A atual crise de refugiados e os mitos persistentes

Yuri Pires
Polissemia
Published in
8 min readMar 22, 2017

“16. E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.
17. E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela, maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida.” (Gênesis 3:16,17).

Assim dizendo, segundo o mito bíblico, Deus atirou o primeiro casal para fora dos domínios do Éden, colocando um querubim armado com espada de fogo para que não pudessem voltar por nenhum engenho. Exilados, Adão e Eva rumaram para o seu refúgio, nos arredores do Éden. E lá tiveram filhos; e lá Caim, o primogênito dos primogênitos, matou Abel, seu irmão. Deus também o exilou e lhe deu refúgio mais além, nas terras de Node, mas deu-lhe vida longa e uma linhagem.

Se o mito é verdadeiro, contaram — Adão, Eva, Caim, Seth, Lameque e todos os outros— com uma enorme sorte: ninguém havia para além deles, no mundo. Ninguém para dizer que já ia Adão roubar empregos não sei aonde, ninguém para associar o assassinato de Abel ao fato de Caim ser filho de refugiados, ninguém para escrever “Node para os nodenses (ou seriam nodianos?)!”. Talvez por isso, eles não se sentissem refugiados ou exilados de canto algum.

Adão e Eva expulsos do Paraíso, 1860. Julius Schnorr von Carolsfeld.

As diversas mitologias do mundo narram exílio, autoexílio e refúgio. A sensação de estar entre as pessoas de sua língua, entre os costumes com os quais foi criado, no seu ambiente político-cultural, constitui o Ser enquanto sujeito de pertencimento. Daí o medo do inusitado que é se ver em uma situação cuja única saída seja a fuga para o desconhecido.

No mundo, atualmente, são cerca de 65,3 milhões de refugiados. Neste número, não apenas estão pessoas oriundas da atual crise humanitária que se vive a partir da guerra civil na Síria e do avanço militar e territorial do Estado Islâmico (ISIS, na sigla em inglês); há também aqueles que já são refugiados há muitos anos, os que contam com estatutos mais ou menos estáveis em países onde desenvolvem atividade profissional, via pela qual vão reconstruindo as suas vidas.

Tentarei me concentrar nos mitos que circulam e persistem a cada onda migratória. Mitos que são alimentados pelo medo do diferente, pelo espírito nacional xenófobo, pelos interesses geopolíticos das grandes potências et cetera.

Fátima e seu filho, refugiados sírios em um campo de refugiados do Líbano.

“A maioria dos refugiados segue para a Europa”

Essa é um afirmação completamente equivocada. Segundo dados da Anistia Internacional, entidade mundialmente reconhecida por estudar o tema dos refugiados com profundidade, os dez países que mais recebem refugiados estão entre os mais pobres, representando apenas 2,5% do PIB mundial. Estas nações são responsáveis pelo abrigo de 56% dos 21 milhões de refugiados da crise atual.

Países que mais recebem refugiados

Jordânia: 2,7 milhões

Turquia: 2,5 milhões

Paquistão: 1,6 milhão

Líbano: 1,5 milhão

Irã: 979 mil e 400

Etiópia: 763 mil e 100

Quênia: 553 mil e 900

Uganda: 477 mil e 200

República Democrática do Congo: 477 mil e 200

Chade: 369 mil e 500

Dados: Anistia Internacional, 2016.

Nenhum desses países fica na Europa. A disparidade é enorme. Para ficarmos em apenas um exemplo, com relação aos refugiados sírios, o Reino Unido, desde 2011, abrigou apenas oito mil, enquanto a Jordânia, país com dez vezes menos habitantes e apenas 1,2% do PIB do país europeu, recebeu mais de 665 mil, no mesmo período.

“Entre os refugiados há terroristas disfarçados”

Essa afirmação carece de evidências. Com relação aos últimos atentados terroristas na Europa, não há comprovação da participação de refugiados. Lembremos alguns dos casos mais recentes.

Atentado à revista Charlie Hebdo (Jan, 2015): Chérif e Saïd Kouachi, os dois irmãos que promoveram o ataque à revista, matando doze pessoas e ferindo gravemente outras cinco, eram franceses, ambos nascidos em Paris. Filhos de argelinos (a Argélia fazia parte do império francês até 1962). Amedy Coulibaly, o outro terrorista ligado aos irmãos Kouachi, também era cidadão francês, nascido em Juvisy-sur-Orge, nas proximidades de Paris. Era filho de malinenses (o Mali fazia parte do império francês até 1960).

Atentado em Bruxelas (Mar, 2016): a identidade dos autores deste atentado que matou 35 pessoas e feriu mais de trezentas, numa explosão de homens-bomba no Aeroporto e no Metrô de Bruxelas, não é conhecida. Portanto, não é possível ligá-los a refugiados.

Massacre de Orlando (Jun, 2016): Omar Mir Seddique Mateen, autor dos disparos que mataram cinquenta pessoas e feriram mais de cinquenta, na boate Pulse, era cidadão estadunidense, nascidos em Nova Iorque. Este crime, com evidente conotação homofóbica.

Atentado com um caminhão em Nice (Jul, 2016): Mohamed Lahouaiej Bouhlel, o autor do atentado que vitimou 84 pessoas e feriu centenas, em Nice, era um cidadão francês, nascido na Tunísia. Segundo os relatos de seus vizinhos, não professava abertamente a fé islâmica, não frequentava a mesquita da cidade, usava bermudas e bebia cerveja. Ele migrou para a França em 2005 e não era um refugiado, mas um cidadão francês.

Comoção no centro de Bruxelas, Bélgica. Março de 2016.

O único atentado com possível participação de um refugiado foi o de Berlim, em Dezembro de 2016, quando um caminhão foi jogado contra uma multidão que participava de eventos natalinos. Entretanto, as circunstâncias são controversas, segundo as autoridades alemãs. Na mesma noite do atentado (19), a polícia alemã prendeu um suspeito, um paquistanês identificado apenas como Naved B., e o libertou no dia seguinte por concluir que ele só tinha se evadido correndo do local do atentado por medo.

“Temos que nos acostumar com a ideia de que o homem apreendido (Naved B.) pode não ser o perpetrador ou pertencer ao grupo de perpetradores (do atentado).”, disse Peter Frank, procurador-geral da Alemanha.

Em 21 de Dezembro, a polícia concentrou a sua investigação em Anis Amri. Documentos seus foram encontrados no caminhão. O tunisiano Anis tinha um longo histórico de envolvimento em crimes, na Tunísia, na Itália e na Alemanha. Teria entrado na Alemanha em 2015, vindo da Itália. Com condenações nos três países, Anis Amri foi abatido a tiro em uma cidade perto de Milão, no dia 23 de Dezembro. O porquê de a polícia só ter encontrado os documentos dois dias após a apreensão do veículo e um dia após a soltura de Naved B., além do motivo pelo qual Anis teria fugido para a Itália, país em que era procurado, são incógnitas de difícil solução. Sobre isso, o que reina é especulação e pouca evidência.

No entanto, mesmo que admitamos que se trata de envolvimento direto de um refugiado, seria um caso dentre muitos outros perpetrados por cidadãos europeus. Seria como relacionar o atentado de 22 de Julho de 2011, em Oslo — quando Anders Behring Breivik, um cidadão norueguês, cristão, atacou um acampamento da juventude do Partido Trabalhista da Noruega, matando 76 pessoas e ferindo quase cem — ao cristianismo.

“Não é possível conviver pacificamente com tamanho choque cultural”

A migração acompanha a história dos Sapiens. Desde que estabelecemos fronteiras e divisas, pelo menos, há comunicação comercial e cultural entre povos e etnias.

Mas não devemos ir tão atrás para buscar justificações para problemas da modernidade. Vamos raciocinar um pouco. A China tem quase um bilhão e meio de habitantes. Quase todas as grandes cidades do mundo têm uma chinatown (há dados que falam sobre mais de 60 milhões de chineses e chinesas espalhados pelo mundo). Restaurantes chineses, comemorações no ano novo chinês, horóscopo chinês. Quem vive em uma metrópole, está acostumado a tudo isso.

Chinatown, Manhattan, NY.

Como os alemães estão acostumados à presença turca. São quase 3,5 milhões de indivíduos de ascendência turca, em cidades como Berlim e Munique. Metade destas pessoas tem nacionalidade alemã e 90% delas participam das eleições nacionais. É o quarto maior distrito eleitoral do país e lá estão há quatro gerações, sem conflito identitário significativo.

Ou como os japoneses em São Paulo. O bairro da Liberdade é a maior colônia japonesa do mundo. Entre japoneses e descendentes, são mais de 1,6 milhão de indivíduos. Também não constam registros de distúrbios significativos, na atualidade, que possamos relacionar com o choque cultural entre nipônicos e brasileiros. Há inúmeros outros casos — indianos no Reino Unido, irlandeses nos EUA, poloneses na Alemanha, brasileiros na Espanha et cetera. A depender da tolerância que se tenha ao diverso, pode-se considerar o intercâmbio sociocultural bom ou ruim, mas independentemente da opinião que se tenha a respeito dele, saibamos, é impossível contê-lo. O sincretismo cultural é inevitável e irreversível.

Caboclinho, cultura e religiosidade afro-indígena

Desfazer os mitos é o primeiro passo para a Solidariedade

A campanha contra os refugiados, que tem visibilidade e força na Europa, mas que também faz as suas vítimas aqui no Brasil — vide o caso do haitiano Fetiere Sterlin, assassinado em Santa Catarina, em 2015 — , é apenas uma faceta, xenófoba e racista, do velho nacionalismo etnocêntrico.

Se analisarmos historicamente, perceberemos que há uma integração das comunidades estrangeiras nos países para onde se destinam. Nesta integração, é perceptível a intersecção sociocultural.

Aqui cumpre lembrar o chamado de José Saramago para que estabelecêssemos, sem muita demora, uma Declaração Universal dos Deveres Humanos, a andar sempre colada à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Penso que um dos primeiros (talvez o primeiro) dos Deveres Humanos deve ser o Dever de Solidariedade. Ser solidário a toda pessoa, mas principalmente solidário àquela que está desamparada e desesperada.

Apenas alguém com nenhum sentimento de solidariedade pode olhar, hoje, para a África e para o Oriente Médio e ficar indiferente. Porque é essa indiferença que perdoa os governantes que fecham as fronteiras; é essa indiferença que permite as milhares de mortes nas tentativas fracassadas de fuga. Essa indiferença mata.

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P.s.: no dia da publicação deste artigo, quarta-feira (22.03), aconteceu um atentado terrorista em Londres, capital da Inglaterra. Hoje, sexta-feira (24.03), foi divulgada a identidade do homem que cometeu o atentado: Khalid Masood, nascido Adrian Russell Elms — mudou de nome quando de sua conversão ao Islã — há cinquenta e dois anos, em Kent, condado ao sul de Londres. Portanto, este também não era um refugiado, mas um cidadão inglês.

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