A melodia de um historiador na política

Matheus Dias Lourenço
Política e Economia
49 min readDec 4, 2018
Matheus Gomes, candidato à Deputado Estadual do Rio Grande do Sul. / Foto: Facebook

Por Matheus Dias

De músico à candidato ao cargo de Deputado Estadual do RS, Matheus Gomes acredita na união do povo na luta pelos direitos sociais.

Militante na política e no movimento negro, Matheus Gomes nasceu e criou-se em Porto Alegre. Desde muito novo, por influência dos pais, ele se interessou pela política, já que a mãe é atuante no movimento negro e o pai participou de mobilizações políticas na década de 90.

Nascido em 1991 (27 anos), Matheus, que já foi músico — teve uma banda de pagode na sua adolescência -, hoje é formado em História pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e foi candidato à Deputado Estadual pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade).

Além disso, ele se vê num campo político progressista e acredita na união popular na luta para vencer qualquer barreira.

Matheus nos contou um pouco mais sobre sua vida e suas visões políticas e sociais na entrevista a seguir.

Para começar, me conta um pouco da tua história de vida.

Bom, eu trabalho no IBGE e minha história de vida é toda aqui em Porto Alegre. Nasci aqui com meu pai, minha mãe, tenho uma irmã mais velha, de 30 anos… a gente sempre morou junto, né!?

E na real são duas trajetórias de vidas que se cruzaram bem diferentes: meu pai de uma família do interior, com mais condição do que a família da minha mãe… enfim. Cedo entrou na CRT, companhia de comunicação daqui. Tinha outra situação: uma família branca, outra pegada. E minha mãe já tem uma história de vida bem diferente, uma família que veio do sul do estado, toda uma origem ali no campo mesmo, trajetória de várias famílias negras aqui do Rio Grande do Sul, bem parecida com essa. E bem do sul ali, que era um local de maior concentração (de negros) na escravidão e se distribuindo, assim, no meio do caminho. Gente por tudo que é lado: de Bagé até Porto Alegre é família bem separada ali.

Mas ambos sempre trabalharam, né!? Minha mãe no comércio e meu pai na telefonia. E aí foi nesse meio assim que eu fui conhecendo a atividade política em si. Meu pai, na década de 90, foi bem envolvido nas mobilizações contra a privatização da CRT aqui. Então, nasci em 91, acompanhei aquele processo ali com o governo do Brito aqui no RS, depois o governo do Olívio… E a minha mãe participava de atividades do movimento negro e foi a partir daí que tive meu primeiro contato com atividade política.

E sempre estudei em escola pública, não me criei na periferia e, no caso, essa foi uma das questões, da minha mãe principalmente, de tentar sair um pouco do meio. Na época que eu era bem criança isso aconteceu, morava no Jardim Botânico. Pra mim sei que isso fez — tanto na relação com a minha família, quanto nas relações que eu construí depois — tenho bastante consciência que isso fez bastante diferença pra mim porque enfim… e cresci em outro meio social e tive oportunidades diferentes. Primeiro porque a minha irmã entrou na ufrgs antes de ter cotas, já conhecendo um outro meio social ao mesmo tempo estar na escola pública também, viver aquele mundo ali.

Eu vivi boa parte da minha vida pra cá (zona norte), Rubem Berta, fazendo música, né!? Desde criança tive envolvimento com samba e gostava muito da música, música negra principalmente, então sempre fui fazendo essa conexão. Pra mim foi muito importante né!? Me passou uma visão que eu tenho acumulada até agora, de mundo, de vivência, que eu considero ser bem ampla, pra eu poder olhar pra sociedade hoje, tanto construir articulações, quanto pensar também ideias, que é onde eu me insiro hoje. Que é de estar construindo ações pra gente se inserir em diferentes meios e também estar pensando do ponto de vista de ideias mesmo, ponto de vista intelectual, estar metido aí com bastante gente que tá pensando no mundo.

Na época de escola, tu já pensava na política ou tu tinhas outra meta, como citou a música, por exemplo?

É, na real a minha história de quando eu entrei pro movimento político assim, ela é muito ligada com a música.

A política sempre foi uma questão pra mim.

Nunca foi parte da minha vida acompanhar processo eleitoral, estar mais ou menos ligado com os principais temas de debate. Eu acho que eu, quando tinha meus dez, doze, quatorze anos, tava sempre por dentro dos grandes temas, ao menos o que passava no jornal. Gostava disso. Só que a minha maior dedicação, principalmente no segundo grau, era em torno da música.

A gente tinha uma banda que, naquele momento era só gurizada, mas era uma gurizada, em geral, assim, muito potente, que era bastante entregue na questão da música. Era uma gurizada forte e a gente era muito jovem e tocava bastante na noite. Daí em outubro de 2008, por aí, se desintegrou a banda. A gente foi brigando… a gente é tudo amigo hoje, mas na época foi dando umas confusões e a gente não tava sabendo muito lidar também com o alcance que a banda tava tendo. Na época, como tinha um maior alcance do pagode aqui em Porto Alegre, tinha muita casa pra tocar, tava na moda nas escolas particular, faculdade… e a gente ia se inserindo mas não soube lidar muito bem com aquilo, né!?

Aí uma semana depois começou uma greve na minha escola e, como eu tava ali meio perdido, tinha perdido o que eu mais fazia direto, eu entrei de cabeça na greve e nunca mais saí da atividade política, em 2008. Eu tava no colégio, comecei a acompanhar a mobilização dos professor. Na época eu gostava muito do Júlio Flores, da Vera Guasso, então entrei no PSTU de cabeça. Aí no outro ano, em 2009 entrei na faculdade e aí nunca mais parei.

Demorei um tempo pra voltar a… talvez em 2009… na verdade eu nunca fiquei distante da música, mas conheci uma outra galera que era mais do meio universitário, pessoal que fazia um rock e tal, aí até acompanhei eles ali, ajudei eles na gravação do CD, era uma banda que chamava Le Pata… a galera fazia um som da hora mas era bem diferente do que eu tava acostumado. Aí comecei a colar com eles em 2009, 2010.. acho que 2011, 2012 eu fiquei mais afastado assim (da música). 2013 eu já voltei ali pra Cohab (Leopoldina), saí na Imperatriz (escola de samba) de novo… comecei a recuperar um pouco esse contato com a música.

A gente começou a ter um projeto dentro da universidade, também, que era o Negração, que eram vários estudantes negros se encontrando ali pra se pensar dentro da Ufrgs, foi o primeiro movimento mais forte depois das cotas, em 2012. Aí a gente começou a fazer o Sambarau, que era roda de samba dentro da universidade.

A questão da música nunca ficou distante da minha atividade política. Sempre foi algo muito conectado. Não acho que uma coisa depende da outra, acho que cada uma tem seu espaço… a cultura como um todo, a arte, acho que ela anda junto com a política, ela pode estar engajada em alguns momentos, mas em outros ela não precisa também tá, entendeu!? Acho que ela tem seu meio autônomo. Gosto dessa onda…

Na tua visão, para quê deveria servir a política e para quê ela está servindo hoje?

Eu tenho uma visão que daria pra classificar num modo bem geral, bem genérico, num campo progressista… ou seja, acho que a política tem que ser utilizada por nós pra transformar a sociedade, colocar as ideias pra frente, em movimento. Eu nunca usava muito essa definição, mas acho que hoje a gente tá vivendo o oposto que é o conservadorismo, tamo vendo a sociedade caminha pra trás, né!? Voltar um pouco no tempo, reaquecendo ideias que tiveram seu ápice, assim, na nossa história antes da 2ª Guerra Mundial, que era o fascismo, o nazismo, aqui no Brasil o integralismo como movimento… essas idéias ficaram ali debaixo do tapete por muito tempo e hoje estão se reapresentando na sociedade de maneira diferente, reconfiguradas, mas a essência é aquela. Então, eu me classifico num campo oposto à esse.

E acho que sempre tem que ser perguntado primeiro quem tá fazendo a política. Porque a política em si ela é universal, né!? Mas quem tá fazendo? Onde a gente se localiza pra pensar a política? Eu busco minha definição no campo da população negra, que aqui no Brasil sempre teve longe das decisões políticas, longe dos espaços de poder. E convivendo ali com a superexploração ali que é a marca do trabalho do dinheiro no nosso país. Então, parto dessa perspectiva pra pensar a serventia da política.

Já disse uma vez, em 2014 quando eu fui candidato pela primeira vez, a gente fez um jingle, produziu um som que falava que a política era pra mudar o mundo. Então acho isso, assim… a gente tem que usar a política como instrumento de transformação. Diferente do que a galera enxerga hoje, que é algo bastante instrumentalizado nas mãos de pouca gente, então a turma de hoje da política como uma ação coletiva, em primeiro lugar, e acho que desde essa perspectiva, ela sempre foi parte, mesmo de forma inconsciente, das nossas ações. Seja nas rebeliões escravas, seja nas revoltas assim que a gente olha na nossa história e enxerga uma espontaneidade… isso é a política, é a ação da população em defesa de seus próprios interesses. Então, eu acho que a política, hoje ela tem essa vocação, ou precisa ter essa vocação, a gente precisa enxergar ela dessa forma, como um meio coletivo, democrático pra gente construir um novo projeto de sociedade.

A gente tá passando por um momento muito complicado da política, há alguns anos, e, pensando por esse lado, a quê tu atribui o quadro atual da política nacional? Teve algum(s) motivo(s) pra que a gente chegasse até onde chegamos hoje?

Ah, são vários os motivos. E na realidade eu acho que a gente tem é que fazer uma elaboração coletiva. Como eu te falei: eu não tava ouvindo as músicas do Bezerra da Silva à toa. To tentando buscar de novo um olhar diferente desse momento, pra quem retratava a realidade da periferia, da população negra, do período da Ditadura Militar, pra gente conseguir entender um pouco quais aspectos da transição de regime que a gente viveu nas últimas três décadas que não foram resolvidas. Eu acho que a experiência do conservadorismo, a experiência reacionária que a gente tá vivendo hoje, ela é uma conjunção de várias experiências de tentativa da restrição da liberdade democrática e de aumento da exploração que a gente viveu na nossa história, olhando pra trás mesmo, num olhar retrospectivo bem amplo mesmo, porque a violência sempre foi uma marca do nosso país.

Então, em uma resposta mais geral, pra gente abrir um debate que não acaba aqui hoje, eu acho que a gente tá vivendo as consequência de várias transições de regime político e econômico hoje que não conseguiram resolver os principais problemas estruturais do nosso país mesmo, que é o racismo, as desigualdades sociais, concentração de riqueza e poder. Isso aí como um todo, a gente tá pagando esse preço.

Matheus em um dos diversos protestos que já participou durante sua vida política. / Foto: Facebook

Agora olhando pra política mais à curto prazo, né, eu penso que hoje a gente tá vivendo uma conjunção de vários elementos. Então: uma crise econômica muito forte que limitou a perspectiva de futuro da população brasileira que foi vendida nas últimas duas décadas, de que a gente vivia num país em desenvolvimento com possibilidade de ascender no mundo. O Brasil como um agente importante das relações diplomáticas, econômicas e políticas no mundo inteiro, isso era uma novidade. Possibilidade de ascensão social, de acesso a um ensino superior vislumbrando uma possibilidade de conquista de direitos sociais. Isso passou por um tempo na cabeça da população, mas eu acho que mesmo nos governos do PT isso já começou a se desfazer, quando em 2013 a gente tem as mobilizações de junho que questionam um pouco isso. É parte bem importante da minha vida. Eu até hoje sigo pesquisando essas mobilizações, vivenciei elas ali na linha de frente. E acho que ali naquele momento a gente tinha um primeiro sinal de frustração social mas não expressa a partir de ideias conservadoras, expressa a partir de novos movimentos que surgiam e que tavam exigindo mais do que o governo tava dando naquele momento.

Tinha um novo movimento de negros, novo movimento das mulheres que criticava ali, por exemplo, os acordos que existiam com a bancada evangélica que impossibilitava as discussão como aborto, direitos LGBT… movimento que criticava os acordos que o governo vinha fazendo com o setor conservador, que possibilitava a construção no norte, nordeste do país de projetos como a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, o novo código florestal… Ou seja, ali a gente viu que o modelo de desenvolvimento que tava em curso no país tinha alguns limites. E se a gente não avançasse ao lado dos setores que tavam em movimento — que era a população trabalhadora que teve o índice de greves que só se comparava com a década de 80 no Brasil, os novos movimentos com o perfil de juventude, toda a influência de processo que aconteceu em outro lugares do mundo a partir das redes sociais, era todo um novo momento — a contenção conservadora já tava se armando do outro lado. ‘Já podia ver: toda essa turma que levou a bandeira da corrupção a uma pauta como principal problema do Brasil, já tavam desde 2004/05 se armando pra conseguir aparecer, esperando uma oportunidade política pra discutir.

Ao mesmo tempo a turma que hoje defende o excludente de licitude, que é a licença da polícia pra matar, desde 2006, quando teve os crimes de maio em São Paulo, com mais de 500 jovens mortos em um mês, já tavam defendendo essa bandeira. Já tinha um setor conservador e reacionário, preparando uma saída pra um governo que era um governo de paradigma, que era o PT, com aliança com os partidos da ordem que desde a época da ditadura governavam o país mas pra um governo encabeçado pelo PT. Ou a gente teria um governo mais no centro, mais à esquerda ou à direita, reacionária.

E depois disso, o que aconteceu? Lembras?

Infelizmente, ali não tivemos uma reposta pro lado dos movimentos sociais, priorizou-se um acordo por cima. E isso se expressou muito em 2014, quando a Dilma ganha e acaba fazendo uma aliança com Joaquim Levy, que hoje é da equipe ministerial do Bolsonaro, acabou de ser nomeado… Então, privilegiou um acordo de defesa dos interesses do grande capital em nosso país ao invés da população. E acho que ali abriu o terreno pra esse sentimento de frustração buscar um novo meio de desaguar.

E aí, bom, tivemos toda uma ação da imprensa com a operação lava jato, que é uma operação que tem um viés essencialmente político e midiático, vinculado com esses dois agentes da formação de consciência do nosso país. Identificou-se o PT ao lado de outras figuras de diversos partidos pra identificar o conjunto da esquerda com a lógica da corrupção roubo e crise que naquele momento dava um salto maior no nosso país, a partir de 2015 que os elementos da crise econômica foram discutidos de maneira diferente. Então a população vai ter um pensamento lógico: juntou a + b e foi pra frente.

E abriu-se os espaços pros agente da outra ponta surfarem com mais força nessa nova onda. Então, essa constituição de diversas ideias que a gente viu botar o pé pra rua com mais força em março de 2015, primeiro as mobilizações verde e amarelas era o balaio de gato: menorzinho tinham os que defendiam a Ditadura, um pouco menor a turma do bolsonaro, com mais peso o pessoal do MBL, os liberais radicais… enfim, toda uma galera que nesse movimento foi dando a dinâmica às ruas pra um debate político pro período. Esses que te falei que tavam mais atrás hoje tão mais na frente, ou seja, quem deu a dinâmica no processo político do país foi eles, não que do outro lado não tenhamos construído resistência e muita ação também, muita coisa aconteceu desde então. Ocuparam escolas, faculdades, os trabalhadores que fizeram uma greve geral em 2017, vários movimentos que surgiram a partir daí, várias novas lideranças. Marielle é a principal expressão que temos disso. Muita gente nova foi eleita esse ano também pela esquerda. Mas o nosso processo foi muito mais limitado do ponto de vista de alcance social dos que estavam do outro lado, porque a lógica da direita no Brasil hoje — e aí quando eu digo direita, eu falo de quem tá no poder, que vai desde os meios de comunicação, até as grandes empresas que elaboraram a maior parte dos projetos política que debatemos até o último período — foi de tentar impor o fim do ciclo do PT mas associando com as organizações que não foram parte do governo do PT que tavam à esquerda também, pra impedir que elas aparecessem à população como uma nova alternativa diante da crise.

Então se abriu espaço pra que a constituição de novas alternativas viesse do lado de lá. Isso é algo que expressa bem o caráter da elite do nosso país. Conservadora, reacionária e racista. Porque, pra eles, pode surgir um governo de extrema direita que diz que a oposição tem 3 opções que é se exilar, ir preso ou ir pra “ponta da praia”, que era o lugar da tortura na época da Ditadura, do que surgirem novos movimentos que tem um viés democrático e progressista. Pra eles é melhor manter como tá e ampliar o grau de coerção na sociedade do que as possibilidades de democracia e consenso sobre essa lógica. Acho que o processo político do país se explica por isso, por essa sanha, ganância que existe na nossa elite hoje de resolver a crise econômica, política e social que a gente tem com mais violência, repressão, aumento maior das condições da população que é o que vivemos, emprego informal, desemprego, restrição de direitos sociais…

Essa semana tamo aí, com 12 mil médicos indo embora do nosso país por uma tensão política e ideológica de… enfim… querer constitui um ideário do que é o socialismo, as experiências de transição pós capitalista que aconteceram no século 20 completamente fora da realidade, só com a necessidade de criar um inimigo interno pra dar condição de se desenvolver um projeto político no país. Isso funciona infelizmente, né!? Pode ser que a população que tá perdendo médico, ano que vem vai tá aplaudindo um expurgo dos comunistas aqui no nosso país. Contradições, é um pouco do que a gente tá vivendo.

Falando de PT, tu achas que teve perseguição política contra o Lula e o partido?

Claro, houve sim. Houve porque como eu te falei: o Brasil sempre foi um país onde houve concentração do poder e decisões políticas, os momentos chave das transformações históricas do Brasil, foram sem participação social. Porque bom, na escravidão, o que foi construindo desgaste do regime foi a quantidade de revoltas, de fugas e de enfrentamento que existia entre as duas classes principais: escravos e senhores. Mas qual história é contada da abolição do país? Ah, um grupo de abolicionistas, de liberais, que se identificaram com a causa, e aí o processo de convencimento, a assinatura do acordo pela princesa… beleza. Proclamação da república, da independência do nosso país, é completamente distinta do que a gente tem em alguns países como EUA ou França, onde houve participação de massa de revolução… aqui no Brasil a elite sempre fez um grande esforço pra conter as grandes transformações, pra que vigorasse uma via de acordos, uma via de revolução passiva… “as coisas mudam mas sem grandes conflitos”. Isso é uma verdade que eles tentam transmitir pra nós e a gente sempre tem essa tarefa de ficar buscando que é a história dos subalternos do nosso país, de resistência e articulação política.

Mas eu to te dizendo isso agora porque, se a gente tem consciência desse aspecto, a gente entende o tamanho da perseguição ao PT, porque ele expressa o que? Um projeto político construído a partir dessa perspectiva: da mobilização, da participação social ali no fim da Ditadura, foi a organização que expressou todo aquele movimento das “Diretas Já”, das grandes greves, que não eram só do PT, eram de várias outras organizações. Tinha o Brizola que era do PDT, tinha o Ulisses Guimarães que era do MDB, tinham vários outros agentes do processos, pra além do Lula e todas as lideranças que vem com aquele movimento. Mas o PT foi a expressão disso.

Eu acho que o PT passou por um processo de domesticação, depois do fim do regime de aceitar jogar o jogo da democracia burguesa na forma com ela tava construída no nosso país, que era bastante desigual… que era em cima duma constituição que, inclusive uma boa parte do PT votou contra em 88 quando ela foi aceita, porque era uma constituição que tinham vários avanços mas que também, por exemplo, segurança pública, um dos principais temas hoje que estamos debatendo, todos os parágrafos da constituição foram escritos por militares, uma constituição que sempre teve a ideia do pacto, e o pacto no Brasil foi feito na última transição em cima desse quebra-cabeça: os militares que torturam, se envolveram em dezenas de escândalos de corrupção com as mesmas empreiteiras que hoje tão aí: Odebrecht, OAS, Camargo Corrêa… todas elas cresceram muito na época da Ditadura, com acordo com os militares, em grandes obras que partiram de dentro da Petrobras que tinha toda a lógica do petrolão. Isso aí já aconteceu na época da Ditadura, tem estudo e prova em cima disso. Mas o acordo da república foi feito em cima dessa lógica.

Eu acho que a gente tinha que ter buscado, a esquerda no poder, romper com esse acordo numa outra perspectiva, que era na criação dos direitos sociais, no acerto de contas com vários dos aspectos que tinha ficado em questão no regime anterior, seja essa perspectiva militarista que durante muito tempo falamos isso mas não davam importância e hoje os caras estão aí no poder. Então vamo ver qual é a cena de verdade, pra onde as coisas vão andar.

O papel da Polícia Militar (PM) por exemplo, a gente discutia em 2013: “tem que desmilitarizar a polícia, temo que debater a estrutura militar da justiça”… não menosprezou essa situação. Hoje estamos vendo o quão errado foi não ter ampliado radicalmente a política no Brasil, os direitos sociais, as possibilidades de participação da população nas decisões políticas. A gente nunca teve quantidade significativa de plebiscitos, de grandes temas sendo decididos pela população, de mobilização como pauta do debate e enfim… é uma marca de outras democracias, então a nossa democracia foi muito restrita.

E acho que o PT errou ao jogar esse jogo. Já tá pagando um preço gigantesco em cima disso. O PT era o elemento no poder que não tinha o DNA, né!? E eu tenho uma questão que é bem interessante que, tá ligado no direito de herança? O direito de herança é uma das principais marcas da formação da burguesia no mundo. E o PT eram os caras que não eram herdeiros. E ali pra jogar o jogo, quem não é herdeiro vai pro lado de lá, na hora da crise, que tem que fazer a divisão com menos possibilidade de barganha, foram os primeiro a ser limado. E o PT cai, na minha opinião, não pelo que ele tinha de bom, que era essa história de mobilização social, mas pelo que ele tinha de ruim, que foi escolher fazer um pacto com o andar de cima, porque quem rompeu com o PT na época do impeachment, foi a burguesia. Não foi o PT que largou os caras do poder. Assinaram a lei antiterrorismo, que hoje pode ser usada pra tipificar os movimentos sociais, em maio de 2016, três meses antes da votação do impeachment, já tinham votado no Congresso, depois foi o Senado. Ou seja, até o fim, eles tavam acreditando na possibilidade de seguir esse pacto. Só que as necessidades da crise de representação política na sociedade, de achar um culpado pra explicar a crise que tava se desenvolvendo, escolheu o PT como bode expiatório.

Então eu não tenho dúvida que houve perseguição política ao PT como organização. E não tem objetivo de parar no PT, ela quer atingir os movimentos sociais e seus novos agentes. Por isso, vieram outros elementos, tipo ideologia de gênero, racismo como vitimismo, o ódio ao comunismo. O PT não foi comunista. Em momento algum pode se dizer que o PT teve relação com um aspectos gerais de um governo socialista, longe disso. Mas é o paradoxo que vivemos no país hoje… o bolsa família, entre outras medidas sociais que o PT fez, são recomendações do banco mundial, de quem detém o controle do mercado financeiro global. E a população, uma parte acha que é medida comunista. Então, houve uma instrumentalização desses aspectos bem fortes e acho que a prisão do Lula é uma expressão disso. Eu acho que o Lula entrou nesse jogo, né!? Agora, nós não temos como classificar, na minha opinião, nenhum elemento concreto que coloque o Lula como criminoso. É parte do jogo político. Ele como criminoso, não acho que a justiça consiga provar isso. Acho ridículo o jogo que a justiça faz sobre os processos dele. Acho que não tem razão de ser, a não ser constituir esse ambiente político de perseguição ao partido e algumas ideias.

Dentro da política tem racismo?

Tem.

E de que maneira ele age?

Ah, primeiro é que, historicamente, a elite no país sempre impediu que a gente se enxergasse como povo pra se organizar dessa forma.

Desde o fim da escravidão, o processo sobre a população negra no Brasil, foi de instigar a desorganização desse setor social. Se a gente tivesse se organizado a fundo, seríamos a maior força do país. O Malcom X falou isso na década de 60, disse que se um dia os negros dos EUA se vissem em condições de se organizar pra participar de um processo político, eles decidiram uma eleição. E isso aconteceu quando o Obama foi candidato. E decidiu mesmo a eleição essa mobilização social dos negros.

Então acho que no Brasil sempre foi isso.

Fomos impedidos, do ponto de vista social, por estar nas piores condições de trabalho, de vida como um todo… isso dificulta a organização.

Fomos dividido, porque a história da população negra no Brasil foi uma história de segregação, de diáspora, de necessidade. Então a organização é muito difícil. E a partir daí, fomos disputados por ideias contrárias à nós, que é, no Brasil, o mito da democracia racial. O Bolsonaro é uma expressão moderna disso: ele não incita diretamente o ódio racial, se tu for ver. Ele pode citar o ódio de diversas formas: contra a esquerda, homossexuais, mais forte inclusive, contra as mulheres… a ideia da fraquejada, que teve uma filha mulher… mas com a população negra ele é bastante cuidadoso. Porque ele mantém um discurso de que no Brasil não tem racismo. E bota um negrão do lado dele pra fazer a entrevista.

O racismo no Brasil é muito mascarado. E sobre a população negra, essa ideia acaba se abatendo também, porque a gente classifica as nossas projeções de vida à qualquer outro aspecto que não a nossa cor. A gente reluta muito a reconhecer que a nossa cor é um aspecto que define, que na realidade na cabeça da elite organiza a desigualdade no Brasil, de maneira consciente eles organizam dessa forma e a gente tem muita dificuldade de chegar nesse grau de consciência pra entender isso. Sempre dificultou a nossa participação política e acho que do ponto de vista da elaboração das ideias, as organizações políticas não são uma bolha e acabam refletindo essas desigualdades. Fortemente.

Nós não chegamos numa conjunção ideal entre a esquerda organizada, dos partidos políticos, e os movimentos antirracistas. Não tem ainda uma combinação, como pensar um programa pra isso, como construir uma forma de apresentação, inclusive do ponto de vista estético, na forma… é um problema grande pra gente, mano. E acho que é bem complicado porque às vezes acaba… nós tamo num momento em que não temos muito o que esperar. A gente precisa achar formas de ação que reverberem, que gerem, senão mudanças concretas na nossa condição de vida,. mas na nossa condição de existência, nossa consciência, da gente estar organizado, estipulado. E aí acaba criando um terreno muito fértil entre a população negra com as divisões dentro do movimento… a galera muito dispersa e tal… tá difícil a nossa articulação como povo negro. E acho que isso tem a ver com o impacto do racismo no interior dos movimentos sociais. Existe muito. Se expressa na dificuldade da gente ser as figuras de expressão das organizações políticas, ter apoio dentro das organizações políticas, material, espaço pra ver a forma de organização que estamos propondo, as nossas ideias que, muitas vezes, são as ideias de resistência cultural, de estar vinculado do movimento Hip Hop, ou roda de samba e carnaval… a turma entender que isso não é só lazer, que também tem organização política dentro disso, tem expressão de ideia, de projetos… é uma batalha dura que a gente trava.

Mas eu acho que ela é válida porque eu penso uma saída pra população negra, uma saída estratégica pro Brasil que passe pelo negro como sujeito, certo!? Mas pela ação e mobilização do negro lutando pra construir uma forma de democracia superior na sociedade que só vai poder ser feita com a gente sabendo quem são os nossos aliados de outros segmentos sociais. Ou seja, os nossos aliados não-negros. Então defendo uma organização específica da população negra mas acho que a gente precisa, também, construir uma articulação com outros segmentos da sociedade porque a nossa condição é transversal, de negro e trabalhador. Questão racial e questão de classe sempre se cruzam no Brasil. Precisamos ter isso em mente, como construir essa aliança estratégica com outros segmentos sem que a gente perca o nosso devido protagonismo na história.

Entrevista realizada no dia 16 de novembro, no campus FAPA. / Foto: Emerson Garcia

Por que morrem tantos negros e quais são os meios que a gente pode usar para que não mora tantos assim?

Essa sempre foi a história do Brasil, então é normalizado no imaginário da população os assassinatos… o nosso sofrimento vira ponto pra discussão da base pra o desenvolvimento de ideias reacionárias. Eu vi gente falando aí que não tem problema defender a Ditadura porque na Ditadura morreu 400 e tantos ativistas e no Brasil morrem milhares de pessoas. O cara que tá dizendo isso tá, aparentemente na essência, defendendo uma política de amenização dessa situação de extermínio e violência que a gente tá, mas reivindicando um poder que enquanto tava ali instituído como tal, é o responsável pela constituição da PM, pela política de desenvolvimento urbano que criou e consolidou as periferias em todo o Brasil, nas décadas de 60, 70 e 80, e quando traz a periferia, também permite, pela falta de direitos sociais e pela falta de interesse com aquele povo, deixar a mercê em muitos momentos pro próprio crime.

Então, há uma normalização do nosso sofrimento em todos os períodos da história do Brasil.

E agora não é diferente. Eu acho que a população negra morre por uma necessidade do sistema mesmo, continuar se reproduzindo como tal. O fim do genocídio da população negra no Brasil hoje, significa a inversão da lógica da organização do sistema. Significa dar direitos sociais pra periferia… primeiro lugar: saneamento básico, moradia digna, trabalho digno e não emprego, educação, acesso à cultura, lazer… numa sociedade onde isso tá na ponta do projeto de desenvolvimento é possível diminuir a violência.

A violência é um mal endêmico mas temos diversos estudos e experiências de combate à esse problema. Agora a questão é saber o quanto isso interessa ou não pra elite do nosso país. Então, hoje estão defendo a privatização dos presídios. Eu vi uma entrevista do Eduardo Bolsonaro, essa semana, falando que o Brasil, que tem a terceira maior população carcerária do mundo, proporcionalmente ao tamanho da nossa população tem poucos presos. Ou seja, a gente pode ter um número ainda maior de presos no Brasil e pode ser que isso seja um aspecto que ajude a melhorar as condições econômicas do nosso país se tiver um agente explorando, se isso for elemento de criação de emprego pra levantar obra, pra isso e pra aquilo… é louco tu olhar nessa ótica.

A gente vê como as mortes da população negra são necessidade da reprodução do sistema, uma necessidade da indústria de armas, da mídia, que tem vários programas de altíssima audiência que só fala de violência, que só fica jogando caso de violência no ar sem propor nenhuma solução e reflexão mais profunda do porquê isso acontece. E isso alimenta milhões de pessoas em todo o país… é uma necessidade das empresas de segurança privada que não param de crescer… é necessidade de vários grupos da nossa sociedade seguir reproduzindo essa situação.

Por isso que a gente tem que tá organizado, porque a nossa organização é o que pode fazer com que a nossa necessidade se imponha sobre as necessidades da elite. A gente organizado como maioria pra construir uma condição política no Brasil, pra gente inverter a lógica desses debates. Eu acredito que isso é possível, não sei quanto tempo vai demorar. Sei que muita gente já dedicou a vida pra essa causa de diversas formas, então acho que hoje nosso trabalho é de convencimento pra mais pessoas dispostas a dedicar sua vida também. Independente se vou ver a mudança acontecer ou não. Mas entender a nossa história, de onde a gente vem, que não começa em 91 quando eu nasci, nem em 62 quando minha mãe nasceu, começa bem antes. A gente entender que nosso lugar no mundo é lutar por um desenvolvimento mais de longo prazo. Acho que é pra isso que a gente tá aí em diferentes áreas e meios.

Queria saber um pouco da tua visão sobre a legalização das drogas… por quê tu defende e por quê tu acha que seria benéfico legalizar as drogas?

Eu acho que as drogas elas tão bem ligadas nisso que te falei: necessidades de reprodução do sistema como ele existe hoje. Então, na história da humanidade, sempre teve uma presença de substâncias psicoativas, de coisas que transformam a condição dos humanos pra várias coisas… rituais religiosos, comemorações familiares. Então a gente poderia fazer essa discussão de maneira bem tranquila que ataca algo comum o uso de drogas na sociedade. Mas não é assim que a gente faz e na minha opinião, por não ser assim, hoje realmente as drogas são um problema social, de saúde pública.

A primeira coisa que a gente deveria fazer hoje no país é tratar sobre essa ótica, se preocupar realmente com essas vidas que estão ameaçadas pelo uso de drogas e ter um número muito maior que a gente tem hoje de hospitais e postos de saúde, especialização pra atender essas pessoas de forma humana e não as soluções que a gente vê muito por aí, a internação compulsória… enfim. Tratamentos psiquiátricos que tão mais a serviço da indústria farmacêutica do que do bem-estar daquelas pessoas.

Ou a outra ponta de tratamento que é o uso da força e violência, combater o tráfico como um todo. Acho que a gente tem hoje na sociedade uma grande hipocrisia em como olhar o tema, né!? E acho que a solução bem concreta pra isso era o Estado assumir o controle da produção e da distribuição dessas substâncias aí pra que, a partir disso, se pudesse converter essas duas faces da questão, que é primeiro o uso indevido, eu acho que existe mesmo. As pessoas não têm informação e à medida que tu não tem informação sobre o que é tal substância, o efeito que ela gera e até onde tu pode ir na tua relação com ela, qualquer coisa né: açúcar, sal… tu vai ter problema com essas paradas.

E ao mesmo tempo, nós temos a criação na sociedade de drogas que vêm só pra gerar problema mesmo, tipo crack e várias outras substâncias que são produzidas e soltas no espaço público com esse objetivo de degradar as condições da sociedade. Então, desde esse ponto de vista de informação de saúde, acho que a gente tinha que tratar do problema dessa forma a partir do controle do Estado. E por outro lado, buscar acabar com a guerra às drogas limitando o espaço de atuação e de ação do próprio tráfico, que é um problema e não acho que são nossos aliados na transformação que a gente quer construir na sociedade. Bem pelo contrário. Eles são parte do sistema econômico, parte da constituição da desigualdade. Porque o jovem que tá no tráfico, na maioria das vezes, tá por falta de opção também, né!? Tá porque precisa duma relação monetária pra sobreviver. Eles também alimentam isso.

Então, o controle da produção e da distribuição das drogas como um todo, eu acho que poderia fazer com que a gente resolvesse esse problema.

Eu sei que é uma medida bem radical. Inclusive a gente tem feito a discussão mais num primeiro momento a partir da legalização da maconha, uma droga que hoje, pelo que ela é, o debate teve num lugar mais acessível pra gente partir daí pra pensar essa discussão com um todo.

E também da descriminalização do uso de drogas, porque tem a confusão entre usuário e traficante que é extremamente benéfica pra população como um todo e tem servido só pra lotar os presídios e encarcerar a juventude negra. Não tem razão lógica de ligar uma coisa com a outra. Agora, o nosso programa mais geral tem que ser esse: a legalização da produção e da distribuição de drogas com um controle social, né!? Investimento público de saúde, medidas educacionais, que tratem as drogas lícitas e ilícitas da mesma forma. Porque, por exemplo, eu sou contra ter propaganda de cerveja. Acho o álcool a pior droga. Acho que dentro desse programa tinha que tá a proibição de propaganda de cerveja na televisão, de incentivo ao uso do álcool, por exemplo. Então, são medidas que a gente precisava dar uma equilibrada na sociedade, a forma como a gente olha pra o conjunto dessas substâncias e pensa a relação delas com o meio social.

E, economicamente, o que tu acha que a legalização da maconha, por exemplo, traria de benefício para o governo?

Economicamente, eu acho que seria importante primeiro porque: hoje, se tu for olhar as pessoas que estão envolvidas na produção e na distribuição da maconha, por exemplo, elas tão submetidas à condições de trabalho desumano. Quem controla as relações de trabalho que existem numa boca de fumo? Que existem na produção da cannabis? Que ocorre ou fora do país, Paraguai, Colômbia, ou em alguns lugares do interior do Brasil? Eu não sei ao certo qual é a condição das pessoas que tão lá. Mas por ser um trabalho ilegal, sem nenhum supervisionamento, por ser uma economia que passa à margem do sistema econômico mas tem relação com o sistema econômico, tenho 99% de certeza que as condições são extremamentes degradantes.

E boca de fumo sei como é porque a gente conhece. Quem anda na periferia vê, sabe, tá ali aos olhos de todo mundo. E quem trabalha na boca de fumo tem o tempo de vida muito curto. Então, essa é uma primeira questão: preocupação com as vidas que estão envolvidas nesse processo que já existe e existe em larga escala, porque o consumo é muito alto, nunca para e o trabalho em cima disso também não. E, direitos sociais, diferente do que a gente tá vendo no discurso majoritário, eles ajudam na circulação da economia, porque significa o trabalhador que tem décimo terceiro pra poder fazer umas compras no fim do ano, que tem o direito à férias e que vai pra uma praia com sua família, ou vai ficar em Porto Alegre mas vai ter um dinheiro a mais pra poder fazer uma compra, um investimento na sua casa e já mexer no trabalho do pedreiro que mora ali na banda, ou numa empresinha de construção que tá começando e que precisa dum trabalho assim pra se desenvolver.

Direitos sociais não são um problema pra quem quer ver o desenvolvimento da sociedade como um todo de maneira igualitária, justa.

Direitos sociais são um problema pra quem quer ter um aumento só da sua margem de lucro, pra isso precisa sempre ver da onde vai cortar. Essa é uma primeira perspectiva.

A outra é que nós temos um mercado… eu vi um estudo uma vez que falava em no mínimo 6 trilhões no mundo que circulava sobre a venda de drogas. Ou seja, é um mercado que poderia gerar rendimento pra o setor específico da economia se for pensar no campo e depois na distribuição mesmo, no comércio. E sobre a forma de impostos, também, eu acho que era o caminho pra que a gente pudesse ter o financiamento e a construção desse sistema de saúde pra o atendimento das pessoas que tem problemas de dependência química, ao mesmo tempo pra construção dum sistema de informação e educação em cima do uso dessas substâncias. Nós podemos constituir uma rede de autodesenvolvimento em cima só do dinheiro que circula a partir daí. Benefícios econômicos certamente teria.

O problema é que a gente teria que fazer essa discussão colocando o papel do Estado nisso, porque o capitalismo, por ser um sistema que convive periodicamente com crises intensas, e estamos vivendo uma crise agora, nos últimos dez anos, ele sempre busca o expansionismo pra determinado setores, onde ele ainda não tem entrada ou controle pra buscar estabelecer suas margens de lucro a partir daí. Estamos vendo isso pela educação, com a quantidade de escola e universidade privada… isso aí é o ingresso cada vez mais maior do mercado sobre o sistema de ensino. Não era assim anteriormente. Esporte e cultura também. Vários elementos onde o capitalismo tá chegando.

Eu havia falado anteriormente sobre a possibilidade dos presídios. E a possibilidade das drogas também tá aí. O mercado que existe, constitui um debate mínimo aí sobre o problema e resolve… Eu acho que, como a elite brasileira é muito retrógrada, ela colocou esse problema mais pra baixo. Não vejo muitas possibilidades com o retrocesso que a gente tá tendo agora, do ponto de vista moral e dos costumes, de legalização das drogas do Brasil que privilegiasse o capital. Até porque quem é a elite que tá no poder agora? Tem toda uma parte que a gente nem conhece. Essa burguesia que não aparece é aquela que cuida de temas como esse, tráfico de drogas e armas. Então, se a gente levar em consideração que a Marielle foi assassinada e já tem diversos indícios que falam do envolvimento de gente de milícia, de gente de alto escalão do funcionalismo público, essas pessoas lidam com o tráfico, com esse tipo de problema. E eles tão emperrando as investigações, isso tá público e notório, ou seja, muito mais próximo do poder do que a gente imagina. Vários indícios nos levam a considerar isso, não é teoria da conspiração. Acho que a gente tá pouco distante, no Brasil, duma possibilidade de resolução dos problemas das drogas nessa perspectiva de ganhar dinheiro. Poderia ser uma visão do capital, já é em vários países. Mas aqui acho que é mais condizente pra eles seguir a guerra à drogas, a violência, seguir essa lógica de funcionamento.

Na tua opinião, achas que o país realmente vive uma crise ou tem dinheiro mal distribuído?

A gente vive uma crise porque quem administra a economia do Brasil, inclusive, não é o povo brasileiro e tampouco é o governo brasileiro. O governo brasileiro depende do desenvolvimento da manutenção de uma série de acordos que tão firmados fora do país. A nossa economia sempre se constituiu com uma característica: ela é uma economia extremamente dependente do capital internacional. A quantidade de remessa de lucros que existe no Brasil é gigantesca. Por exemplo, aqui estamos numa instituição (UniRitter) que é multinacional e boa parte da lucratividade que gera cada mensalidade que é depositada na conta aqui da Laureate vai pra fora do país. E assim funciona com diversos segmentos da nossa economia.

A gente é bastante subordinado aos interesses de outras economias. Brasil é um país periférico no sistema mundial de Estados. E, como te falei, quando almejava querer deixar de ser, houve o retrocesso nessa perspectiva. Então, desse ponto de vista há uma crise.

O que não é a mesma coisa que a gente negar que as possibilidades de saídas da crise que existem pro Brasil hoje, poderiam passar pela gente olhar e compreender o grau de riqueza que o país tem, que é diferente de dinheiro. Porque dinheiro é papel, é o que dá a legitimidade à quantidade de riqueza que tu tem e o que é estabelecido de maneira variável ao longo da história. Até 73, o que determinava a riqueza mundial era a quantidade de ouro que os países tinham. Depois disso, a quantidade de dólar que os países têm, porque tu subordina o funcionamento da economia à uma estrutura que aparentemente é lógica, mas que na realidade não é. Então, as riquezas que o Brasil tem, dariam condição da gente construir uma perspectiva de desenvolvimento pro país completamente oposta ao que a gente tá tendo hoje. E eu falo de riquezas naturais, que diferente da estrutura que a gente tem hoje, elas são aproveitadas pra tornar o Brasil refém num modelo de economia que tá baseado no quê: na exportação das commodities e é uma realidade isso. A exportação de soja, petróleo, de aço, isso tudo são meios primários. E pra produção de meios primários tu não necessita de um alto nível de especialização do trabalho e nem um alto nível de tecnologia pra o rendimento disso, pra exploração tu até pode utilizar… por exemplo, o Brasil descobriu as camadas do pré-sal, porque tem um sistema tecnológico da Petrobras com condições de fazer esse processo de investigação. Não tinha a estrutura da exploração. E qual o caminho pra isso se tu tem a riqueza natural? Vamos buscar ser um país inteligente pra nós mesmos constituir as possibilidades de exploração dessas riquezas. Mas o Brasil tá indo pro caminho inverso hoje: tá vendendo as bacias do pré-sal que tem pra empresas estrangeiras, da França, do Canadá, da Inglaterra, dos EUA e etc. Entregando a possibilidade, então, de exploração pra esses países, ao invés da gente ser independente, ficar autônomo com relação à produção de petróleo, utilizar do lucro, do dinheiro que circula em cima disso pra desenvolver tecnologia, outras áreas, o investimento em educação. Nós debatemos muito nos últimos quinze anos que o dinheiro do petróleo, por exemplo, deveria vir pra educação, pra saúde, pra áreas sociais. E não foi isso que aconteceu.

O que a gente precisa discutir hoje é com qual a perspectiva que nós vamos debater pra saída da crise no Brasil. Se nós discutirmos uma necessidade, uma perspectiva que passa a ser hoje, pela ampliação dos direitos sociais no país por um lado, por outro, pela cultura como modelo de desenvolvimento que depende da economia externa, que não tem dependência do ponto de vista da sua gestão e nem do seu controle à longo prazo e por uma ampliação da participação popular na política. Porque economia e política estão completamente vinculados. E esse último aspecto não diz respeito, necessariamente, à medida econômica em si, mas à quem decide. Tinham que dar ao povo, também, voz nos debates de economia, né!? Porque a população só fica naquela que não entende, que acha muito distante, mas um bolso todo mundo tem, né!? Então vamo ouvir a população acerca disso, porque a gente pode, na minha opinião, aproximar os interesses da economia numa lógica de bem comum pra pensar saídas pra crise. Quem pensa saídas pra crise é quem tem dinheiro.

Hoje, antes de tu chegar, eu tava ouvindo um podcast com o Kim Kataguiri, do MBL, que o Potter, da Atlântida, tá fazendo com vários políticos sobre a perspectiva do Bolsonaro, aí ele falou: “o governo do Bolsonaro depende de uma coisa, da Reforma da Previdência”. É… de fato é, pra quem tem dinheiro. Porque tem um rombo X que eles discutem, tem uma quantia de dinheiro público que vai deixar de ir pra um lado, que vai passar a ir pra rolagem de juros da dívida interna e externa. Ou seja, pra capital financeiro depende disso mesmo. E pra população, depende do que? Então a gente vê que esse último elemento é importante pra pensar saídas da crise.

O que tu achas que poderia ser feito para melhorar a educação em Porto Alegre e que não está sendo feito?

O que não tá sendo feito, acho que são duas coisas: nós temos um sistema de ensino municipal — vamos falar das escolas de responsabilidade da prefeitura — que tem professores com ótima formação, algumas escolas com uma boa infraestrutura e o que a gente tá vendo hoje na cidade de Porto Alegre é, em primeiro lugar, a desconstituição desses aspectos. Então, a carreira dos professores tá sendo desestruturada, o salário tá sendo desvalorizado, parcelado em algumas vezes, e isso fere o conjunto dos trabalhadores de ensino por um lado. E o que a gente tinha de infraestrutura nas escolas, está sendo completamente desorganizado, também. Restrição de merenda, restrição de projetos que eram organizados dentro do ambiente escolar, restrição da gente ter possibilidade das instituições de ensino municipais não serem só reprodutoras de conteúdo, mas espaço pra desenvolvimento de pensamento crítico desde a infância, né!? Porque o ensino todo e a construção de consciência é um processo. Hoje, as crianças de seis, sete anos, têm opinião sobre coisas que acontece na sociedade.

Instituto de Educação General Flores da Cunha fechado para obras (paradas) desde meados de 2015. / Foto: Matheus Dias

Então a escola precisa ser um espaço pra desenvolver não só o conteúdo didático, mas ter projetos pra além disso. E nós víamos muito isso nas escolas municipais, projeto de robótica, de dança, vinculado à cultura, na área das ciências, da biociência, muita coisa acontecia nesse ambiente e não acontece mais. Acho que a gente tinha que reverter essa lógica de desorganização da infraestrutura e das condições de trabalho nas escolas municipais. E, também, essa lógica de pensamento único que a gente tá vendo ser imposta aqui, a partir do poder público municipal, medidas como o “Escola Sem Partido” principalmente, todo aquele movimento que aqui tem pegado muito. Uma perseguição política-ideológica da prefeitura sobre os educadores.

Essa era a próxima pergunta que eu queria te fazer: qual tua visão sobre o “Escola Sem Partido”? Por que foi proposto isso e por que não deve ser colocado em prática?

O olhar que eu tenho sobre esse projeto é o oposto de como ele se apresenta. Acho que é uma metodologia que a gente poderia ter pra pensar o conjunto dos problemas sociais, não ir à aparência deles. Mas pegar a superfície e esmiuçar ela, a essência das questões.

Na prática, ele busca impedir que os alunos, juventude ou adultos que estejam em ambiente de ensino, tenham acesso à determinada visões de pensamento social, e não a neutralização do ambiente de ensino.

Não existe uma neutralização do ambiente de ensino.

Isso é uma utopia porque significa tu separar a condição social, de existência, da realidade que é o teu pensar como indivíduo ou como conjunto social que tu tá inserido, a relação direta que tu vai ter com o governo, com a política, com medidas X ou Y, da tua expressão acerca delas… separar isso do teu trabalho, da tua vivência que é estar dentro de uma sala de aula, com pessoas completamente diferentes e que vão querer te instigar à discussão, vão querer te ouvir, não só acerca de problemas atuais, mas acerca de questões de projetos mesmo, de história, de temas do passado, polêmicas diversas. Impossível tu constituir essa separação.

Nós só podemos entender esse projeto como uma tentativa de censura à determinadas visões de mundo. Aqui, no Brasil, as que eles mais têm atacado no último período tem sido a visão de educação popular do Paulo Freire, que é um cara que pensou um método de ensino na época da Ditadura Militar, oposto ao que a Ditadura instituía da grande mobilização Mobral que eles chamavam, Movimento pela Alfabetização no Brasil, pra só ensinar a população mais pobre a ler e escrever e não refletir sobre o que era o regime que tava em vigor no país. A outra visão que eles escolhem pra atacar, é a visão marxista do Gramsci, de pensar a sociedade, a cultura, a hegemonia, estrutura de poder, sob esse olhar específico do Marxismo. E, junto com isso, as ideologias de gênero, né!? Principalmente a questão da sexualidade. Temas que a gente não quer ensinar a população a fazer dessa forma, ensinar os jovens a fazer dessa forma. Mas conhecer e respeitar.

Tratando agora sobre segurança pública do Estado, tem alguma maneira pra controlar a insegurança que invadiu o RS? Qual seria essa maneira?

A primeira é deixando de negar a inexistência de relação entre criminalidade e direitos sociais. Porque essa negativa faz a população achar normal que, nos últimos quatro anos aqui no RS, a gente tem um governador que aumentou — até 2016–4 vezes o investimento em segurança privada, basicamente na questão de material, como armas, carros e etc. e diminuiu o investimento em educação, parcelou o salário dos professores… alguma coisa tá relacionada com a outra.

Num país como o Brasil, onde menos tem direitos sociais é onde mais tem violência. Então tem que deixar de ter essa visão.

A partir daí, eu acho que a gente precisa repensar a forma como se organiza as forças de segurança na nossa sociedade, que privilegia a lógica de confronto e não a lógica de segurança pública com viés humanitário, em primeiro lugar — que é a segurança pra cuidar das pessoas. Mas é uma segurança pra combater um inimigo. E a constituição desse inimigo no Brasil tá passada por todos os aspectos que a gente já conversou: questão racial, social, distinção de classes… e acho que isso gera um problema. Porque eu não acho que a experiência de estrutura, essencialmente, militarizada da polícia que a gente tem no Brasil tem demonstrado efetividade.

A ONU já recomendou a desmilitarização da polícia do Brasil, vários organismos internacionais, estudiosos debatem esse problema.

Não é o policial deixar de ter arma, mas é a polícia mudar a estrutura de preparação dos seus agentes e de combate, né!? E passar a priorizar uma organização vinculada com os aspectos de inteligência, de prevenção, de combate aos crimes contra a vida.

A maior parte dos presos no presídio central, hoje, tem vínculo com o tráfico de drogas ou pequenos furtos e tal, menos de 10%, se eu não me engano, tão lá por causa de homicídios, por exemplo. Então não tem uma priorização dos crimes contra a vida. Então acho que, primeiro era isso, a prevenção e relação com os crimes contra a vida, e ter um vínculo, também, entre polícia e sociedade, entre forças de segurança e sociedade. Isso não existe hoje. É uma separação completa. E parece que a polícia cada vez mais quer ficar nessa condição, separada, do outro lado. Acho que isso passaria por medidas de tornar a força de segurança como parte da sociedade desde responder ao estatuto jurídico similar também, porque hoje a gente os crimes cometidos por policiais que não são julgados, isso dá uma autonomia e torna o policial um ser diferente dentro da sociedade e eu acho que isso deveria ser errado. Não levando em consideração que a realidade concreta impõe uma série de situações específicas pra quem tá nessa área, mas não pode ser um sujeito além, né!? Com um poder acima dos outros. E acho que deveriam ter direitos comuns, também. Como direito de sindicalização, de organização, porque quando vira o jogo pro policial, acaba se tornando um problema também. Várias greves, várias mobilizações dos policiais aí que botam eles num lugar comum igual trabalhador e não há democracia. E não havendo democracia, o regime autoritário que existe dentro das polícias, unifica uma forma de visão da sociedade que é essencialmente conservadora, né!?

Até 64, mesmo no Exército, nós tínhamos muito movimento de esquerda, muitos movimentos progressistas que tiveram envolvimento com causas sociais importantes, um dos papéis mais importantes da Ditadura. Mas eles buscam impedir que esse tipo de pensamento crítico se desenvolva dentro das forças armadas. E quem acaba tendo poder, monopólio da força, é sempre a elite. A população pra lutar precisa ter acesso e contato com o poder bélico. Isso já se mostrou como realidade concreta também. A democratização da estrutura da polícia, a eleição de delegados pelas comunidades, o controle da população no serviço que a polícia presta… tem vários aspectos que eu acho que a gente poderia pensar pra resolver o problema das polícias no Brasil.

Falando sobre os moradores de rua, o que tu acha que o governo pode fazer ou já deveria ter feito para dar uma condição melhor de vida para eles?

Primeiro, resolver o problema do déficit habitacional que existe no Brasil. Porto Alegre é muito grande e são dezenas de milhares de pessoas sem casa. E daí vai desde morando na rua, até morando em condições de vulnerabilidade que ora ou outra, vão levar as pessoas a irem até essa condição que é não ter casa, morar de favor, morar em fundos de residência, uma família morando num quarto, são situações que, nós que trabalhamos no IBGE, consideramos que são pessoas que não têm acesso à casa, prováveis moradores de rua num futuro próximo.

O trato com os moradores de rua tá cada vez mais desumanizado, né!?

Então, cria-se problemas que ficam aparentes. Por exemplo, eu trabalho ali na Duque, bem no viaduto onde esse ano um dos grandes debates daqui de Porto Alegre foi como o viaduto da Borges estava tomado por moradores de rua. E a visão da sociedade sobre aquilo ali era sempre um problema, né!? E óbvio que é um problema, mas aí a forma como imprensa e governam tratam disso é “vamos tirar eles daqui e ponto”. Mas e tu vai tirar eles dali e levar pra onde? Vai fazer o quê? Vai dar que tipo de tratamento de saúde, psíquico pra essas pessoas? Isso não tá no centro das preocupações do governo. Não tem recurso hoje pra FASC (Fundação de Assistência Social e Cidadania), não tem recurso pra várias áreas de assistência social e da saúde principalmente, que poderiam tá criando um atendimento pra essas pessoas em condições de rua, que viessem a resolver esse problema sob essa perspectiva. Então acho que a gente deveria ampliar o investimento em assistência social, num primeiro momento, pra lidar com esse problema e tentar resolver ele.

Qual tua opinião sobre a eleição do presidente Jair Messias Bolsonaro?

Fui contra e acho que ele representa, hoje, a ascensão de ideias conservadoras na economia, ele vem pra fazer reformas ultraliberais, que vão ampliar as privatizações em áreas estratégicas do Estado com a questão da energia, a própria Petrobras, a Embraer… Todas em via de privatização e que são áreas estratégicas que a gente não vai mais ter controle do pouco controle que já tínhamos.

É um cara que vem pra manter a restrição do investimento público em áreas sociais, como foi aprovado em 2016 a PEC dos gastos públicos — 20 anos sem aumentar substancialmente o investimento em educação, saúde, moradia, transporte -. Vários dos aspectos que a gente sabe que são necessidades da população. Nesse sentido, acho que ele vai fazer um governo ultraliberal, por mais que não tenha se apresentado dessa forma pra população.

É um cara que, do ponto de vista, das relações humanas do nosso país, não vai proporcionar nenhum avanço pra superação das ideias que impedem uma unificação nacional de fato. Ou seja, questão racial como um problema no nosso país pra gente constituir uma identidade nacional que coloque o negro no seu devido lugar, as diferenças regionais que existem também, entre o Norte e o Nordeste… acho que o governo do Bolsonaro vem pra acentuar esse tipo de divisão no Brasil. O respeito às relações de gênero e sexualidade. Acho que é um cara que vai atrasar esses aspectos. E as nossas relações com outros países, também, né!? Porque o Bolsonaro tá alinhado, à nível internacional com governos que são xenófobos, que não estão aí hoje pra construir uma verdadeira unidade entre os povos. Tá mais favorável a constituir um novo alinhamento entre figuras que tem um pensamento neo fascista ou de extrema direita pra crescer sobre esse sentimento com ideias reacionárias, do que pra unir os povos como um todo pra que a gente tenha um perspectiva de desenvolvimento mundial, que seja realmente igualitarista, democrática, inclusiva.

Mas acho que é diferente nós ter um cara que representa esse conjunto de ideias — não falei, mas acho que o segmento da igreja evangélica que ele representa tem aquela lógica da ideologia da prosperidade, econômica inclusive… — e ele implementar no Brasil o conjunto dessas medidas.

Então acho que a perspectiva pro próximo período é de bastante resistência. O conflito social, inevitavelmente, tende a aumentar no país, daqui adiante, porque ele vai mexer em muita coisa que não vai ser assim pra ele desconstruir. E acho que o principal ponto de defesa que precisa nos unir agora é a construção de uma frente democrática, defesa dos direitos democráticos. Acho que pro Bolsonaro implementar esse projeto, ele vai ter que restringir muitas liberdades democráticas no nosso país, principalmente o direito à manifestação e o direito à organização. Esse tema aí, nós precisamos ficar ligados pra defender isso, pra impedir que a gente tenha um aumento de prisões arbitrárias no Brasil, de quem tá se manifestando, pra impedir que a gente tenha um aumento da violência institucionalizada nas comunidades, o direito pra matar e vários outros aspectos que eles têm debatido no último período… formando uma frente de uma das poucas liberdades democráticas que existem no país. Tem que tá unido em todos os meios.

Tratando de sociedade num todo e políticas, o que tu acha que falta pra poder consolidar mais a cultura negra no país?

Primeiro é reconhecer a cultura negra como um aspecto constituinte de maneira prioritária da cultura nacional, porque foi isso.

Se o Brasil reconhecesse essa riqueza, poderia se ver e se inserir no mundo de maneira completamente diferente.

A gente tem, por parte das elites do nosso país, uma paixão por impor a visão ocidentalizada de cultura e de costumes que é oposto ao que é nossa história como país, né!? A gente tem o pé em outro lugar. A gente poderia buscar outras confluências pra se pensar como país. E a gente não busca, porque o lugar do negro, no Brasil, é sempre marginalizado, então essa cultura não pode se impor sobre a sociedade como um todo pra construção da nossa identidade.

O que o governo deveria fazer era abrir espaço, do ponto de vista institucional, pra que a gente resolvesse nossos problemas estruturais, porque o racismo também tem suas diversas formas de expressão.Deveria abrir espaço pra titulação dos espaços quilombolas, pra que, institucionalmente, a gente tivesse espaço pras religiões Afro e de fato o reconhecimento da laicidade do Estado, da punição à intolerância religiosa e tal.

Eu acho que em última instância, é um problema que na realidade o governo nem pode resolver por si só. É um problema que necessita duma mobilização da sociedade como um todo pra que ele seja realmente sanado, porque vai necessariamente se vincular com diversos segmentos da sociedade pra se pensar o debate e a resolução. O governo deveria reconhecer essa necessidade, ter meios de impulsionar a resolução desse problema e respeitar as formas de expressão, de organização e de mobilização da população negra, que no Brasil, infelizmente, a gente nunca teve, de fato.

E o Eduardo Leite foi uma boa escolha da população gaúcha? Acreditas no mandato dele?

Não acredito. Acho que, infelizmente, no Rio Grande do Sul a gente tá vivendo uma contradição que é: em todo o país o PSDB tá decaindo — perdeu bancada, perdeu número de governadores, fez 4% nas eleições presidenciais — mas aqui no RS, hoje, vai governar o Estado. É uma lástima que a gente esteja vivendo essa situação aqui.

E não tenho acordo com o programa defendido pelo Eduardo Leite, que é um programa aliado às demandas que são prioritárias no país, no mínimo, desde a ascensão do Michel Temer, que é essa lógica de restrição dos direitos sociais, de privatização, de desrespeito com o funcionalismo público, de Estado mínimo. Estado mínimo é a aparição do Estado pras comunidades só a partir da força e não a partir dos direitos sociais, pra nós é uma boa definição.

Em 2014, tu tiveste 11.096 votos e neste ano, 7.453. A quê tu atribui essa queda de votos de uma eleição para outra?

Cara, eu atribuo à três fatores na realidade. Primeiro é que eleição pra Deputado Federal tem um número muito menor de concorrentes e isso torna o espaço ali mais concorrido e acho que dificultou por um lado, é um elemento que ajuda a entender essa diminuição. A outra é não ter tempo de TV, né!? Em 2014, eu aparecia na TV, no mínimo, duas vezes na semana. Esse ano eu não apareci nenhuma vez na televisão e nem no rádio. Mesmo que esse ano as redes sociais tenham cumprido um papel muito mais importante do que a televisão, tem um elemento que é comum aos dois que é a influência do poder econômico mesmo. Quando se fala de redes sociais, não tamo falando de um lugar público, tamo falando de um lugar privado que a gente tá ali atuando, porque são empresas, né!? A população viajou no último período achando isso: “faça por si mesmo”. Até na política… mas não, é faça por si dentro duma empresa privada que é o Facebook. Então a vida não é fácil ali dentro pra quem não tem dinheiro, que é o nosso caso. Não tivemos grandes recursos pra fazer campanha. E o terceiro aspecto é um pouco isso, também. Tipo, o partido priorizou aqui duas candidaturas, que era a candidatura da Luciana Genro e do Pedro Ruas, e a distribuição de recursos e tal, fica muito menos democrática. Mesmo aqui em Porto Alegre ter sido o terceiro do partido em prioridade — fui o terceiro mais votado -, acho que isso dificultou também. Mas eu não enxerguei a diminuição como um problema, assim… acho que foi uma boa votação. Foi uma campanha muito focada em Porto Alegre, a gente não foi pra outras cidades. Porto Alegre e região metropolitana é o que a gente consegue abarcar no centro com as forças que a gente tem e quem circula por ali. E internet, né!? Não enxerguei como uma derrota eleitoral, achei um bom resultado dentro dessas limitações que eu comentei contigo.

Pretende se candidatar novamente?

Cara, acho que é uma possibilidade grande hoje, até por isso que eu te falei: em Porto Alegre a gente ficou entre as candidaturas mais votadas, então acho que é uma possibilidade… vir pra concorrer em 2020, na eleição de vereador… Eu não tenho pensado tanto nisso. Digo pra galera que hoje o principal pra nós é manter uma rede sólida, não necessariamente pra 2020, porque nós temos o 2019 antes e a perspectiva que tá coloca é de ataque sobre as mobilizações de esquerda, a gente quer continuar na linha de frente da resistência aí e tal… então, se nós tamo visado, a nossa rede tem que visar, em primeiro lugar, o nosso fortalecimento como movimento, como setor social que tá num embate. E é isso que eu penso em primeiro lugar. Se a gente conseguir sair vitorioso em 2019, em 2020 eu acho que a gente vai tá em boas condições de poder construir esse trabalho. Tudo depende do 2019.

Pro futuro, qual é o caminho que tu vê pra política nacional?

Acho que o Bolsonaro constituiu uma maioria social, num primeiro momento, que não é sobre o conjunto das ideias dele… tem uma questão que eu acho bem importante pra avaliar a política, que é a gente olhar pra correlação de força: quem tá mais forte e quem tá mais fraco? Hoje, quem defende um projeto como o nosso, tá com menos força social do que quem defende um projeto como o do Bolsonaro. Então, a possibilidade deles implementarem vários dos pontos do programa do Bolsonaro ela é real, concreta, ela existe. Um desses pontos é o da restrição das liberdades democráticas.

Nunca deixou de existir perseguição política no país. Eu mesmo sofro perseguição política desde 2013.

Respondo processo, já tive minha casa invadida pela polícia, já tive pedido de prisão preventiva decretado… sofro perseguição política e é um elemento comum. Acho que pode se normalizar a perseguição política e tendo um presidente que instiga um discurso de ódio, ele não precisa decretar muitas coisas sobre esse aspecto, mas a postura dele dá aval pra que as outras pessoas ajam como ele ou façam com suas próprias mãos o que o presidente não faz.

Não acho que o Bolsonaro vai matar alguém, o problema são os seguidores do Bolsonaro que tão soltos na rua aí e podem se sentir à vontade pra implementar as coisas que ele fala como brincadeira, que a galera acha que é brincadeira, mas hoje tá normalizado.

Acho que o nosso cenário, agora, é sim de uma maior restrição das liberdades democráticas, uma aplicação dum programa de restrição dos direitos sociais, de venda das nossas riquezas naturais… Acho que, num primeiro momento, o pessimismo tá aí como elemento da nossa análise se a gente quer ser realista, né!? Tem que saber sobre qual terreno a gente vai enfrentar, qual chão a gente vai caminhar no próximo período. E isso eu acho que não vai acontecer, como já te falei, sem resistência dos diversos segmentos sociais que vão tá envolvidos aí no outro lado da aplicação das medidas dele. Não vai ser fácil pra ele desenvolver esse projeto. Mas ele vai tentar desenvolver e tá com a faca e o queijo na mão pra ir adiante nessas coisas. Vamos ver…

Tem muita gente que tem feito análises mais otimistas, de que o Bolsonaro pode perder sua base social rapidamenteeu prefiro ir com mais cautela. Então é esperar a formação de governo dele com um todo pra estudar bem quais são os possíveis conflitos internos que vão ocorrer e a gente conseguir mapear exatamente que tipo de transformação eles tão tentando fazer no Brasil, de maneira bem categórica, pra além das medidas estruturais da economia. Mais a transformação ideológica, assim, porque é isso que dá sustentação à projetos, são as ideias né, mano!? As ideias são as coisas mais importantes que a gente tem, porque elas vão mover as coisas por baixo. E isso precisa ficar nítido pra gente: qual é o tipo de transformação que ele tá querendo fazer nesse campo, porque isso pode consolidar por mais ou por menos tempo o projeto de governo dele. Acho que essa é a questão que não dá pra descuidar.

Agora abro o momento pra que deixe um recado, teu contato, algum conselho pro povo, seja negro, periférico… abro esse momento pra ti.

Se a galera quiser me contatar, eu uso bastante o Instagram ali que é @matheuspggomes e minha página no Facebook que é Matheus Gomes. Não uso como eu queria… depende muito do meu bom humor, da minha condição de querer estar interagindo ou não, sei que isso não é o ideal… mas aí eu tenho uma ferramenta que funciona numa lógica diferente que eu tô envolvido, também, que é o Esquerda Online, que é um portal de notícias e de debates. Uma coisa mais constante. Tem publicação diária, tem discussão e tal. Então se a galera quiser dar uma olhada num conteúdo produzido de maneira mais coletiva, quem tem a ver com as ideias que eu compartilho, pode se conectar por ali.

E acho que o recado principal pra nós hoje é esse, assim, nunca foi tão importante a gente tá organizado, acompanhar o debate político e convencer que ele tá do nosso lado e que a gente tem que agir sobre a discussão política do país. Porque as transformações que tão colocadas pra agora vão ter um impacto de longo prazo. Nós temos que acreditar que participando das decisões políticas de agora e das decisões em qualquer meio, universidade, escola, local de trabalho, bairro, utilizando os instrumentos que forem, a partir da resistência cultural, da resistência mais institucional, enfim… nós temos que intervir sobre a realidade que tá colocada agora. É duro, mas já houveram realidades mais duras na nossa história, também, e a gente soube resistir de diferentes maneiras e superar essas situações. Essa é uma perspectiva que eu acho importante da gente ter, né!?

Entender que a nossa força, aquilo que nos une como sujeito, que é a nossa condição social, que é a forma como o mundo nos enxerga, nossa cor, nossa história… isso daí tem condição de constituir uma maioria política e social que derrote esse projeto. Depende da gente conseguir se organizar, da gente conseguir fazer com que as nossas ideias sejam compreendidas e absorvidas pelo conjunto da população, que, em última instância, essa é a disputa sempre. Pra que a gente transforme a realidade, a gente precisa ter força social. E é isso que a gente precisa buscar construir em condições adversas, sem escolher o terreno pra luta. A situação tá colocada aí. A gente precisa entender bem ela e ver como nós vamos agir sobre, pelos meios que forem necessários da gente resistir. A gente vai ter que resistir agora.

MEMORIAL

Quando o Belmonte lançou o trabalho dessa pingue pongue, eu não imaginava quem eu iria entrevistar. O tempo foi passando e ele me recomendou uma deputada muito importante pra área da educação (devido à outra pauta que concretizei) e eu fui atrás. Não obtive sucesso.

Certo dia, estava eu e dois amigos caminhando pela rua Uruguai, no centro de Porto Alegre, e nos deparamos com o Matheus Gomes. Um dos meus amigos, se dá muito bem com o Matheus que também curte nosso som (temos um coletivo, também de Rap, chamado UHURUGVNG). Uma semana depois, o Matheus estava em frente ao campus FAPA fazendo sua campanha eleitoral e eu fui lá trocar uma ideia com ele.

Matheus Gomes e eu, logo após a realização da entrevista.

Depois desses breves contatos, decidi realizar a entrevista com o Matheus Gomes. Chamei-o no Instagram mesmo e ele logo respondeu e topou. Dois dias depois estávamos realizando a entrevista no campus FAPA. Lembro que trocamos umas ideias sobre música antes da entrevista e ele comentou que, no caminho, estava ouvindo Bezerra da Silva.

Logo após a entrevista, fomos à parada de ônibus conversando sobre mobilizações necessárias para o momento atual. E, depois de cada um seguir seu rumo, só me lembro de ter me sentido com dever cumprido. Por um lado, eu havia completado um trabalho da faculdade, por outro, eu dei voz a um dos nossos novamente.

Queria agradecer mais uma vez ao Matheus, meu xará, por ter topado realizar esta entrevista comigo. Depois daquele dia (16 de novembro), passei a admirar ainda mais o ser humano que ele é, as ideias ideológicas e políticas de um cara muito estudado mas ao mesmo tempo muito humilde.

Foi motivador poder ouvir tuas ideias naquela sexta-feira à tarde, Matheus. Precisamos de pessoas como tu, nos representando em altos cargos políticos. Muito obrigado, xará!

No mais, poder ao povo preto.

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