Corpo-desafio: quando o mundo a ensina a se odiar todos os dias

Carol Patrocinio
Polemiquinhas com a Carol Patrocinio
8 min readAug 17, 2017

Há tempos venho ensaiando para falar sobre as relações que a gente desenvolve com o corpo. Pra isso eu preciso pensar na relação que eu tenho com o meu corpo e as maneiras que me levaram a chegar onde cheguei. E essa parte é bastante dolorosa de se lembrar — assim como deve ser pra muitas pessoas.

Minha mãe sempre foi uma mulher dentro do padrão. Ela sempre pareceu gostar de estar no padrão para se sentir maravilhosa, nunca poupou esforços para isso e os limites para se manter assim eram atualizados constantemente. O resultado de ter uma mãe assim para uma adolescente não é fácil.

No momento em que eu estava fortalecendo a relação entre meu corpo e minha autoestima o mundo externo gritava que ser como ela era a única opção para ter sucesso ou se amar. E da mesma forma que o mundo a ensinou que ela precisava seguir o padrão para ser feliz ele também ensinou que ela sempre tinha que ser a melhor. Não importa quais os esforços. Mesmo se a outra competidora fosse sua filha.

Cresci ouvindo que devia andar com a “barriga pra dentro”, que devia usar roupas que valorizassem meu corpo (bem no esquema de revista feminina que dita regras), que nunca deveria usar roupas com elástico no cós (moletom, legging, calça bailarina) porque por mais que elas fossem confortáveis elas me permitiriam engordar sem perceber.

Dietas sempre foram algo normal em casa. Minha mãe e minha avó paterna se juntavam e faziam caldeirões enormes de “sopa da USP” — que uma amiga e eu apelidamos de “sopa do pântano” anos mais tarde. Depois mudavam de dieta. De repente a casa amanhecia só com produtos light ou diet. Ou você acordava e as duas tinham ido pra academia antes de 7h da manhã.

Tudo isso mexe com a gente. Tudo isso faz com que a gente passe a olhar pro próprio corpo como imperfeito. Tudo isso torna a gente insegura. E não era a intenção delas, elas só estavam vivendo a própria vida, tentando sobreviver em um mundo com padrões inalcançáveis, tentando se manter seguras e se amando.

A barriga de gelatina

Cá estamos em 2017 e eu me tornei mãe de dois meninos incríveis. Sou mãe há quase 14 anos e sempre que posso ainda tomo banho com meu filho mais novo. Chico tem 7 anos e adora deitar a cabeça na minha barriga enquanto a água cai. Ele sempre fala como é uma delícia tomar banho comigo por causa daquilo. E complementa mudando de vez em quando o objeto de comparação:

Mamãe, a sua barriga é tão gostosa! Ela é molinha igual a gelatina.

Tem dias que é marshmallow. Outros ela parece uma almofada. A questão é que minha barriga é sempre comparada a coisas molengas, que não chegam a ser disformes, mas que podem ser esculpidas com pouco esforço. Barriga de massinha também já foi uma comparação.

Imagina ouvir algo assim? Como você se sentiria em relação ao seu corpo? Ao espelho? Ao biquíni? Ao mundo que todos os dias olha para você enquanto você cumpre sua rotina?

Quando ele diz esse tipo de coisa o objetivo é um só: mostrar que não existe lugar no mundo melhor do que a minha barriga, perfeita para que ele encaixe a cabeça e descanse. Não é para isso que o corpo das mães serve? Para confortar e acolher?

A primeira vez que ele disse essa frase foi um momento decisivo e eu tinha dois caminhos: (a) reclamar dele comparar minha barriga com coisas moles e ter de explicar o motivo desse desconforto ou (b) olhar para o meu próprio corpo pelos olhos dele. Eu escolhi o segundo caminho, afinal eu sabia quão péssimo seria dizer a ele quais eram os problemas daquela comparação — que na verdade não era a comparação, mas as pressões estéticas a que somos expostas todos os dias.

Como isso influenciou na minha relação com o corpo?

Sou uma pessoa que luta contra a compulsão. A primeira vez que me disseram que o que eu tinha podia ser chamado assim fiquei ofendida. Foi a nutricionista Sophie Deram, que depois me ensinou a olhar para a comida não como um problema, mas como uma aliada para cuidar do meu corpo.

A partir desse primeiro momento consegui entender que a comida era meu refúgio e ao mesmo tempo era uma maneira que eu tinha de me violentar. Tem gente que se corta, eu como. É ali que encontro tudo o que, emocionalmente, acho que preciso/mereço.

Descobri pela minha relação com a comida a necessidade que tenho da rotina. Nunca entendi bem as pessoas que reclamavam de rotina e foi por essa relação que o motivo se tornou claro: eu preciso me sentir no controle. Ter horários, listas, agenda em dia e cardápio me ajuda nisso.

A relação com o corpo depende de tudo isso. Se estou bem, consigo ver beleza em mim. Se estou mal, não consigo nem me olhar. A equação é simples e direta. Preciso mantê-la funcionando para conseguir funcionar.

Descobri que um corpo bonito é um corpo que me leva aos lugares, me permite fazer coisas. Ser funcional depois de enfrentar a depressão, depois de não ter forças para colocar a cara no sol, depois de tentar mudar tudo em você para se encaixar, é algo muito precioso. Meu corpo mais bonito é o funcional.

É sobre gordofobia, mas não é sobre gordofobia

Por mais que meu corpo não esteja no padrão, não sou vítima de gordofobia. Não deixo de ser escolhida para um emprego por causa do meu peso. Não tenho problemas para passar na roleta do ônibus ou medo de sentar em um cadeira que pode não aguentar meu peso. Sofro com as pressões estéticas, nada além disso.

Mas não deixa de ser sobre gordofobia, aquela que o mundo nos ensina diariamente e está dentro de nós sem que a gente se dê conta. É sobre ser ensinada que pessoas gordas são preguiçosas, lerdas, sujas, desleixadas — tudo o que não tem um pingo de verdade, o peso não tem nenhuma ligação com isso — , sobre não conseguir ver beleza em corpos gordos ou sobre julgar seu próprio corpo quando ele se aproxima do que nos ensinam ser “indesejável”.

O treino perfeito

Não, essa não é aquela hora em que falo da academia, apesar de achar que todo mundo devia encontrar uma atividade física que faça o coração bater mais forte (a minha é a yoga e falei sobre isso aqui). O treino que eu fiz e mais mudou minha relação com o mundo foi o do olhar.

Somos treinadas para ver beleza em coisas específicas, inclusive em relação ao corpo. Peito durinho, bunda redondinha, barriga chapada. Pernas longas, nem muito finas nem muito grossas. Coxas que não se tocam. Corpos brancos e olhos claros. Cabelos lisos. Nenhuma dessas preferências nasce com a gente, tudo é treinado.

Por isso passei a treinar meu olhar. Busquei mulheres que podiam me ajudar a ver beleza onde meu olhar não conseguia ver e encontrei muito mais do que isso: encontrei inspiração. Hoje sigo diversas dessas mulheres no Instagram; são elas que me ajudam a olhar para o meu corpo e buscar um pouco de cada uma em mim.

E o mais importante foi conseguir ver beleza em tipos diferentes de corpo, porque eu continuo vendo beleza em corpos diferentes do meu e isso é o mais poderoso de tudo. Corpos magros podem ser lindos. Corpos gordos podem ser lindos. Todo tipo de corpo pode ser lindo. Simples assim. Quer ler um pouquinho mais sobre esse caminho da aceitação? Tem aqui.

Por que dividir tudo isso?

Porque sei que não sou a única a ter dificuldade de se amar mesmo estando tão próxima do padrão. Não sou a única que tenta comprar calça jeans e se sente culpada porque nada fica bom. Não sou a única que olha pras pernas com celulite e acha que elas não deveriam estar em vestidos curtos apesar disso, racionalmente, não fazer sentido.

Aprendi que quando a gente divide as coisas encontra braços abertos, descobre que acolher e ser acolhida são coisas de uma importância enorme. Foi compartilhando a maneira que me via, que olhava para o mundo e o medo de não conseguir me amar que criei laços com mulheres incríveis, que me fortaleci e que consegui caminhar até aqui. Nada é mais poderoso do que se enxergar na outra.

Minha avó, com quase 80 anos, segue falando do corpo com desprezo e fazendo dietas. Minha mãe segue tentando lidar com o corpo com o passar dos anos e os quilos ganhos. Eu espero conseguir olhar pra mim com mais amor e compaixão. Espero que meus filhos consigam, com minha ajuda, olhar para o corpo com amor, respeito e sem a necessidade de se encaixar em um padrão imposto socialmente pra encontrar a felicidade.

Descobri que não dá pra seguir esse caminho sozinha. Não dá pra mudar a maneira que a gente se sente sem trocar com outras mulheres e entender que não há nada de errado com a gente — mas tem muita coisa errada no mundo. Descobri que é necessário falar as coisas com todas as palavras, sentir com todo corpo e viver tudo o que a gente puder, só que pra isso a gente precisa do nosso corpo e é bem mais fácil lidar com tudo isso o amando.

--

--