Fotos: Divulgação. Arte: Jennyfer Siqueira.

Leite e Sartori insistem em manter políticas de enxugar gelo e apagar incêndio

Concorrentes ao cargo de governador do Rio Grande do Sul no segundo turno apresentam ideias ineficazes na segurança e na saúde

Larissa Pessi
Política e Economia
10 min readOct 15, 2018

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Por Jennyfer Siqueira e Larissa Pessi

O Brasil tem 17 cidades entre as 50 mais violentas no mundo. Porto Alegre, na 39ª colocação, é o único município fora da região norte e nordeste do país no ranking divulgado no início do ano pela organização mexicana Segurança, Justiça e Paz. O avanço da taxa de homicídios na capital e no Rio Grande do Sul decorre, dentre outros motivos, da disputa por território entre facções, envolvidas em tiroteios e chacinas.

Os grupos criminosos se sustentam com o narcotráfico, que atinge de diferentes formas o morador de vila e o do condomínio fechado. Mesmo com investimento no combate da criminalidade, o cenário no Estado pouco tem mudado. Segundo os dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP/RS), o Estado assistiu o índice de ocorrências por tráfico disparar de 2.806 para 9.215 entre 2006 — ano da sanção da “nova” Lei de Drogas — e 2017, representando um aumento de 223,4% na taxa.

A verba pública continua sendo aplicada em medidas ineficazes — que ambos os candidatos a governador no segundo turno seguem achando uma boa ideia e incluindo em seus projetos de governo. Pelo menos é assim que analisa a situação o especialista em Segurança Pública pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Diego Souza Ferreira. “Como a nossa lei considera criminoso quem está com a substância, a política é só no viés repressivo, que é prender, tirar de circulação o máximo que puder de substância. Aqui isso não resolve, é enxugar gelo, é fazer mais do mesmo”, declara.

Charge de Antônio Junião para Ponte Jornalismo e El País.

Os quatro anos de gestão do atual governador foram marcados por atrasos, paralisações e parcelamentos dos salários do Poder Executivo (categoria integrada por professores, e policiais civis e militares). No ano de 2016, o Rio Grande do Sul decretou calamidade financeira. Como solução, medidas de austeridade foram tomadas. Como resultado, veio o caos com os altos índices de criminalidade, o déficit no efetivo policial, no sistema prisional e na falta de equipamento.

A propostas dos dois candidatos ao segundo turno focam na qualificação do policiamento e nas prisões. Na visão de especialistas na área de segurança, tais investimentos agem mais na contenção de danos do que na solução dos problemas.

Política de drogas ineficiente

Criada há 12 anos, a atual política nacional de drogas, mais conhecida como Lei de Drogas está no centro da discussão do tema. Uma das críticas a ela é a arbitrariedade da norma em distinguir o usuário do traficante. Quando presos em flagrante, o suspeito fica sujeito à subjetividade do policial no momento da ocorrência. “Ele vai definir pela cor, pelos seus preconceitos, pelos seus valores”, analisa Aline Kerber, socióloga e diretora do Instituto Fidedigna.

Uma abordagem multidisciplinar é necessária para lidar com a questão das drogas na área da segurança. Pelo menos é assim que vê a autora do recém-lançado livro “Segurança Pública para Virar o Jogo” Melina Risso. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a especialista esclarece que, mesmo existindo uma diversidade de histórias, pessoas em vulnerabilidade social são mais suscetíveis ao envolvimento com o narcotráfico. Risso ressalta a necessidade de observar a questão da segurança pública além do policiamento e dos presídios. Uma opção seria articular e investir em políticas públicas, como educação, serviço social, cultura com arte e esporte: “Precisa da atuação integrada de todos os órgãos olhando para essa perspectiva”.

“A gente quer que as pessoas não consumam mais drogas ou eu quero lidar com a violência produzida pelo tráfico de drogas? Quais são os mecanismos que eu tenho pra agir em relação a isso?”, questiona a autora e pesquisadora. A provocação toca num ponto deixado de lado pelos candidatos: a ausência de um plano concreto com metas e prazos para a implantação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).

A norma instituída em junho deste ano prevê o fortalecimento da segurança pública através do pensamento estratégico, da integração dos órgãos públicos, entidades privadas e corporações, assim como a promoção de ações preventivas e fiscalizatórias. Coordenada por um conselho semelhante ao Gabinete de Gestão Integrada Estadual (GGIE) — formado por órgãos vinculados à SSP que reúne-se para elaborar soluções na área -, o futuro governador terá dois anos para elaborar e implantar o Plano Estadual de Segurança se quiser receber verba federal para executar os programas e as ações de segurança pública e defesa social. Kerber afirma que a área necessita de uma administração direcionada, não universal como vem sendo implantada. E declara: “Não tem política focal. Não tem planos. Não tem metas. Não tem gestão. Falta é a política vir desenvolver políticas públicas”.

Nos projetos de governo dos candidatos ao Piratini, Sartori destinou duas linhas para o sistema e Leite não reserva nem uma. Em seus programas para redução da violência, abordam a construção de novas casas prisionais, trabalhar com governança e investir em tecnologia. Às vésperas do segundo turno, ambos candidatos mostram que o foco para os próximos quatro anos é concluir seus projetos ao invés de estabelecer planos.

Ações como o GGIE estão no projeto apresentado por Leite, em que coloca como modelo de governança a “análise e acompanhamento permanente dos desempenhos”. Nas propostas, a ordem é integrar e otimizar os serviços públicos através de planejamento e tecnologia. A socióloga comenta que o candidato está atento para a perseguição da economia do crime através de um trabalho de investigação. “Criando esse departamento se inverte a pirâmide. Passa a olhar os grandes e deixa de prender usuário”, explica.

Ao longo de seus quatro anos como governador, Sartori iniciou a implantação das Áreas Integradas de Segurança Pública (AISPs), e, se reeleito, propõe concluir esse projeto, que visa planejar e executar programas das ações e operações policiais.

Atuação contraditória

Diego Souza Ferreira indica uma contradição na atuação do estado: “Se tem uma política de negação da substância, como vai ter uma política de prevenção?”. Ex-membro do Departamento de Inteligência do DENARC, hoje Ferreira é inspetor da Polícia Civil e faz parte da LEAP Brasil (Law Enforcement Against Prohibition), formada por integrantes das forças policiais e da justiça criminal que defendem a legalização de todas as drogas a fim de diminuir a criminalidade.

Devido a Lei das Drogas, a atuação dos estados estaria limitada. Melina Risso observa que, apesar desse panorama, o governador pode realizar um sistema de prioridade nas atividades. Ao invés de realizar prisões de baixa qualidade, como os flagrantes, a polícia poderia ser mais produtiva se mudasse o foco para as grandes apreensões — homicidas, facções e canais de lavagem de dinheiro.

Para Kerber, na perspectiva social o impacto da ineficiência na política de drogas é maior na segurança do que na saúde devido ao tráfico, à formação de facções, aos homicídios, ao acesso à arma, entre outros crimes como o roubo de carros. “Efeito é mais danoso do que o dano da própria droga”, pontua.

Integração é a solução

O projeto de governo de Sartori propõe medidas punitivas e no campo criminal, e esquece que as drogas também são questão de saúde pública. Mesmo em meio às propostas para a área, o atual governador utiliza a palavra autoridade para definir a forma que os usuários de drogas devem ser tratados.

Também sugere o fortalecimento da conscientização antidrogas, quando essa política já demonstrou ser ineficaz. O doutorando em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS Pedro Papini explica que, na história, em todas as culturas, as pessoas sempre fizeram uso de substâncias psicoativas. Por isso, em sua opinião, não seria questão de falar sobre malefícios e instruir para que não se faça o uso, e, sim, orientar sobre como usá-las.

A terapeuta ocupacional Karina Proença enfatiza: “Não dá pra chegar em um bando de adolescente e dizer ‘gente, não usem drogas, é feio, faz mal, vocês vão morrer’. Nenhum amigo deles morreu ainda. Se morreu não foi pela droga, foi por envolvimento com o tráfico”. O prazer é fator determinante. “Isso a gente não pode por debaixo do tapete”, destaca.

O emedebista demonstra preocupação com o crescente uso do crack, enquanto os especialistas entrevistados dizem esse ser um problema menos comum atualmente, passado o boom há quase uma década. Hoje, o alcoolismo seria o maior risco, principalmente entre adolescentes e jovens, o que Sartori também cita. No entanto, em nenhum momento apresenta sequer uma medida para lidar com ambos os problemas diretamente.

O uso abusivo principalmente de álcool feito por adolescentes preocupa Proença. Nesta fase, em que aumenta a pressão por “ficar” com outras pessoas, quem é mais tímido busca alternativas que ajudem a superar a vergonha. “O álcool tem esse poder de inibir a nossa inibição”, explica. Quando a pessoa crê ser incapaz de socializar e realizar outras tarefas cotidianas caso não estejam entorpecidas, o uso se torna problemático.

A prevenção ao uso de drogas e ao envolvimento com o narcotráfico deve ser construída a partir da infância, defende Proença, já que o meio social, tanto familiar quanto na comunidade, pode influenciar no desenvolvimento de um cidadão. A socióloga Aline Kerber concorda e estima ser possível reverter esse padrão com investimentos nos três primeiros anos de vida, garantindo acesso a creches e educação de qualidade, por exemplo.

A melhor forma de prevenir o uso problemático seria através de ações que levam em consideração o sujeito e seu contexto, tratando-o como um ser biopsicosocial. Uma pessoa em vulnerabilidade social e em sofrimento psíquico tem mais fatores de risco ao uso abusivo, de acordo com o psicólogo Papini. Oferecer opções culturais e de lazer, como aulas de teatro e espaços e equipamento para a prática de futebol, é medida essencial, assim como garantir acesso à educação, à moradia, ao trabalho e a serviços de saúde preparados para receber dependentes químicos.

As mesmas medidas ajudariam no processo de reinserção do usuário após a alta, segundo Proença. Quando o dependente não tem um ambiente saudável para onde ir, não tem um emprego fixo e um sistema de prevenção ao uso, as chances de voltar ao vício aumentam. Nenhum projeto de governo apresenta medidas sobre o assunto, apenas quando relacionadas a quem deixa o sistema prisional. O psicólogo vai além no trato ideal: “O tratamento mais adequado é aquele que mira a construção de novas paixões para esse sujeito tão apaixonado por uma coisa só”.

Os especialistas defendem que, para lidar com os problemas que envolvem as drogas, é essencial uma atuação mais integrada dos recursos públicos, não tratando como áreas distintas a saúde, segurança, assistência socioeducativa e educação. Em relação a isso, o candidato Eduardo Leite, do PSDB, propõe ter mais planejamento de gestão e trabalhar a “articulação institucional das políticas públicas”.

Em agosto, o Instituto Fidedigna lançou a Agenda Eleições 2018: RS pela Paz. O estudo realizado em parceria com outras entidades ligadas ao setor de segurança reúne 90 abordagens alternativas que vão desde medidas concretas baseadas em políticas públicas nacionais e internacionais aos meios de como financiá-las. Uma das sugestões é replicar o Programa de Oportunidade e Direitos (POD) — que busca capacitar e gerar oportunidade através da atuação integrada das políticas — para as outras 22 cidades com alto índice criminal. Atualmente, o programa dispõe de seis Centros de Juventude, sendo quatro em Porto Alegre, um em Alvorada e outro em Viamão.

“A gente apaga incêndio” — e deve continuar assim

Trabalhando há seis anos na unidade de adição do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, a terapeuta ocupacional Karina Proença explica que, ao chegar no atendimento, o usuário passa por um período de abstinência total. O processo possibilita que a equipe detecte quais características fazem parte da personalidade do paciente e quais decorrem do uso da droga.

O mais importante nesse período, no entanto, é diagnosticar se o indivíduo sofre de algum transtorno psiquiátrico, muito comum como anterior ao vício. “A maioria dos dependentes químicos tem uma comorbidade, tem uma doença junto. Então, ou eles são bipolares ou são depressivos ou tem transtorno de humor”, declara a terapeuta. O atendimento em Centros de Atenção Psicossocial, portanto, deveria ser fortalecido e qualificado. Entre as propostas do candidato psdbista está estimular o aumento de CAPS no Estado. Atualmente, existem 52 centros do tipo no Rio Grande do Sul, distribuídos entre os 497 municípios gaúchos.

Na realidade da capital gaúcha faltam CAPS Álcool e Drogas. A distância de áreas carentes e horários pouco flexíveis para quem trabalha em horário comercial afastam quem necessita de atendimento e tratamento. Porto Alegre, por exemplo, conta com cinco centros e apenas um destes funciona 24 horas por dia.

Os Centros deveriam ser a primeira etapa na procura por atendimento e tratamento. A realidade é diferente. Muitos usuários acabam sendo encaminhados diretamente a internação — que deveria ser o último recurso — quando chegam às emergências, tamanha a gravidade de seus casos. “A gente apaga incêndio”, desabafa Proença.

Leite não especifica aumentar CAPS AD e Sartori não aborda o assunto. Para a construção desses locais é necessário fazer um projeto para aprovação do governo federal, órgão que normalmente destina verba para as obras, se cumpridas uma série de obrigações especificadas na Portaria GM 366/2002.

O preconceito, e o medo da criminalização e da internação compulsória são barreiras na procura por ajuda. O psicólogo Pedro Papini atuou na formação de trabalhadores para o atendimento a dependentes químicos através do projeto Caminhos do Cuidado, do Ministério da Saúde, e identificou uma carência de um olhar menos restrito, que não assuma a adicção como “incurável, agressiva e até perigosa”. Sartori e Leite não têm proposta específica para o atendimento de usuários de álcool e drogas. O psdbista propõe, no entanto, o “matriciamento em saúde mental para os profissionais da rede de atenção primária para qualificar os trabalhadores para humanização do cuidado”.

Entre as propostas de Leite está a ampliação de leitos psiquiátricos. Papini critica: “É uma noção bastante simplista do problema”. A medida só seria eficaz em conjunto com políticas de prevenção para o usuário quando o usuário saísse da internação, como a garantia a moradia e de atendimento contínuo. A lei estadual nº 9.716/92, sobre a reforma psiquiátrica, determina a substituição progressiva de leitos por uma rede integral de atenção à saúde mental.

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