Teto ou peneira? O que faz o salário dos magistrados brasileiros estar tão frequentemente acima do teto?

Uma análise de dados sobre os penduricalhos salariais do judiciário

Leonardo Sales
Política com Dados
6 min readJun 20, 2024

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Os anos de pandemia fizeram grande parte da população brasileira ter considerável perda de renda. Esta pesquisa da FGV aponta para um decréscimo de 20% na renda média do brasileiro no período. Essa perda não atingiu de forma alguma o setor público, muito menos uma classe específica de servidores: os magistrados.

Essa categoria de funcionários do estado detém um leque bastante variado de acréscimos nas folhas, que podem incluir desde auxílio alimentação, moradia e saúde até reembolso de plano de internet. Atualmente está em discussão no congresso a PEC do quinquênio, que poderá elevar em até 35% os vencimentos, simplesmente em decorrência da passagem do tempo.

Analisei aqui todas as folhas salariais de magistrados entre 2017 e 2023, considerando os dados disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça em sua página de transparência¹. O objetivo foi entender os principais fatores que fazem com que os salários superem o teto constitucional, atualmente de R$44008.

Foram analisados mais de 1.726.750 contracheques, que esmiuçam as remunerações de aproximadamente 24 mil magistrados (incluindo alguns já aposentados). Vamos aos resultados²:

→ Média líquida mensal varia entre R$ 35,6 mil e R$ 63,7mil, a depender do grupo de tribunais

Este quadro resume os recebimentos líquidos mensais de magistrados entre 2017 e 2023:

Rendimentos líquidos mensais de magistrados entre 2017 e 2023

Observe que os recebimentos líquidos (já descontados Imposto de Renda e contribuição previdenciária) chegaram a R$ 63.689,92 no caso dos magistrados da Justiça Militar estadual. Além disso, as remunerações líquidas chegaram a aumentar 57% e 40%, na média, no caso da Justiça Militar estadual (TJMMG, TJMSP e TJMRS) e dos Tribunais de Justiça estaduais, respectivamente.

→ Remunerações brutas médias chegam a R$ 80,5 mil nos Tribunais de Justiça Militares estaduais e R$ 69,3 mil no CNJ

O quadro abaixo resume os recebimentos brutos (todos os recebimentos, descontado apenas eventual “abate-teto”) mensais dos magistrados:

Resumo das remunerações brutas médias — Magistrados — 2017/2023

Os rendimentos brutos são o melhor parâmetro de comparação com a realidade brasileira, uma vez que os bancos de dados de salários do setor privado informam os valores antes do desconto de Imposto de Renda e contribuição previdenciária. Veja no quadro acima que houve aumento significativo nos valores brutos constantes dos contracheques dos magistrados dos Tribunais Militares estaduais, TJs e Conselhos.

→ A média de recebimentos anuais é de R$ 703 mil. 30 juízes receberam mais de R$ 500 mil em uma única remuneração em 2023.

Os valores anuais recebidos se distribuem conforme o gráfico abaixo:

Distribuição dos valores anuais recebidos por magistrados, em R$ milhões

Veja que a soma anual oscila em torno da média de mais de 0,7 milhão por magistrado.

→ O teto remuneratório previsto na constituição foi ultrapassado em 77% das vezes, entre 2017 e 2023

A Constituição Federal prevê um teto remuneratório aplicável a todos os servidores públicos, incluindo magistrados. Esse limite é o subsídio (remuneração bruta) do ministro do STF, previsto em lei ordinária, com valor atual de R$ 44.008,52³.

Ocorre que diversos regramentos infraconstitucionais estabelecem exceções ao teto salarial, geralmente justificando a necessidade de se pagar parcelas classificadas (convenientemente) como indenizatórias.

Pelos dados já apresentados (vimos que a MÉDIA das remunerações brutas nos Tribunais Militares estaduais, por exemplo, foi de mais de R$ 80 mil), é nítido que esse limite é recorrentemente ultrapassado.

De fato, ao checar folha a folha, vemos que 1.228.375 dos 1.726.750 contracheques analisados apresentaram valor bruto acima do limite constitucional: isso representa 71,1% de pagamentos acima do teto.

Vale ressaltar que todos esses pagamentos são feitos, a princípio, dentro da lei. Aliás, é aí que está o problema: nossas leis são por demais permissivas na criação de exceções ao texto constitucional. Parte das parcelas remuneratórias consideradas “à parte” do teto são claramente justificáveis (um exemplo é o pagamento do 13º salário), mas outras são bastante questionáveis (auxílio saúde e moradia, por exemplo).

Para checar se o valor da remuneração estava acima do teto considerei o valor do salário bruto, somados todos os pagamentos adicionais, mas descontando eventual “abate-teto”, valor descontado de ofício da folha salarial no caso da soma das parcelas brutas (obviamente sem contar as parcelas classificadas como exceção à regra do teto) estar acima do limite.

Essa proporção varia de acordo com os grupos de tribunais:

Proporção de folhas acima do teto constitucional, por grupo de tribunais — 2017 a 2023

Perceba que no mínimo 49% das folhas estão acima do limite estabelecido na constituição. No caso dos TRFs, chega-se a 81%. Embora não sejam indevidos ou ilegais, a recorrência desses pagamentos, sempre entendidos como de caráter indenizatório, mostra que a regra do limite remuneratório acaba sendo, para essa categoria de servidores, inócua.

→ Evolução do percentual de folhas acima do teto

% de folhas acima do teto — 2017 a 2023

Em 2018 o teto remuneratório subiu de R$ 33,7 mil para R$ 39,2 mil, o que explica a queda de 79% para 63%. Desde então o descumprimento vem subindo, em que pese os sucessivos novos aumentos no valor do teto, que hoje está em R$ 44 mil.

→ Principais parcelas remuneratórias adicionais em 2023

Contabilizei aqui o montante total pago em 2023 a magistrados, por tipologia de parcela remuneratória:

Montante pago a magistrados — parcelas adicionais ao salário — ano de 2023

Os pagamentos retroativos, em 1º no ranking, somam R$ 1,4 bilhões. Podem ser referir a pagamentos atrasados de qualquer uma das tipologias existentes. A Gratificação Natalina, em 2º, é o 13º salário do serviço público. As indenizações de férias se referem à “venda” de férias por magistrados. Isso é decorrência da previsão de 60 dias de férias para juízes (onde até 30 podem ser recebidos em indenização, o que na prática cria uma espécie de 14º salário).

→ Ao longo dos anos, o valor total em “acréscimos” aumentou

Volume anual de “acréscimos” salariais, entre 2017 e 2023

Em 2023 foram R$ 5,73 bilhões em parcelas adicionais! A mesma tendência é observada ao dividirmos o volume anual pelo número de magistrados com contracheques divulgados:

Volume per capita anual de “acréscimos” salariais, entre 2017 e 2023

Em 2023 cada magistrado recebeu, em média, R$ 187 mil a mais do que a remuneração básica. Esses gráficos mostram que, daquela média salarial anual acima de meio milhão, boa parte vem desses acréscimos que pingam rotineiramente na conta dos magistrados, pra tristeza de quem banca.

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Mais uma vez vale ressaltar que todos os tipos de adicionais aqui detalhados são previstos em lei, e pagos, a princípio, devidamente. O problema, na verdade, é justamente esse (ser legal). Se fossem flagrantemente ilegais, órgãos de controle teriam agido. Sendo legal, nos resta criticar e cobrar por mudanças na lei.

Na busca de resolver distorções como as apresentadas nessa análise, projetos de lei tramitam há muitos anos no Congresso. Esses textos visam limitar a criação de parcelas remuneratórias que fujam à regra do teto salarial, por exemplo. Um deles é o PL 6726, criado pela “Comissão Externa do Extrateto”, do Senado Federal, em 2016.

Os dados

Os dados utilizados foram baixados diretamente do painel disponibilizado pelo CNJ, uma excelente ferramenta de transparência.

Para análise, utilizei Python. O código está aqui, no Github.

[1]Painel de remuneração de magistrados, disponibilizado pelo CNJ: https://paineis.cnj.jus.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=qvw_l%2FPainelCNJ.qvw&host=QVS%40neodimio03&anonymous=true&sheet=shPORT63Relatorios

[2] Resumo de definições utilizadas e do escopo da pesquisa:

  • O “abate-teto” foi um campo calculado a partir do valor absoluto do campo “Retenção por Teto Constitucional (8) (R$)” (pois aparece com valor positivo ou negativo, a depender do tribunal).
  • A “remuneracao_bruta” significa todos os recebimentos do mês mais diárias e remuneração de outros órgãos, descontado o “abate-teto”.
  • A “remuneração liquida” equivale à coluna “Total (10) + (11) + (12)”.
  • Desconsiderei remunerações inferiores a R$ 20 mil, pois não existe tribunal que remunere abaixo desse patamar. Valores menores possivelmente decorrem de ajustes de folha, que não interessam a esta análise.
  • Desconsidero magistrados denominados “0” nas tabelas do CNJ, pois indicam que são linhas de somatório das tabelas, enviadas por engano pelo tribunal.
  • Considero apenas folhas entre 2017 e 2023.

[3] Em 2020, o STF estendeu o limite federal à magistratura estadual: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=456773&ori=1.

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Leonardo Sales
Política com Dados

Egresso das humanas, mestre em economia do setor público, apaixonado por dados, python e música, intrigado com política.