Guerra de mentira

A disputa pelo Palácio Piratini, como no resto do Brasil, teve as fronteiras éticas da informação invadidas por exércitos armados com celulares. Por causa do campo minado chamado Facebook, José Ivo Sartori (MDB) e Eduardo Leite (PSDB) travam uma disputa além das urnas através de processos no Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul (TRE-RS).

Ulisses Miranda
Política e Economia
8 min readNov 14, 2018

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Por Robson Hermes e Ulisses Miranda

“É
isto que queremos para o Rio Grande? O primeiro governador homossexual do Brasil?
”, questiona uma postagem massivamente disseminada no Facebook e que — até onde é possível saber — também chegou às fileiras do WhatsApp. Abaixo do texto encontra-se uma foto de Eduardo Leite (PSDB), governador-eleito no estado gaúcho, ao lado de um homem sem camisa. Apesar de falsa como uma bomba sem pólvora, as fake news fazem estrago. Na tentativa de desfazê-lo, ou minimizá-lo, foi publicada uma resposta na página oficial do tucano. Lá, Leite mostrou que, na verdade, a imagem utilizada no post era apenas um pedaço de uma foto maior, na qual ele estava com seus irmãos e mãe.

Tema recorrente nas eleições gerais de 2018, as chamadas fake news (ora chamadas de boatos, notícias fraudulentas ou desinformação) fazem das redes sociais verdadeiros campos de guerra. No Brasil, com aproximadamente 209 milhões de habitantes, mais de 127 milhões de pessoas encontram-se nas trincheiras do Facebook. Nos obscuros campos do WhatsApp, empresa que também pertence ao conglomerado de Mark Zuckerberg, são cerca de 120 milhões de brasileiros. Esses batalhões a serviço da comunicação, entretanto, não se encontram em um território sem leis.

A propagação de fake news colocou diversas empresas e cidadãos na mira de processos e investigações. A campanha do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), por exemplo, foi acusada em uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo de ter sido beneficiada por disparos de mensagens — difamando o Partido dos Trabalhadores (PT) — pagos por empresários interessados em sua vitória. No Rio Grande do Sul, a eleição majoritária também foi bombardeada por desinformações, sobretudo na disputa do 2º turno, entre Eduardo Leite (PSDB) e José Ivo Sartori (MDB).

O fogo cruzado de acusações envolvendo as candidaturas de Leite e Sartori foi parar no Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RS). No Mural Eletrônico do tribunal, encontram-se 21 ações — entre o início do processo e seus desdobramentos — colocando os advogados dos concorrentes ao 2º turno frente a frente, ora como representantes, ora como representados.

Quando o palco do confronto é o Facebook, o total de ações chega a 33 — nesses casos há processos envolvendo apenas um dos candidatos contra a rede social. A maior parte das ações pede a retirada de conteúdos que divulgam informações consideradas falsas contra ambos os postulantes.

Dada a massiva utilização dessas notícias fraudulentas, durante a campanha, Eduardo Leite optou por fazer transmissões ao vivo (lives) na sua página oficial do Facebook. O intuito era o de desmentir informações, sobretudo anônimas, que circulavam nas redes. O tema a ser esclarecido variava, indo da sua gestão como prefeito de Pelotas até ataques de cunho pessoal.

Em outra publicação foi compartilhado que, enquanto esteve à frente da prefeitura pelotense, Leite teria substituído a bandeira nacional pela do arco-íris numa escola. Diferentemente do que dizia o texto, não houve uma substituição e, sim, o hasteamento das duas bandeiras em meio a atividades de conscientização contra a homofobia.

Alguns destes casos — como o primeiro citado — foram parar nos tribunais. No entanto, como nenhuma disputa segue um roteiro bem definido, quem abriu o processo foi a campanha de Sartori. O texto da liminar explica:

“Os representantes (Sartori) alegam que o candidato representado (Leite), em sua página oficial de campanha no Facebook e no Twitter acusa a campanha de Sartori de ter elaborado e disseminado montagem fotográfica sugerindo que Eduardo Leite seria homossexual. Argumenta ser contrário a qualquer notícia falsa, montagens ou divulgação de inverdades em meio a campanha eleitoral. Sustenta que o candidato representado, ao invés de adotar providências judiciais contra a divulgação dessas informações, optou por acusar seu adversário de distribuí-las”.

O contra-ataque desferido pela campanha emedebista, no entanto, foi indeferido. O juiz auxiliar do TRE-RS José Ricardo Coutinho Silva conclui que não se extrai da afirmação realizada na publicação de Leite que “a imagem e os dizeres ali criticados foram realizados pelo candidato da oposição”. Coutinho Silva ainda completa afirmando que:

“A realização de críticas, apoio e a propaganda para um ou outro candidato podem ser realizadas por qualquer pessoa na internet e essa massa de eleitores têm tomado partido na disputa eleitoral, buscando contribuir ao seu modo com os candidatos de sua preferência e prejudicar seus opositores. Infelizmente, essa participação, por vezes, extrapola os limites do bom-senso, da civilidade e até da legalidade”.

Aplicação da lei para alcançar a paz

Polícia Federal investiga a partir de encaminhamentos do TRE-RS e de um monitoramento cibernético próprio (Foto: Banco de Imagens da PF)

Antes do início oficial dos 45 dias de campanha ou mesmo após o término do combate democrático, instituições como a Polícia Federal, o Ministério Público e os tribunais eleitorais (regional e superior) se mantêm ativos e vigilantes. De acordo com a assessoria da PF-RS, estão sob análise preliminar “12 casos de postagens que poderão configurar em crimes eleitorais e na consequente instauração de inquérito policial”. Um caso, até o momento, levou ao indiciamento de uma educadora física de Porto Alegre por crimes eleitorais. A disseminação de informação falsa em uma rede social também levou ao cumprimento de um mandado de busca e apreensão, realizado dentro da Operação Olhos de Lince, em Caxias do Sul, na Serra. A Polícia Federal gaúcha, investiga a partir de publicações em redes sociais, encaminhamentos do TRE-RS e de um monitoramento cibernético próprio.

Os encaminhamentos realizados pelo tribunal eleitoral do estado à PF para investigação, envolvendo fake news, baseiam-se essencialmente em duas características: divulgação de fato sabidamente inverídico (artigo 323 do Código Eleitoral) e algum elemento que caracterize calúnia, injúria ou difamação (artigos 324, 325 e 326 do do Código Eleitoral). Segundo o assessor de comunicação da Procuradoria Regional da República na 4ª Região (PRR4), braço do Ministério Público Federal (MPF), Jéfferson Curtinovi, até o momento, o Ministério Público Eleitoral (MPE) não ingressou com ações no tribunal eleitoral do RS que envolvam “fake news” e a campanha ao Governo do Estado do Rio Grande do Sul. As representações nesse sentido foram feitas pelos próprios candidatos.

Campo minado

Para a jornalista e pesquisadora do campo da comunicação Taís Seibt, o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, ocorrido em março de 2018, foi o estopim para que o debate sobre disseminação de desinformação ganhasse o Brasil. Ela lembra que, na época, o site Aos Fatos ficou fora do ar devido à quantidade de acessos de pessoas curiosas para saber se seriam verídicas as informações que circulavam a respeito de Marielle como, por exemplo, a de que teria sido casada com um traficante.

O projeto Filtro, do qual Seibt faz parte, é uma iniciativa de fact-checking da ONG Pensamento.org para verificação de fatos, dados e declarações públicas com foco no Rio Grande do Sul. Durante as eleições no estado, o Filtro analisou o discurso dos concorrentes ao Piratini em entrevistas e redes sociais.

Para a jornalista, o bombardeio de desinformação não teria o mesmo impacto se fossem apenas casos isolados e não houvesse um território propício a ser minado. Durante a aula aberta Filtro nas eleições: verdades em disputa no debate político, que aconteceu na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Seibt trouxe o conceito da pesquisadora britânica Claire Wardle, que pontua três pilares que sustentam esse campo propício à propagação de boatos, também chamado de ambiente de desinformação.

Wardle listou da seguinte forma: os maus atores, os maus comportamentos e os maus conteúdos. Os criadores de conteúdos fraudulentos (maus atores) ao criar as desinformações (maus conteúdos) não teriam o mesmo impacto se não fossem respaldados e impulsionados por preconceitos e polarização (maus comportamentos).

A descrença nos veículos tradicionais de comunicação, segundo Seibt, também é um dos motivos para existência de um ambiente de conflito. Jargões como “isso a Globo não mostra”, que surgiram com maior força nos protestos de 2013, e a sua versão regional a “RBS mente”, são sinais de que a mídia — já desvalorizada — perde o seu bem maior, que é a credibilidade. A jornalista acredita que, para esses leitores, o WhatsApp mostra o que as grandes empresas escondem.

Somado a isso está o déficit encontrado no que a jornalista chama de “dieta midiática”. “Temos um eleitor médio desinformado, porque ele está sendo informado por desinformação”, sentencia Seibt, acrescentando que o conteúdo verificado por iniciativas como o Filtro e Aos Fatos, por exemplo, não chega a esse leitor médio no Brasil, que acaba consumindo “conteúdo noticioso” exclusivamente pelo WhatsApp e Facebook. A saída, para a jornalista e pesquisadora Taís Seibt, seria a introdução de uma educação para a mídia, que regularia essa dieta.

“Chegamos em uma era em que contra argumentos não há fatos”, lamenta Seibt.

Tratado de paz

Segundo explica Michel Carvalho, que também é jornalista, além de mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e doutorando em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC (UFABC), a “educação midiática” formaria um cidadão responsável que lidaria de forma crítica com as mensagens disparadas pelos meios de comunicação. Em linhas gerais, a educação midiática envolve a criação de programas abrangentes de educação para a comunicação social — desde a educação pré-escolar até a universidade — englobando a análise de produtos de mídia, o uso de meios de comunicação como meios de expressão e apropriação de canais de mídia disponíveis (jornal impresso, rádio, televisão e internet), além do desenvolvimento de cursos de formação para professores e intermediários, e estímulo a atividades de caráter interdisciplinar que contribuam para ampliar o campo de ação da educação midiática.

O jornalista aponta que algumas escolas e entidades já estão implantando iniciativas de educação midiática como barreira contra notícias falsas, em conformidade com o que é sugerido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Na cidade de Cubatão, no estado de São Paulo, por exemplo, foi recentemente sancionada a lei que institui o Programa de Educação Midiática. A proposição prevê parcerias com universidades, empresas privadas e organizações da sociedade civil para desenvolver atividades de alfabetização para os meios de comunicação, que incluam o uso consciente das redes sociais. A intenção é desenvolver no aluno a capacidade de reconhecer quando existe uma necessidade de informação. E, a partir disso, identificar, avaliar e usar eficazmente essa informação para a resolução de um problema ou para a tomada de uma decisão.

“A liberdade de expressão existe e deve ser protegida como direito humano que é, vedando-se qualquer retrocesso”, continua Carvalho. Para ele, é preciso que a possibilidade de o indivíduo procurar, receber e difundir informações ou ideias, seja substancialmente distinguida do compartilhamento de conteúdo falso ou distorcido com o propósito de reforçar estereótipos, atrair audiência e enganar, seja para gerar benefício econômico ou político.

Se há algo consistente em meio à essa guerra de mentira é a solidez do ambiente da desinformação. A educação midiática ajuda a desmobilizar a base desse ambiente, atacando diretamente dois de seus pilares: os maus atores e, consequentemente, a produção de maus conteúdos. Dessa forma, os maus comportamentos não sustentam o cenário favorável à sua exteriorização, como o que deturpou o debate político de 2018, levando-o aos tribunais.

Reportagem produzida na disciplina Gestão da Informação: Política e Economia do curso de Jornalismo do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) — Campus Fapa. Supervisão: Prof. Roberto Villar Belmonte

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