A luta por políticas públicas que salvem as mulheres

Brunna Oliveira
Política e Economia
12 min readNov 26, 2018

Waleska Vasconcellos é professora de história e pós-graduada em antropologia cultural pela UFRGS, pela PUCRS a profissional realizou sua segunda pós-graduação em ciência política e planejamento. A professora faz parte do diretório do Partido Democrático Trabalhista (PDT). Além disso, ela também conta com cursos realizados pela ONU em enfrentamento a violência.

Segundo ela, o gosto pela política é uma herança de família, ensinada ainda quando criança por sua mãe. Em 2013, Waleska abandonou temporariamente as salas de aula para assumir o cargo de secretária de políticas públicas municipais até o final de 2017. A militante política feminista conseguiu aprovar algumas leis em enfrentamento a violência contra a mulher.

Durante esse período, Waleska tamém assumiu a coordenação do centro de referência Màrcia Calixto, onde pôde ajudar muitas mulheres vítimas da violência. No centro, era feito o acolhimento e muitas vezes reflexões sobre a violência de gênero.

Waleska teve a vida pautada dentro de movimentos sociais enquanto acompanhava sua mãe que começou com o movimento social de bairro.

Waleska, conta pra nós um pouco sobre a tua história e onde tu iniciaste a tua vida política?

Eu nunca quis ser uma professora de história tradicional, ou eu nunca quis ser aquela professora alfabetizadora que eu acho que são as heroínas. Ensinar alguém a juntar as frases que montam um pensamento, é incrível o que essas mulheres fazem. Inclusive, nós temos falamos os professores, mas nós mulheres, somos mais 80% dessa classe. Vamos falar professoras.

A minha trajetória de vida começa enquanto um ser consciente, mas com os ensinamentos da minha casa. Eu costumo dizer que ética é algo que vêm de casa. Se tu não traz isso de casa não é a academia que vai te dar. Tratar as pessoas com educação e respeito, isso é a moral que eu falo. Eu devo isso aos meus pais.

Eu sou filha de dois trabalhadores, minha mãe foi uma lutadora pela democracia na época da ditadura militar. Meu pai também, mas de uma forma mais discreta. Minha mãe teve um destaque maior já que minha mãe começou a participar do movimento de mulheres e eu a acompanhava nas reuniões ainda muito pequena.

Sabemos que além de ter sido Secretária de Políticas Públicas municipais, tu também foi coordenadora do centro de referência de violência contra a mulher. Como nasceu o centro de referência Márcia Calixto?

Na verdade o centro Márcia Calixto, iniciou com base em um decreto assinado pelo prefeito na época, José Fortunati.

Nós colocamos esse nome para homenagear e marcar uma funcionária do município de Porto Alegre que foi assassinada pelo marido em julho de 2012.

Ela era uma funcionária importante para o município — assim como todos os outros — mas porque a Márcia, como enfermeira, tinha um trabalho com doenças respiratórias contagiosas, frisando principalmente na tuberculose. Ela ia nos lugares onde ninguém queria ir, como por exemplo os presídios.

Primeiro o seu filho foi assassinado e em seguida ela foi brutalmente assassinada. Segundo a perícia, o marido queria que ela chegasse até o quarto e encontrasse o filho morto. Ele havia sido morto enquanto estava dormindo. A morte da Márcia é resultado do machismo que a gente enfrenta.

Como você iniciou o trabalho como coordenadora no centro?

Eu aceitei o desafio de sair de sala de aula e fazer algo por acreditar e não pela remuneração, eu me preparei bastante para isso. Eu fiz isso também, além de ter o perfil para a função, foi feita uma escolha dentro da organização de mulheres que eu pertence, que é a ‘Ação da Mulher Trabalhista’.

A ‘Ação da Mulher Trabalhista’ é um movimento de mulheres do PDT, que é o partido democrático trabalhista ao qual eu pertenço. Então as companheiras entenderam que eu deveria atuar como secretária naquele período. E então eu saio do magistério no final do ano de 2012 e na primeira semana de janeiro (2013) eu assumo a secretaria.

Entre as políticas que já estavam sendo desenvolvidas, já estava sendo desenvolvido isso em parceira com o Conselho Municipal da Mulher, o centro de referência que é o enfrentamento a violência contra as mulheres. Esse centro de referência é uma exigência, pois a Lei Maria da Penha prevê isso. Todos os municípios, principalmente as capitais, devem ter um centro de referência que atendam as mulheres vítimas de violência.

Infelizmente, nem a Lei Maria da Penha conseguiu corrigir isso, mas a porta de entrada das mulheres é a delegacia ainda. Ela deveria ser o centro de referência, mas é a delegacia que às vezes, é o lugar mais próximo se for uma delegacia distrital. Isso também está na Lei Maria da Penha, não precisa necessariamente ser uma delegacia da Mulher. Só é necessário um funcionário que esteja preparado, com conhecimento e acumulo nesse assunto.

E dessa forma eu fui “parar” na Secretaria de Políticas Públicas para as mulheres e durante quatro anos nós fizemos um trabalho bem bacana em várias áreas.

Tu pode nos dizer como era a atuação do Centro na época da tua atuação?

Atuávamos de diversas formas: no enfrentamento, na questão da mulher no mundo do trabalho e também aprovamos muitas leis. Nós sempre buscamos fazer que a mulher esperasse o menor tempo possível para receber o atendimento.

Antes, por exemplo, nós recebíamos mulheres que chegavam até o centro de referência e às vezes não conseguiam vaga em uma escola para os filhos, próxima ao centro de referência.

Nós criamos uma lei, que não sabemos hoje se é aplicada, mas que uma mulher estando em perigo num processo de violência e estando em um centro de referência ou em que estejam sendo abrigados em abrigos, os filhos e filhas devem ir para uma escola próxima ao centro. Dessa forma, tendo vaga ou não (em escolas) as pessoas terão que criar um mecanismo de aceitar essas crianças.

Às vezes uma mulher pode ficar uma, duas semanas em um centro de referência, mas também acontece de permanecer durante anos.

Tivemos um caso de uma menina que chegou com quinze para dezesseis anos e ficou até os seus vinte anos. Ela sofria violência doméstica, mas é importante entender que violência doméstica não é apenas pelo casal, como no caso dela que sofria os maus tratos pela tia.

Ela que procurou por vocês? Tu sabe como está a situação dessa menina hoje?

Atualmente ela mora sozinha e a própria equipe fez um trabalho para torná-la independente. A menina tem deficiência intelectual, então ela não conseguiu aprender a ler e ela precisava aprender a lidar com o dinheiro e tudo isso foi ensinado no centro de referência. Então foi feito um trabalho grande.

Sempre que eu falo nela eu me emociono, pois ela era uma pessoa que ninguém quis. Ela sempre esteve sozinha. A mãe morreu no parto e ela foi “rolando” por parentes, até que essa tia começou a criá-la, não como um ato de bondade mas porque fazia a menina de empregada.

Eu sempre me preocupei muito com a situação dessa garota, pois quando nós analisamos os casos nós sabíamos que ela não tinha para onde ir. Nós fizemos contato com a família no interior e o tio disse que não poderia manter uma pessoa retardada. Ninguém queria essa menina. Esse foi um dos momentos mais tristes.

Durante esses quatro anos tu viu e viveu muitas coisas. Tu acredita que teve alguma mudança dentro de ti com essa experiência?

Eu acredito que qualquer coisa produz mudanças na gente. Podem ser experiências mais ou menos volumosas, mas qualquer coisa que saia do teu tradicional: acordar, tomar banho, tomar café, ler jornal, trabalhar; Eu acho que isso sempre nos provoca mudanças. Eu penso que sai melhor. Eu acho que a gente sempre sai diferente.

Teve algum momento específico que foi mais tenso de lidar?

Tivemos momentos bastante tensos ali dentro, nós nunca tivemos uma segurança específica para aquele lugar. Então a segurança era feita por nós. Eu, junto com outros funcionários, já espantei marido agressor que seguiu a mulher até o centro de referência.

A RBS fez uma matéria conosco em 2013 sobre mulheres que são vítimas de violência. Na verdade eles queriam falar sobre um caso específico que atendemos. Uma moça chegou até nós e ela sofria de violência patrimonial, dentro do espectro da violência isso existe.

Ele era muito sedutor, segundo ela, então ela não precisou passar bens para o nome dele. Ele abriu um bar no nome dela para ele. Comprou outros bens materiais para ele e ela acabou se endividando. Nós acolhemos e a ajudamos. Ela fez atendimento conosco, inclusive fez parte do grupo chamado “Grupo de Partilha” que acontecia quinzenalmente e que no início começou com duas mulheres e terminou com quase setenta, onde elas dividiam suas experiências de violência.

A RBS fez essa matéria, eles queriam mostrar qual o perfil dessas mulheres que sofrem essa violência patrimonial, mulheres que algumas vezes são carentes e têm um pouco mais de idade. Em troca, o veículo divulgou o centro de referência.

A mulher vítima do galã de subúrbio quis aparecer em um ato de coragem para ajudar outras mulheres. O homem acusado nos processou, processou a vítima e o veículo, por difamação e que acabou não dando em nada.

Além disso, acontecia da mulher levar a família inteira para o centro. Nós tínhamos estrutura e alimentamos essas pessoas. Tentar distrair as crianças enquanto a mãe fazia o atendimento e estava totalmente despedaçada.

Tivemos contato com agressores de outros países nessa grande diáspora que os povos estão fazendo. Pessoas que vieram para cá, com outro perfil de violência. Precisamos parar e pensar nos dois lados: pensar primeiramente na mulher e entender quem são essas famílias que estão fazendo essa diáspora. Quem são eles e o que eles pensam sobre isso tudo.

Existia uma troca entre si pelas mulheres que procuravam o centro?

Então, essa troca que acontecia no grupo era muito legal. Eu sou solidária com todos, mas a solidariedade é horizontal. Eu posso ser com qualquer pessoa, mas a generosidade tem uma verticalidade. No grupo, elas aprenderam a se conhecer, se respeitar e a se ajudar.

O que acabou de surgir “ninguém larga a mão um do outro”, isso foi muito bacana, pois víamos lá dentro. Nós conseguimos manter esse grupo por quase dois anos. Não deu mais, pois muitas saíram de Porto Alegre em função da violência, outras não quiseram mais ir. La dentro nós passamos por situações bem complicadas.

Pelo que tu contou, foi um trabalho um tanto significativo para o município. Tu percebe que esse trabalho acontece hoje dessa mesma forma?

Eu acho que a gente fez um trabalho muito bom que fizemos. Hoje a gente não tem metade disso.

Acredito que isso seja uma questão de comprometimento de governo. Existem governos que são comprometidos com isso, alguns mais ou menos e outros não são nada comprometidos.

A primeira coisa para gente que é dessa área, que faz independente de ter militância política, mas essa militância partidária, a gente vai ver no programa político onde estão as mulheres inseridas.

Eu não acho que isso seja justificativa pra a gente perdoar determinados erros, mas precisamos perceber se um partido que tem seu programa direcionado a uma eleição a consideração pelas mulheres. Leva em consideração no sentido: as mulheres estão ali presentes? O que eu posso fazer por ela?

Nós somos 52% da população, então nós precisamos estar em algum lugar. Nós precisamos nos sentir contempladas.

Quando nós falamos da Lei Maria da Penha, que aumentou os casos de violência, não, ela apenas deu visibilidade. Quando existe uma lei, seja qual for, como a homofobia que vê como crime hediondo quem bate, mata e humilha, é dado o direito a quem vê um desses atos acontecendo ir lá e denunciar. E no momento que tu denuncia isso aparece. É isso o que acontece com a Lei Maria da Penha.

Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos, foram registrados no primeiro semestre desse ano quase 73 mil denúncias. Tu acha que esses números seriam menores se tivessem políticas públicas mais efetivas?

Com certeza, quer dizer, não posso dizer com certeza mas eu acredito que sim. Nós temos hoje um trabalho feito pelo centro de referência de Porto Alegre, que eu gostaria de elogiar e destacar que temos ótimos profissionais lá dentro. São mulheres que resistem bravamente à luta do rochedo contra a maré. Elas são marisco com certeza, mas elas estão lá resistindo.

Nós não podemos deixar de falar das delegacias da mulher, especificamente aqui em Porto Alegre a doutora Tatiana faz um trabalho muito bom. Ela é muito parceira das mulheres.

Se a gente tiver canais de denúncia e a gente tiver um olhar mais direcionado para essa questão, a gente diminui esses dados. Até aumenta o numero de pessoas, mas porque existe uma lei que ampare.

Eu penso que quanto mais organismos de políticas públicas tu tiver na sociedade, mais tu diminui esses dados.

Além disso, nós também temos a questão cultural do Rio Grande do Sul. Sabemos que é um dos estados mais machistas em todo o país, tu acha que a luta feminina tem ajudado a reduzir esses dados?

A Lei Maria da Penha não é um colete a prova de balas. Tu não dás uma medida protetiva e diz que tu esta superprotegida e nada vai acontecer.

O machismo transcende isso. Ao contrário do que muitos dizem o machismo não é o oposto de feminismo. Não tem a mesma significação.

O machismo mata e o feminismo constrói, abre portas, abre as janelas da nossa vida. É pra isso que o feminismo também veio. Veio para lutar e defender as mulheres. Veio para reivindicar. Ele abriu as portas das mulheres no sentido de dizer “vai, o mundo também pode ser teu”.

Tu pode trabalhar isso nas escolas, levando o centro de referência que faz esse trabalho, os técnicos que fazem adaptações para cada série e ano escolar. Educação infantil, ensino fundamental, series iniciais, adolescentes. Cada um com um tipo de material que ajude desde cedo a pensar esses temas.

Tu como professora e uma mulher engajada a política, qual a tua opinião sobre a escola sem partido?

A impressão que eu tenho é que quem defende a escola sem partido está defendendo uma mordaça para os professores e para as pessoas da área da educação.

Eu não tenho nenhum problema de assistirem a minha aula, até porque quando a gente faz estágio, assistem a nossa aula.

Eu acho que essa interferência dentro da sala de aula pode ocorrer, mas de outra forma. Eu acredito que é uma tentativa de não falarmos mais em Paulo Freire, que virou demônio de alguns grupos políticos partidários, coitado, até já morreu.

O Paulo Freire é como um profeta do amor. Ele fala em construirmos coletivamente. Segundo ele, não existe professor que ensina e aluno que aprende e sim uma troca. E isso eu acho bonito em qualquer matiz ideológico, bonito na direita, esquerda ou centro.

Acho que é uma tentativa grotesca e agressiva de calar os professores.

Eu ouvi uma vez um médico ligado a um conselho dizer que, não com essas palavras, mas ele deu a entender que o programa Mais Médicos não era um problema, mas os médicos Cubanos eram. Eu nunca consegui entender essa frase porque a impressão que eu tive era — que existia um problema — com os médicos cubanos. A mesma coisa acontece com a Escola sem Partido. Eles querem que não se fale mais em Paulo Freyre e Simone de Beauvoir, Emilia Ferreiro, eles querem que fale em outras pessoas.

Eu sou professora de história e quando trabalho a era Vargas, eu falo da aproximação do Vargas com regimes totalitários. Eu falo tanto em Mussolini quanto em Hitler, falo da vida dessas pessoas. Eu não acho que o meu aluno vai sair dali e falar que todo o judeu tem que ser morto e que odiará os gays, eu acho que ele vai ouvir e filtrar. Não acho que ele vai sair da aula e fazer um grupo neonazista.

Para mim isso é uma sandice, é fruto de pessoas que realmente deveriam se preocupar com toda a questão da corrupção. A corrupção é filha do desgoverno, filha do pouco investimento nas políticas públicas pras pessoas.

A gente não pode construir uma sociedade onde tu ensina que tu deve “merecer” algo, o poder público no momento em que é eleito deve governar para todos.

Entrevista com a professora e ex secretaria de políticas públicas municipais, Waleska Vasconcellos. /Foto: Kizzy Morais

Memorial

Enquanto conversava com uma amiga, falávamos sobre a violência contra a mulher no Rio Grande do Sul e como muitas vezes nos sentíamos abandonadas pelo governo.

Comentei com ela sobre a entrevista ping-pong e a vontade de falar com algum político que tivesse como luta o enfrentamento à violência contra a mulher. Logo ela me falou sobre sua professora de escola, coordenadora do centro de referência Márcia Calixto.

Puxei conversa pelas redes sociais e a Waleska foi extremamente simpática, marcamos então um encontro em uma cafeteria no bairro Bom Fim. Antes de iniciar a conversa, Waleska contou sobre suas lutas e suas percepções das eleições 2018, ela abriu sua vida para nós. Posso dizer que fizemos muito além do que apenas falar sobre política.

Desde o primeiro momento seu carisma foi contagiante, a mulher feminista que estava em minha frente falava com tanta força e resistência que era inspirador. As horas corriam enquanto ficávamos em prosa na cafeteria aos arredores do parque Farroupilha.

Waleska como uma boa professora, nos deu uma aula de história, fez com que nos questionássemos e ajudou em nossa reflexão sobre as políticas feitas para as minorias.

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Brunna Oliveira
Política e Economia

Pegando as palavras de Hilda Hist emprestadas: penso que escrever serve mais para perdurar. Para existir fora de nós mesmos, nos outros.