Minerando o Fundo Eleitoral [1]: Como todo o dinheiro do fundão migra pra meia dúzia de caciques partidários

Leonardo Sales
Política com Dados
6 min readOct 27, 2020

De onde menos se espera, daí é que não sai nada.

Barão de Itararé

Esta semana conversava com um amigo. Eu reclamava de ter que bancar a estrutura dos partidos políticos e as próprias eleições. Coisas como fretamento de aeronaves e pagamento de salários milionários pra políticos sem cargo me deixam com a leve sensação de que algo errado não está certo.

Meu amigo é um otimista: “Mas veja que o fundo especial, por exemplo, que financia as campanhas, permite uma participação mais democrática na política. Pessoas mais pobres, sem recursos próprios, têm assim a chance de pleitear cargos”.

Ok, mas como sou descendente de São Tomé, resolvi olhar o que os dados dizem¹. Afinal, o Fundão está aí desde 2017. Valeu pras eleições de 2018 e deste ano. Esta série de postagens explora os dados das prestações de contas das eleições de 2020, numa sequência de análises que mostrarão o que ocorre na prática da utilização desses recursos. Assim, poderemos testar se a visão de copo meio cheio do meu colega condiz com a realidade.

Primeiramente, vejamos a distribuição dos recursos. O primeiro ponto, quando se fala que o fundão democratiza o acesso às campanhas, é entender como os recursos são distribuídos entre os candidatos. É de se esperar que haja uma divisão mais ou menos igualitária do dinheiro, certo? Mas não há.

O histograma abaixo ilustra a distribuição geral dos recursos do Fundão, dentre os candidatos a vereador:

Histograma dos valores do fundo recebidos por candidatos a vereador

Perceba que grande parte dos candidatos ou não recebem nada ou recebem muito pouco. Num outro extremo, pouquíssimos candidatos (mal visíveis no gráfico) receberam mais do que R$ 50 mil. O maior valor repassado a um único candidato a vereador foi para Vítor Abou Anni, do PSL, que disputa o cargo em Taboão da Serra/SP: R$ 2 milhões. Ele sozinho terá à disposição mais de 1,5% dos recursos!

Em números precisos, a eleição deste ano conta com 113249 candidatos a vereador nos 5 mil e tantos municípios brasileiros. Pois bem, apenas 760 candidatos concentram 50% dos recursos do Fundão.

Aqui vemos os 10 candidatos a vereador com maior valor recebido:

Receita do fundão por candidato a vereador — Top 10

Esse padrão se confirma nos partidos. Este é o histograma do PSL:

Histograma dos valores do fundo recebidos por candidatos a vereador — PSL

No caso do PSL, além de Vítor Abou Anni, que é o recordista nacional em receitas, com R$ 2 milhões, os outros 2 candidatos com maior volume recebido foram Janaína Ester Dias, candidata em Belo Horizonte (R$ 690 mil) e Alberto Pimentel Jr, de Salvador (R$ 350 mil).

E esta é a distribuição no PT:

Histograma dos valores do fundo recebidos por candidatos a vereador — PT

No PT, os 3 candidatos a vereador com mais recursos do Fundão são Paulo Batista dos Reis (R$ 100 mil), Juliana Cardoso (R$ 100 mil) e Alfredo Cavalcante (R$ 97,5 mil), todos candidatos em São Paulo/SP.

Quantificando a Desigualdade

Essencialmente estamos falando de desigualdade. Uma medida matemática que ajuda a entendê-la é o chamado Coeficiente de Gini, muito usado na quantificação da desigualdade de renda nos países.

O Coeficiente de Gini é derivado da Curva de Lorenz, que dispõe num eixo o % acumulado da população em ordem crescente de renda e num outro o % acumulado da renda. Numa situação hipotética de absoluta igualdade (todos recebem igualmente), sua configuração é esta:

Curva de Lorenz — distribuição hipotética

Observe no gráfico acima que os pontos da distribuição estão sobrepondo a diagonal do gráfico. Isso significa que todos os integrantes da população possuem exatamente o mesmo montante. Por outro lado, supondo uma situação de alta desigualdade, teríamos esse formato:

Curva de Lorenz — distribuição hipotética

Pois bem, esta é a configuração da distribuição do Fundão em 2020:

Curva de Lorenz — Distribuição do Fundão entre candidatos a vereador

Desigual, né? O Coeficiente Gini é simplesmente a razão entre a área formada pela junção da distribuição com a diagonal principal e a área do triângulo formado pela diagonal e os eixos. Varia de 0 a 1 (sendo que quanto mais próximo de 1, maior a desigualdade).

O coeficiente de Gini, dentre os vereadores, é de 0,96.

Há variação entre os partidos². Vejamos o Gini calculado para cada um:

Gini calculado por partido

Nítido que a tendência é uma altíssima concentração dos recursos. DEM, PMB, MDB e PSDB beiram o limite do índice. Um destaque positivo é o PCO, que distribuiu igualmente o dinheiro entre todos os candidatos (R$ 1000 para cada) e tem Gini = 0. Mas o PCO, assim como o PSTU e o PCB, também mais igualitários na distribuição, são partidos muito pequenos e que respondem por uma parcela ínfima do Fundão.

Dentre os não nanicos, o PSOL tem o menor (melhor) índice, ainda assim num patamar bem alto (0,78): se fosse um país, o PSOL seria ainda mais desigual que a África do Sul, país mais desigual do mundo, que tem Gini de 0,63.

Inércia Política

Observando os “privilegiados” de cada partido, fica claro um padrão: Ou são já políticos com mandato (disputando novos cargos ou reeleição) ou são parentes de políticos, ou as 2 coisas. Vejamos alguns exemplos:

  • Vítor Abou Anni (PSL), o recordista absoluto em recursos recebidos, é filho do Deputado Federal Abou Anni. Outro filho dele (Abou Anni Filho) também é candidato a vereador nesta eleição.
  • Milton Leite da Silva (DEM), segundo colocado no ranking geral de receitas, é vice-presidente da câmara municipal de São Paulo.
  • Janaína Cardoso Dias (PSL), segunda maior beneficiária do Fundão no PSL, é ex-esposa de Marcelo Álvaro Antônio, deputado federal (PR) por MG e atual Ministro do Turismo.
  • Paulo Batista dos Reis (PT), candidato com mais recursos recebidos no PT, já é vereador por São Paulo/SP e vai disputar a reeleição.

Esse padrão reforça a inércia do poder de quem já o possui. É muito difícil pra um cidadão comum, “de fora” dos grupos políticos, tentar adentrar a política. Tomemos o exemplo de um candidato à reeleição. É fato que durante o mandato tal candidato tem acesso a inúmeros recursos que favorecem “colar” seu nome na mente dos eleitores (e outra parte do seu corpo na cadeira):

  • Acesso a cotas para divulgação do mandato;
  • Custos de correspondência bancados;
  • Verbas para constantes deslocamentos às bases;
  • Mídia oficial à disposição.

Esses são somente alguns exemplos. E a isso vão se somar os recursos do Fundão, que, como vimos, vão se concentrar em políticos de carreira. A transferência de recursos para parentes é outra vertente do mesmo problema.

Tudo parece funcionar para criar entraves à renovação política.

Pois é. Juro que tentei, mas os dados acabaram derrubando a tese do “Fundão democratizador” da participação nas eleições. Mas não vou desistir. Na postagem seguinte, vamos verificar outro ponto do argumento do meu colega “pró-fundão”: Será que os recursos, mesmo que concentrados, estão beneficiando os mais pobres?

Até lá.

Olha, quem tá fora quer entrar, mas quem tá dentro não sai.

Dominguinhos

[1] Análise feita com dados atualizados até 27/10, quando cerca de 50% dos recursos já haviam sido repassados.

[2] Índice não calculado para o Novo, que não utiliza recursos dos fundos eleitorais.

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Leonardo Sales
Política com Dados

Egresso das humanas, mestre em economia do setor público, apaixonado por dados, python e música, intrigado com política.