Minerando o Fundo Eleitoral[2]: Breve análise demográfica da distribuição dos recursos

Leonardo Sales
Política com Dados
5 min readNov 9, 2020

Como dizia em postagem anterior desta série, meu amigo entusiasta do Fundão argumenta que o recurso público da campanha democratiza a participação e permite que os mais pobres também possam disputar os pleitos.

Vamos olhar o que dizem os dados¹. Analisamos aqui as distribuições do Fundão por características demográficas (faixa de patrimônio declarado, grau de instrução, raça e gênero). Para comparar dentro de um universo mais homogêneo dos dados, considerei na maior parte dessa análise apenas os pleitos a vereador.

-> Começando pelo patrimônio

Se os candidatos com mais patrimônio podem mais facilmente sustentar suas próprias campanhas, deve restar muito dinheiro dos fundos públicos ainda para serem distribuídos para os menos abastados, certo? Peraí:

Valor médio recebido do Fundão, por faixa de patrimônio declarado pelo candidato — vereadores

Bem, temos então algo “contraintuitivo” aqui. Os candidatos mais ricos, que em tese poderiam bancar suas próprias candidaturas, recebem muito mais recurso público para campanhas do que os mais pobres. Veja que a faixa mais à direita, que junta os candidatos com patrimônio superior a R$ 1 milhão tem 3 vezes mais acesso ao fundão que a faixa mais pobre (patrimônio < R$ 1 mil).

Se considerarmos todas as candidaturas, incluindo prefeitos, a situação é mais explícita: O grupo dos candidatos mais ricos recebeu em média R$ 30,4 mil, 15,64 vezes mais que os R$ 1946 do grupo mais pobre.

Entendo que a comparação mais adequada a se fazer é no mesmo grupo de candidaturas (pois pleitos a prefeituras são naturalmente mais caros), por isso foco a análise no grupo dos vereadores².

Isso na verdade é o retrato da concentração de poder nos partidos. Poucos caciques decidem o destino do dinheiro público do Fundão, perpetuando a concentração que os ajuda a se manter no poder.

-> Mais sobre patrimônio: Fator de Concentração por Partido

Criei aqui um indicador pra medir a concentração de recursos no grupo mais rico de candidatos. O Fator de Concentração leva em conta a razão entre a média de dinheiro do Fundão recebido pela classe mais rica (com patrimônio > R$ 1 milhão) e pela mais pobre (patrimônio < R$ 1 mil). No caso geral, como vimos, esse número é 3.

Vejamos o valor desse indicador por partido³:

Fator de Concentração de recursos na classe mais rica — candidatos a vereador

Veja que no caso extremo do DEM, o grupo mais rico dos candidatos do partido recebeu 15,6 vezes mais dinheiro do Fundão do que o grupo mais pobre. Num outro extremo, o PDT tem um Fator de Concentração bem menor, abaixo de 1 (0,58), sendo um dos 2 únicos casos em que o grupo mais pobre recebeu ainda mais do que o mais rico. Os partidos que mais concentram recursos do Fundão, PT e PSL (juntos os 2 somam R$ 400 milhões, ou 1/5 do total), têm índice de 2,5 e 1,4, respectivamente.

-> Grau de instrução

O volume de recursos é maior quanto maior for o grau de instrução do candidato:

Distribuição do Fundão por Grau de Instrução

-> Raça

Dentre os vereadores, o Fundão migra mais para Amarelos, Pretos e Indígenas:

Candidatos a vereador que se autodeclararam pretos receberam, em média, 70% a mais do que os autodeclarados brancos. Um palpite: isso pode decorrer da decisão recente do TSE que determinou que o montante total do Fundo direcionado a candidatos negros deveria ser proporcional ao seu quantitativo. Vejamos a seguir.

-> Um pouco mais sobre a distribuição dos recursos por raça do candidato

Como dito, decisão recente do TSE determinou proporcionalidade na distribuição dos recursos do Fundão para negros (pretos + pardos). No grupo dos vereadores, como vimos, a média repassada a negros é maior do que a média dentre brancos. Vamos entender isso seguindo esta linha de raciocínio:

  • A proporção geral de negros (pretos + pardos) entre todas as candidaturas é de 50%.
  • Pela regra do TSE, a distribuição dos recursos deve seguir a mesma proporção (50% serem repassados a negros), podendo variar um pouco porque a conta deve ser feita dentro de cada partido.
  • Atente para o seguinte: pelos números de hoje, 70% dos recursos do Fundão vão para as candidaturas a prefeito (30% pros vereadores)! Isso ocorre porque as eleições de prefeito são muito mais caras. Na média, um candidato a prefeito recebeu R$ 54,6 mil do Fundão até agora. O pleiteante a vereador, R$ 1,3 mil.
  • Perceba também: dentre os candidatos a prefeito, as candidaturas de negros (pretos + pardos) representam somente 35% (lembre que, no geral, esse percentual é de 50%).
  • Então o que ocorre é o seguinte: como 70% dos recursos estão migrando para um grupo de candidaturas majoritariamente branco, é gerado um déficit na distribuição dos recursos que precisa ser compensado nas eleições para vereador, ou não restaria cumprida a determinação do TSE.
  • Atualmente, 40% dos recursos migraram para candidaturas negras, no geral. Dentre os pleiteantes a prefeito, esse número é de 34%. Dentre os concorrentes a vereador, 55%.

-> Gênero

Dentre as candidaturas a vereador, mulheres recebem em média 47% a mais do que homens:

Esse também é um resultado intrigante. Assim como no caso da distribuição por raça, os partidos são obrigados a manter a proporcionalidade no repasse do Fundo, por gênero. Além disso, existe uma cota de participação mínima de 30% de candidaturas femininas.

Mais uma vez, é possível que os partidos se vejam obrigados a compensar uma eventual desproporção de candidaturas masculinas a prefeito (mais caras), direcionando proporcionalmente mais recursos às mulheres candidatas às câmaras municipais.

É exatamente a mesma lógica do que pontuamos sobre a distribuição entre raças. Veja que as mulheres, em geral, representam 33% das candidaturas. Nos pleitos às prefeituras, porém são somente 13,4%. Como 70% dos recursos vão pras disputas de prefeitura, a proporção tem que ser corrigida nas de vereadores.

Vamos aprofundar essa questão futuramente.

Até lá.

[1] Utilizei na análise dos dados do Repositório de Dados do TSE, com atualização de 06/11/2020. Se tiver interesse no código em Python utilizado pra fazer esta análise: aqui.

[2] Aliás, se filtrarmos somente pelas candidaturas de prefeito, a relação é bem similar. Candidatos da faixa de maior patrimônio receberam 3x mais que a classe mais pobre.

[3] Só analiso neste trecho os partidos com pelo menos R$ 1 milhão do Fundo Eleitoral já repassado a candidatos.

--

--

Leonardo Sales
Política com Dados

Egresso das humanas, mestre em economia do setor público, apaixonado por dados, python e música, intrigado com política.