gráfico abaixo resume a variação de poder dos 3 grupos ideológicos mapeados, ao longo dessas 3 eleições:

Repartição do PIB municipal entre grupos partidários — de 2012 a 2020

A tendência é a mesma se observarmos a repartição do eleitorado entre os grupos:

Repartição do eleitorado municipal entre grupos partidários — de 2012 a 2020

# Vemos claramente o encolhimento, primeiro entre 2012 e 2016, do intervencionismo progressista, e depois, entre 2016 e 2020, do liberal-progressismo, com crescimento consistente dos liberais conservadores. A primeira mudança provavelmente está relacionada à Lava-Jato (encolhimento das esquerdas a reboque do declínio do poderio do PT a nível federal).

# Já o crescimento dos liberais conservadores nessas eleições foi puxado fortemente pelos partidos do Centrão fisiológico (algo em torno de PSD, PP, MDB e PL) e ocorreu principalmente sobre o grupo liberal progressista (encolhimento do PSDB). Esse grupo responderá por mais da metade dos municípios até 2024. Há quem diga que as eleições de 2018, com muitos outsiders vencendo e decepcionando em seguida, geraram um certo desgaste da população com esse tipo de postura de quem “vem de fora” e acabou favorecendo a política mais tradicional, arraigada no interior, e dominada pelo Centrão.

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Dados utilizados: Dados abertos da Câmara e do TSE.

Códigos utilizados para análise: no meu Github.

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Por hora, é isso. Se gostou, compartilha aí!

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[1] As dimensões ideológicas que uso diferem das pensadas por Nolan, especificamente no eixo progressista. Nolan utiliza um conceito de “liberdades individuais”, e aborda mais pautas como aborto, pena de morte, casamento entre pessoas do mesmo gênero etc. Ocorre que essas pautas simplesmente não têm passado pelo Congresso (na realidade, o STF vem assumindo esse papel de analisar algumas dessas questões). Por isso, uso aqui o conceito de aderência às pautas progressistas, tais como vêm sendo trazidas ao Congresso.

[2] Essas pautas dizem respeito a ações do estado em questões sociais ou étnicas, por isso trouxe a convenção interamericana contra o racismo, a reforma do ensino médio, a taxação de igrejas e outros pontos.

[3] Essa votação do novo Fundeb decidiu, na Câmara, se ficava mantido o texto do Senado (que havia derrubado medida aprovada na Câmara, que permitia o direcionamento de parcela dos recursos a entidades privadas sem fins lucrativos) ou se valeria o original da Câmara. Assim, quem votou “não” apoiava o texto original, com tal previsão. Já o voto “sim” indicava a manutenção do texto do Senado, sem essa flexibilização.

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Leonardo Sales
Política com Dados

Egresso das humanas, mestre em economia do setor público, apaixonado por dados, python e música, intrigado com política.