Fernanda Melchionna: Um pé na militância, outro no Congresso

Larissa Pessi
Política e Economia
20 min readDec 2, 2018
(Foto: Giulia Secco/CMPA)

Às 12h48 de uma quarta-feira de tempo abafado em Porto Alegre, chego a recepção do gabinete da vereadora. Aguardo alguns minutos até Fernanda Melchionna (PSOL) abrir a porta que separa a recepção do restante do gabinete. Sorri, me cumprimenta e diz que podemos conversar enquanto seu almoço não chega. Pede se eu e minha colega conseguimos conversar com as outras mulheres gaúchas que se elegeram deputadas federais e sobre as quais pretendíamos escrever perfis. Diante da minha negativa, ela recorda que muitos estudantes agradecem por ela recebê-los para entrevistas, já que, normalmente, muitos políticos recusam tal proposta.

Sentamos para conversar na sala iluminada pela luz natural em que ficam suas assessoras e, depois de dois minutos, seu almoço chega. Se retira para sua sala escura, mas em cerca de 10 minutos já está de volta para retomarmos nossa conversa.

Nessa entrevista, Fernanda comenta sobre sua trajetória enquanto militante e política, diz o que acha que levou o Brasil ao momento político crítico que enfrenta e destaca a importância da mobilização do povo, hoje tão desacreditado em sua própria força.

Como tu avalias teus mandatos como vereadora nos últimos dez anos?

Acho que são 10 anos de mandato, é difícil responder em uma pergunta. Talvez como característica principal, eu sempre enxerguei o mandato como um megafone das lutas sociais e um organizador das demandas populares. Resumindo: trazer e dar voz na Câmara de Vereadores a determinadas lutas que estão mais na rua, que obviamente não tem repercussão nos Palácios, que existe um hiato entre a representação do povo, quem teoricamente são os representantes e de fato as lutas populares. Muitos se elegem prometendo mundos e fundos e depois a gente vê os candidatos defendendo os interesses das grandes corporações ou se esminquinto nessa lógica da política do toma lá dá cá, ganha um cargo ali, um cargo lá, deixa de fazer oposição, passa a defender os projetos do governo. Então são coisas muito complicadas, acho que determinadas lutas que antes da gente não tinha muita visibilidade, muito espaço foram trazidas a partir desse megafone. E um atualizador das demandas populares, porque eu sei que a gente consegue ter conquistas na vida e na sociedade a medida em que o povo também se auto organiza pra lutar pelos seus direitos. Então, eu sempre enxerguei o mandato como alguém que ajuda nessa organização e às vezes faz projeto de lei, às vezes faz audiência pública, faz audiência em comissão pra ver se consegue alguma resolutividade pra problemas a partir dessa organização popular e também do mandato. E aí tem vários projetos, que beneficiavam a moradia popular que eu consegui aprovar, que beneficiava 14 áreas de ocupação em Porto Alegre, depois foi vetado, nós derrubamos o veto, o governo teve que ir até a Justiça pra revogar meu projeto de Lei. Bandeiras que a partir de comissões a gente conseguiu resolver, seja de temas mais vinculados, temas vinculados a infraestrutura. Então, eu acho que essas duas características dão essa malgma pra esses 10 anos de mandato.

(Entre os projetos mais marcantes) Áreas de interesse social, combate ao assédio sexual de mulheres nos ônibus, acho que foi uma vitória importante. A própria questão da troca de nome de rua que depois a gente perdeu na Justiça, embora fosse simbólico e, aliás, eu tive três mandatos, foi o único nome de rua que eu dei. Tem vereador que vive de dar nome de rua. Eu acho que é um símbolo importante, né, tentar tirar uma homenagem a um ditador na entrada da cidade. Agora o Tribunal voltou ao nome anterior, o que é um absurdo, uma decisão jurídica absurda e óbvio que acaba interferindo na autonomia do Legislativo, mas acho que até a situação política do país mostra como a ausência de uma justiça de transição de analisar e o povo ter acesso aos crimes cometidos pela ditadura, faz com que não haja uma memória coletiva a ponto de barrar o retorno de ideias que fazem apologia a esse período terrível da história do Brasil a presidência. A própria eleição do Bolsonaro, cara que homenageia o principal torturador, que botava rato na vaginas militantes, que torturou mulheres grávidas, inclusive. Enfim, são casos graves assim de violação aos direitos humanos que o cara homenageia. Então, infelizmente, é uma constatação de como leis como essa são importantes, que haja memória, porque se não fosse uma homenagem, se fosse a história, o nome de Porto Alegre, a entrada ali da antiga Legalidade, seria Ditador Castello Branco. E não é presidente, não é presidente quem nunca foi eleito pelo povo. Não é presidente quem foi botado no poder com tanques, com perseguição, aposentadorias, assassinatos. Não pode ser contada assim essa história, essa história é uma homenagem a quem cometeu crimes contra a humanidade.

Então, esse projeto eu acho que era simbólico, mas muito importante. A redução da tarifa de ônibus, que não é bem um projeto de lei, foi uma ação jurídica e política da bancada do PSOL, minha e do Pedro Ruas, mas eu acho que é muito importante. Pela primeira vez na história de Porto Alegre, parlamentares, junto com a mobilização do povo conseguiu reduzir a tarifa de ônibus, já abusiva, que durou todo o ano de 2013. Tarifa poderia ser mais cara ainda hoje se a gente não tivesse conseguido. E depois em 2016 que durou dois meses, porque o governo conseguiu reverter no judiciário federal.

Analisando os teus mandatos, tu achas que conseguiu representar as pessoas que te elegeram e também as que não te elegeram?

Eu acho que a gente nunca representa todos, né. Quem diz que governa pra todos tá mentindo pra alguém. Eu não represento interesses de grandes empresários que querem reduzir direitos dos trabalhadores, eu não quero representar em nenhum dos meus mandatos gente machista, que agride mulheres e que é contra os nossos direitos fundamentais. Eu não tenho nenhuma intenção de representar que comete crime de ódio, que ataca a comunidade LGTB, que não respeita a liberdade de orientação sexual. Então, eu acho que não represento todos. Eu acho que a gente representa ou busca representar, né, porque a melhor forma da gente mudar esse sistema político corrompido é as pessoas também participarem da política, entender a política não só como a política institucional, que a gente vai de 2 em 2 anos votar. Mas também auto-organização, organização das associações de moradores, dos sindicatos, diretórios de estudantes e grêmios estudantis.

Mas, assim, eu acho que eu busquei dar voz, representar, atuar em conjunto com a classe trabalhadora, com as pessoas que trabalham, as mulheres, o povo pobre da nossa cidade, os LGBTs, os negras e negras que lutam contra o racismo. Pretendi nesses mandatos localizar essas lutas. Eu acho que é sempre um desafio. “Mas, tá, tu conseguiu?”, eu acho que quem tem que responder essa pergunta é o povo, né. Eu tentei. Eu espero ter feito da melhor maneira possível, botei toda minha dedicação nisso, mas, de uma certa maneira, o próprio resultado da eleição é uma expressão disso. A nossa campanha é pobre e honesta. Se tu olhar lá, os caras botaram um milhão e meio pra eleição de deputado federal, uns, inclusive, que nem entraram. A nossa campanha não foi nem um terço disso, boa parte também de doações próprias, enfim, de vaquinha online, enfim, claro, do aporte do próprio pessoal. Eu acho que a própria eleição é uma forma de ter um termômetro, né, se as pessoas se sentiram representadas, e, veja, eu fiz 14.630 votos em 2008, fui vereadora mais votada de Porto Alegre, o povo de Porto Alegre me deu esse orgulho, porque eu me senti muito agradecida ao povo por esse voto de confiança. Passei desses 14.630 para 114 mil, né. Então, eu acho que é pelo menos um setor importante da sociedade, não só de Porto Alegre, nesse caso em todo o Estado, se sentiu representado pelas lutas que nós queremos levar para o Congresso Nacional.

E tu deve a essa resposta do povo a tua vontade de ser deputada federal ou foi o partido que propôs isso?

FM — Primeiro, eu não tenho nenhuma vontade de ser deputada federal. Eu não acho que um mandato deva ser encarado como uma carreira ou uma vontade individual. Ao contrário. Eu sou bibliotecária de formação, gostei muito de trabalhar, trabalhei muito em biblioteca, fiz muitos estágios na vida. Fui demitida do meu trabalho, porque fui candidata em 2008.

Então, não pode ser encarada como uma vontade pessoal.

Então, foi o partido que propôs isso?

FM — Na verdade, em 2008, quando eu já tava trabalhando na minha área, né, e tal, foi a primeira eleição que o PSOL concorreu a prefeitura de Porto Alegre com a Luciana (Genro). Durante um tempo o partido pensou em ter alguém que representasse a luta da juventude, mas não o partido em sim, os próprios jovens que lutaram comigo na luta estudantil, que vieram dessa luta na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E aí, então, aceitei depois de três meses, porque a princípio não tinha essa vontade pessoal de ser candidata. Acabei saindo do meu trabalho, devido a minha decisão de concorrer, fui demitida por isso. E aí no final o povo me deu a oportunidade de entrar na Câmara de Vereadores, como primeira bancada do PSOL. Pedro Ruas foi meu colega, uma pessoa com quem aprendi muito. Mas eu jamais colocaria o início da minha militância como uma política institucional sem ser militante antes, desde os 14 anos eu milito em movimento estudantil, comecei a participar na minha escola de ensino médio, contra as privatizações do Britto, do Fernando Henrique. Defendi as passeatas, organizei a (em defesa) da Amazônia. Entrei na universidade em 2001, comecei a me envolver já na UFRGS em defesa da universidade pública e da ampliação dela, contra o desmonte da universidade. Enfim, acho que política vai muito além desses espaços institucionais. Claro que esses espaços potencializam determinadas lutas e eu devo essa votação, obviamente, a um reconhecimento desse nosso trabalho aqui na Câmara de Vereadores, a tradição do PSOL também como partido de uma nova esquerda necessária no Brasil, a própria expressão da Luciana Genro, do Pedro Ruas, o acúmulo do nosso partido em todo o Estado. São vários fatores, né. Mas todos de qualquer maneira desembocaram nesse resultado, que eu só tenho a agradecer a população e dizer que pretendo ter um mandato de deputada federal com essas características, que finquem essas trincheiras de luta do povo.

Muitos candidatos conservadores, de direita, foram eleitos para assembleias e Câmara dos Deputados. A que tu deves essas eleições e a onda conservadora que tomou o Brasil nos últimos anos?

Olha, eu acho que é uma raiz profunda, tem vários documentos tratando. Assim, acho que teve um ciclo no Brasil que acabou, que é o ciclo da Nova República. Esse modelo que foi construído pós ditadura militar, com a figura do presidencialismo de coalizão, da lógica do toma lá dá cá. Lamentável, eu diria, nessa transição que houve da ditadura para a democracia — tutelada, né, porque nunca foi uma democracia plena, sempre foi uma democracia muito vinculada aos interesses das grandes corporações. Mas essa transição que abarcou torturados e torturadores, na prática, com a Lei da Anistia, desse processo que nunca foi revisto, e a esse modelo de governabilidade há 30 anos. Pra ti ter uma ideia, por exemplo, o Sarney nunca foi oposição, foi parte da ditadura, depois foi parte da redemocratização, depois foi parte dos governos do PSDB, dos governos do PT. E uma das coisas que nós cobramos do PT lá em 2003 — porque a gente não fez parte de nenhum dos governos do PT — foi justamente essa adaptação a esse modus operanti desse sistema. O PT se adaptou, resolveu fazer política nas regras do jogo estabelecido, que eram essas regras do toma lá dá cá, da incorporação de partidos que, nossa, reuniu o que há de mais podre na política brasileira.

Esse modelo ruiu agora pro povo. A combinação da crise econômica que começou a ter muito impacto no Brasil em 2014, 2015, com esse modelo de representatividade desgastada pelos sucessivos escândalos de corrupção, fez com que houvesse um tsunami nos partidos tradicionais da direita — PMDB, PSDB. Perderam muito espaço. E o Geraldo Alckmin com todo o tempo de TV, com todo o centrão, não fez nem 6% dos votos na eleição presidencial. Então, isso é a demonstração de que, bom, houve uma falência do centro. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que — tem uma fala do (Antonio) Gramsci que eu gosto muito: quando o velho já morreu e o novo ainda não nasceu. Ao não ter uma alternativa de esquerda, de massas, outra proposta — e aí depois eu quero falar sobre o PT nesse cenário.

Um setor do povo votou no Bolsonaro querendo mudança, achando que tava votando num candidato anti-sistema. Ele se vendeu assim na eleição. Quando, na verdade, ele é o que tem de mais podre do sistema político. Ele sempre foi um cara de partidos que tiveram vinculados ao núcleo do poder. O PP, por exemplo, teve na base dos governos do PT durante todo o tempo, 11 anos no Partido Progressista. Usou toda sorte de benesses como deputado federal e trouxe pouca resolutividade, pouca produtividade pro povo brasileiro em quase três décadas como parlamentar. Enfim, acho que o povo comprou gato por lebre. Na verdade, votou na representação mais podre desse regime político com repressão, porque ele, de fato, apresenta um risco sério a violação dos direitos e das liberdades já conquistadas, pelas coisas que ele diz e pelas coisas que ele faz, pelos motores de sua candidatura.

Então, eu acho que isso, de fato, ocorreu. Gente achando que tava lutando contra o sistema quando, na verdade, não tava. E a própria indicação pros ministérios dele, agora já são mais de três ministros indicados do DEM (Democratas), gente que tava no governo Temer. O Temer aproveitando pra fazer todo o jogo sujo pro Bolsonaro, querendo ganhar um cargo pra não ser preso. Então, tudo tá mostrando isso. E eu faço esse alerta dos votos porque eu acho que o Bolsonaro, sim, é uma expressão de um neofascismo, porque não é igual ao fascismo da década de 40, tem as mudanças no mundo, as mudanças na história. Mas tem uma nova direita internacional que é xenófoba, que é anti direitos das mulheres, anti direitos a comunidade LGBT, que é contra o ativismo — ele mesmo fala, né. Todas as expressões disso são os motores da candidatura do Bolsonaro. Mas eu não acho que 54 milhões de pessoas são fascistas. Acho que muita gente votou porque não queria votar no PT. Gente que já tinha votado no PT antes e se sentia traída pelos escândalos de corrupção e optou pelo Bolsonaro. Gente que caiu no papo de que era só da boca pra fora o que ele falava, e acabou votando num projeto autoritário e reacionário como o do Bolsonaro e que não necessariamente são fascistas. E por que isso é importante? Porque na hora de fazer política é importante saber diferenciar e saber mostrar essas contradições do governo Bolsonaro, para que as pessoas estejam com a gente, lutando por direitos, porque vai ser um governo ultraliberal. A montagem dos ministérios já mostra. São os Chicago Boys de um lado, gente que defende a privatização do que der, e isso impacta a população mais pobre, isso faz com que o Brasil perca.

Um Ministro de Relações Exteriores que pode levar o Brasil a perder relações comerciais com vários países do Oriente Médio, com China, enfim, por ter uma política reacionária e obscurantista. O cara acho que parou antes da Revolução Francesa, um negócio surreal as bobagens que o cara diz. Mas que também tem impacto na questão do comércio internacional a determinadas decisões, como levar a embaixada brasileira pra Jerusalém, o que pode fazer com que haja ruptura de acordos comerciais com outros países do Oriente Médio. A própria China. O Brasil exporta muito pra China, são 26% de todas as nossas exportações e o cara e o próprio Bolsonaro seguem falando verdadeiros reacionarismos.

A própria saída dos médicos cubanos é a expressão disso. Ameaçaram, Cuba disse “bom, tudo bem, vamos retirar os nosso médicos”. Rompeu o acordo. Quem paga? A população mais pobre, porque esses municípios que eram atendidos pelos Mais Médicos eram municípios que não haviam médicos brasileiros. A primeira parte do programa era pros médicos brasileiros.

Então, assim, os riscos são muito grandes. Ultraliberais pra um lado, reacionários pro outro — no Ministério das Relações Exteriores — e uma tentativa clara do setor vinculado a identidade dele a tentar criminalizar os movimentos sociais, né. Então, é importante saber lutar pelos direitos do povo, desmistificar esse mito que foi criado — que, na verdade não tem nada de mito, né, tem só uma representação do regime já apodrecido, e ao mesmo tempo, combater as fake news, que foi um dos motores da candidatura do Bolsonaro.

E tu achas que essas eleições de candidatos da direita são consequência de alguma falha ou falta de atuação da esquerda de uma forma geral, não só do PT?

É que eu acho que é difícil colocar a esquerda de uma forma geral em abstrato. Por exemplo, o PSOL cresceu. Nós passamos de seis para dez deputados. Em termos proporcionais é um crescimento bastante significativo, em termos proporcionais, a gente quase dobrou a bancada, né. Onde a gente teve oportunidade de mostrar o trabalho o PSOL foi bem votado. PSOL fez três deputados federais em São Paulo, três deputados federais no Rio de Janeiro, um deputado federal no Pará, Minas Gerais, aqui no Rio Grande do Sul. E justamente onde a gente tem mandatos, onde a gente tem alguma expressão pública, que as pessoas podem ver que a gente é um partido que combate os privilégios, enfim, os políticos que a gente tem lá, que a gente tá vinculado às lutas do povo e que, ao mesmo tempo, a gente não fez parte de uma esquerda que se acomodou no poder e que decidiu governar com os mesmos métodos que a direita sempre governou.

Eu fiz oposição aos governos do PT. Em 2003, nós rompemos quando teve a Reforma da Previdência e o PT expulsou os parlamentares que foram coerentes e votaram contra a Reforma da Previdência, entre eles a Luciana Genro. Nós fomos oposição durante 13 anos, aliás, quando boa parte dos partidos tavam babando ovo do PT pra ganhar cargos nos ministérios — Partido Progressista, MDB, etc. Então, tipo, tenho muita tranquilidade pra fazer sobre isso, não me sinto parte desse processo da esquerda institucional que governou. Acho, inclusive, que muitos dos preceitos que são fundamentais pra definir e conceituar, enfim, as ideologias, foram abandonadas ao longo desse período. Acho, inclusive, que boa parte desses erros, obviamente, também tiveram espaço no processo eleitoral.

Muita gente que havia votado no PT cansado e não queria votar no PT. E eu, em 13 anos, nunca tinha pedido voto no PT no segundo turno. Nunca. Mas nessa eleição fiz, porque é óbvio que contra Bolsonaro, queria fazer uma oposição democrática a qualquer governo que fosse. Então, apoiamos Haddad e Manuela no segundo turno. Agora, apoiar Haddad e Manuela no segundo turno, em defesa da democracia, não significa eximir as responsabilidade do PT no passado e nem achar que uma nova esquerda vai nascer daí. Uma nova esquerda não vai nascer daí. Uma nova esquerda vai nascer dos movimentos sociais populares, da luta das mulheres, da luta da juventude. Enfim, vai nascer dos movimentos reais ao mesmo tempo, né, com a mobilização das grandes transformações e ao mesmo tempo, aprendendo com os erros do passado, combatendo aquelas traições que também nos levaram a esse cenário. Eu acho que, por exemplo, em termos de oposição, nós temos que fazer uma oposição ampla, uma oposição com todos os setores que são contra a alteração na Constituição, que são contra a retirada de direitos. Isso não serve nem a hegemonismo, nem ao sectarismo. Nem hegemonismo do PT comandar essa frente — eu não acho que seja por aí. Acho que tem muitos blocos, partidos, que precisam obviamente incorporar. Nem sectarismo, porque, óbvio, que muitas pessoas do PT, do PDT, do PSB, dos movimentos sociais, apartidários. Muitos setores podem e devem ajudar nessa luta política pra que não haja retrocesso na Constituição de 88, nem prisões políticas, exílio, como o Bolsonaro já ameaçou, né, no discurso do segundo turno.

Na próxima Câmara de Deputados, a maioria dos eleitos faz parte do chamado centrão. Como vai ser a atuação da esquerda — no caso, oposição ao próximo governo — nesse cenário em que muitos do centrão apresentam tendências mais a direita ou a negociarem com a direita?

Acho que é importante fazer um bloco com todo mundo. Eu não digo um bloco parlamentar, eu digo um bloco social, porque uma luta é sempre combinada. O fascismo, um governo totalitário não é assim: amanhã a gente acorda e o Bolsonaro fechou o Congresso, Bolsonaro prendeu os sem-terra, atacou parlamentares como eu, cassou mandatos. Não é da noite pro dia. É um processo, né. E o que a gente faz, então? Não deixa que o processo aconteça. Cada passo que eles tentam tirar direitos, faz uma unidade ampla pra defender direitos, pra proteger os professores agora que tão sendo perseguidos pelo projeto escola com mordaça (Escola Sem Partido), passa por defender a liberdade de imprensa pra poder fazer a cobertura, passa pro defender agora as conquistas civilizatórias em relação aos direitos da comunidade LGBT — que muitas vieram do Supremo, mas a partir da luta, da Parada LGBT e tal. Então, eu acho que é necessário fazer unidade de ação pontuais pra cada uma dessas defesas, né, e isso envolve atuação do Parlamento, mas também atuação na rua. Não existe atuação que seja só no Parlamento. Tem que ser sempre combinado o processo de mobilização com processo parlamentar.

Eu acho que tem que tá muito organizado. Eu acho que é muito importante os movimentos — eu sei que tem muita gente com medo da situação política, mas a coragem não é ausência de medo. A coragem é enfrentar o medo pra poder defender direitos. Então, é importante de auto organizar nos diretórios acadêmicos, nos diretórios centrais, nos grêmios estudantis, nos sindicatos, nas associações de moradores. Se filiar — e claro que eu vou convidar pra se filiar ao PSOL, que é o meu partido. Eu escolhi o PSOL justamente porque eu acredito que o partido é uma ferramenta de luta que coloca pessoas que defendem causas em comum com mais força coletivamente pra enfrentar essa situação política. Então, eu acho que essa auto organização é muito necessária pra que a gente saiba que é uma luta de médio prazo e que, ao mesmo tempo, a cada passo autoritário que seja dado nós tenhamos que dar a resposta imediata, tem que ter muita solidariedade entre os movimentos e ao mesmo tempo saber que é uma luta de médio prazo pra que a gente saiba vencer esses tempos turbulentos que o país vive.

Qual causa tu consideras ser a mais urgente no Brasil hoje?

Nossa… Eu acho que em termos estratégicos de país, é mais urgente combater a desigualdade social, né. Como combate isso? O Brasil tem um modelo muito baseado na tributação sobre o consumo e não taxa lucros e dividendos, por exemplo. É uma lógica regressiva. Proporcionalmente, quem ganha menos, paga mais, lamentavelmente, pela lógica da tributação brasileira. Então, deveria reverter isso pra mexer nesse topo. O Brasil tem seis bilionários que tem a mesma renda de 100 milhões de pessoas, deveria ser mexido pra também exonerar, atualizar a tabela do Imposto de Renda pra permitir aumentar a faixa da isenção porque tá muito desatualizada e, ao mesmo tempo, ir redistribuindo nessa faixa do Imposto de Renda. Mas, diante da ameaça do governo Bolsonaro, eu diria que a tarefa mais imediata hoje é nenhum passo atrás. Qualquer democracia, mesmo a tutelada, que a gente viveu nos últimos 30 anos, é melhor que qualquer ditadura. Então, nenhum passo pro caminho do autoritarismo, nisso vai ser necessária uma luta permanente nesses quatro anos.

Nesses anos todos em que tu estás atuando na política institucional, o que aprendestes?

Muito. Aprendi que lutar sempre vale a pena. Aprendi com a generosidade do povo, aprendi muito com várias histórias de vida, com várias pessoas que eu conheci e que me deram gás, incentivo pra seguir militando. Aprendi que é preciso sempre ter muitas vacinas contra os tentáculos do parlamento, que, de fato, é uma máquina de moer gente, que seduz muita gente pra benesses do poder, enfim, dessa lógica do toma lá dá cá e eu tenho muito orgulho da minha trajetória, nunca mudei de lado, sigo não com a mesma bagagem porque aprendi muito nesses 10 anos, no sentido da totalidade, de informações, mas com as mesmas premissas de vida, meio que nem o Mujica: quer ganhar dinheiro, vai pra outro lugar. Política não é lugar pra ganhar dinheiro. A gente tem que ter lado, coerência, princípios. E eu aprendi muito, com esse companheiros e companheiras desses anos de batalha e eu achei também que esse movimento que a gente fez — o Ele Não contra o Bolsonaro e agora o Vira Voto no segundo turno — como a generosidade, a solidariedade, camaradagens são importantes.

Acho que todo mundo ficou indignado com algumas pessoas que tavam falando coisas absurdas e que não imaginavam que pensavam coisas absurdas e — eu sei, isso aconteceu com todo mundo —, mas eu sempre tento ver o lado positivo. Eu também fiquei impressionada com a quantidade de pessoas que foi pra luta, que batalhou, que tentou até o último minuto e que vai tá também com a gente nessa luta antifascista no Brasil. Eu acho que essas coisas dão esperança de dias melhores. E outra coisa que dá esperança é a maior parte do povo brasileiro não votou no Bolsonaro. Oitenta milhões de pessoas não votaram no Bolsonaro entre brancos, nulos, votos no Haddad. Então, assim, não é a maioria.

Como tu estás se preparando para os desafios que estão por vir nesses quatro anos de mandato como deputada federal?

Eu acho que muita coisa vai vir durante o mandato, a gente aprende muito no caminho. Claro que eu tento acompanhar as pautas nacionais, mas fica difícil com a agenda da Câmara de Vereadores, porque eu sigo vereadora aqui em Porto Alegre, eu tô obviamente acompanhando as pautas do governo Marchezan e acompanhando as demandas da cidade e, infelizmente, a cabeça ainda não tá muito em Brasília, mas tem que tá, né. A gente toma posse em primeiro de fevereiro, eu tô tentando acompanhar, acompanhando a política nacional, mas também aqui na Câmara de Vereadores.

O que faz tu continuar atuando na política institucional?

Eu acho que é fundamental. A única luta perdida é a que a gente abandona, diziam as madres da Praça de Maio que perderam seus filhos para a ditadura argentina. Elas iam toda semana fazer passeatas pra defender os seus filhos. Então imagine a situação, uma mãe te dizer isso: a única luta perdida é a que a gente abandona, mães que possivelmente perderam seus filhos. Se a gente abandonar a luta agora pode entregar o Brasil para as mãos dos autoritários, dos rentistas, dos banqueiros, dos latifundiários, dos homens — porque as mulheres ainda estão muito distantes da sua representação real, da representação na política. Cinquenta por cento da população e menos de 15% do Parlamento. Eu não vou entregar.

Eu acredito que a gente pode mudar, eu acredito que a gente pode lutar, eu acredito na força do povo brasileiro. Porque o povo brasileiro é muito lutador. Um país que vive com todas as desigualdades como o nosso, com todas a dificuldade de acesso como o nosso, oitava economia do mundo e 79º em IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) no mundo, lá embaixo na lista, e as pessoas trabalham, fazem três turnos. A quantidade de pessoas da saúde que trabalham em dois lugares pra poder sustentar a família e tão lá defendendo a vida, heróis e heroínas batalhando pela vida de seus pacientes. Professores que fazem milagres sem condições tentando educar, ensinar os alunos. Enfim, o povo das ocupações, com toda a solidariedade que move uns aos outros diante da sempre iminente reintegração de posse, a luta pelo direito a moradia. A história dos indígenas que resistiram a 500 anos, viveram um verdadeiro genocídio e ainda, felizmente, as tribos que existem, resistem, lutam pela Amazônia, lutam pelos direitos dos povos originários. Os negros e as negras que têm feito uma batalha num país que tem o racismo tão estrutural quanto o Brasil, e ao mesmo tempo, tão sempre lutando pra mexer essas estruturas. Dizia Angela Davis que quando as mulheres negras se movimentam todas a estrutura da sociedade se movimenta. Os LGBTs, os exemplos das mulheres com três turnos de trabalho.

Eu acho que o povo brasileiro é resistência, é luta diária. Eu acredito no povo, acredito na nossa capacidade de reorganizar. O importante talvez seja o povo voltar a acreditar em si. Infelizmente, as pessoas perderam a esperança nas suas próprias pernas e eu quero ajudar a devolver essa esperança, não vendendo a salvação da pátria, porque não existe salvador da pátria. A única forma de salvar a pátria é o povo controlar a política e a economia. Não é o que acontece hoje no Brasil, hoje uma casta política comanda a política e a economia, e agora uma casta ainda piorada, que é mais repressiva. Mas eu acredito que, se o povo se dá conta da força que tem, a gente consegue mudar o que tá aí e meu mandato vai ajudar a que o povo tenha consciência da força que tem.

Ao final da entrevista, Fernanda sorri enquanto se inclina em minha direção, pega as minhas mãos entre as suas e, em seguida, levanta para me dar um abraço que dura mais do que eu esperava. E sai para mais um dia de luta.

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