Em vez de apoio, mais violência.

Isabela Rodrigues
Polissemia
Published in
7 min readMar 22, 2017

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“O Conceito de posse de uma personalidade sobre a outra, a ideia de subordinação e de desigualdade dos membros de uma só e mesma classe, são conceitos que contrariam a essência do conceito de camaradagem, que é o princípio mais fundamental do proletariado.”, Kolontai, A nova mulher e a moral sexual.

No patriarcado, os homens são machistas e nos violentam cotidianamente, de forma mais explícita ou. velada, mas essa violência NOS atinge, às mulheres, diretamente, então é conosco que é preciso, primeiramente, se preocupar, quando falamos em violências machistas, e não com os homens! É necessário pensar como enfrentar essa violência, para que as mulheres tenham segurança para viver. Esses homens estão em todos os espaços, inclusive nas organizações de esquerda, nos movimentos sociais, nos circuitos culturais etc. Espera-se que nesses espaços, por terem pessoas progressistas, a presença da mulher vá ser mais respeitada, e que os homens serão menos machistas e, de fato, façam autocrítica. Contudo, tenho observado a propagação de uma tentativa de justificar a manutenção dos privilégios masculinos, a partir de defesas como “a sociedade é machista, todos fomos criados assim, então devemos entender o homem que faz essas coisas.”. Essas falas repercutem concomitantemente ao aumento de denúncias e exposições de homens da “esquerda”, numa tentativa de abonar as suas práticas. É verdade que vivemos em uma sociedade patriarcal e isso condiciona nosso comportamento, mas a partir do momento em que você escolhe um lado, que você assume uma ideologia, um posicionamento político e uma perspectiva de mundo que não corrobora com a exploração de classes, de opressões e violências, você tem mais responsabilidade em mudar suas posturas e aqueles preconceitos enraizados, portanto não vamos esperar uma nova sociedade para fazer esse enfrentamento. Ele é urgente.

Esse enfrentamento passa por escolher um lado. Todo dia aparece um novo caso de mulheres agredidas/abusadas por um “companheiro” de organização, de movimento, da cena artística, da esquerda. Algumas vezes as mulheres falam, denunciam, reclamam, na maioria das vezes, não, por diversas dificuldades. E essa dificuldade de expor, muitas vezes vem do medo de não ser acolhida, de ser mais uma vez preterida, de ser mais uma vez considerada louca, vingativa, punitiva, exagerada. Esse papel que a mídia, o conservadorismo, o fundamentalismo religioso, a burguesia e o patriarcado sempre nos impõem se repete dentro dos espaços que achamos que seriam seguros. Existe uma dificuldade de fazer esse debate, de acolher a mulher e de fazer o necessário para se posicionar ao lado de quem está sofrendo.

Aprendemos e fomos obrigadas a ficar caladas, a aceitar sermos subjugadas e violentadas, já que não há nada que se possa fazer. Que somos feias, loucas, gordas ou magras demais, pegajosas, sistemáticas e dramáticas, portanto temos que dar graças a Deus por ter um homem com a gente, e relevar, caso ele seja um escroto machista. Isso nos é passado em todos os espaços, na escola, em casa, com os amigos, no trabalho, na rua, na justiça, portanto é muito difícil enfrentar algo que está tão enraizado em nossas cabeças. Algumas de nós conseguem falar, conseguem enfrentar, conseguem denunciar, mas não é fácil, ainda mais quando os que esperávamos que nos apoiassem não nos apoiam, e, na maioria das vezes, a mulher agredida/abusada não é ouvida, sua violência é, em várias ocasiões, relativizada ou negligenciada. Precisamos ouvir a mulher, respeitar o tempo dela, apoiá-la, e entender que talvez, apenas nesse momento, ela não tenha condições de ajudar a “combater o machismo e ser peça fundamental nessa luta política”, nesse momento ela precisa ser mais ajudada do que ajudar.

Nós somos violentadas de diferentes maneiras e reconhecemos nossos abusos e sofrimentos de formas distintas, por isso que nossos amigos e amigas, companheiras e companheiros, familiares, não devem generalizar os sofrimentos e tentar resolvê-los da mesma maneira. O tempo, o modo de reagir, a compreensão sobre a violência, o autorreconhecimento enquanto vítima; a quem buscar, como enfrentar, depende da vivência e da decisão de cada uma, não existe uma fórmula mágica para resolver. Tentar padronizar tudo isso significa mais uma violência. Militar por um mundo novo passa pelo afeto e pela solidariedade com os oprimidos, de forma radical, e de camaradagem com quem mais precisa no momento.

Infelizmente, o que ocorre na sociedade patriarcal e tem se reproduzido em espaços progressistas é uma postura de manutenção da violência contra as mulheres, de preterimento da nossa presença, de uma escolha pela manutenção dos homens abusadores nos mesmos espaços pelos quais circulamos. Isso não é se preocupar com as mulheres. Não justifica a defesa da “autocrítica” do homem em detrimento do bem-estar das mulheres. É preciso ter uma postura radical. Além de acolher o que a vítima tem a propor sobre o caso, é preciso deixar bem claro que espaços ditos progressistas não compactuam com a permanência de agressores/abusadores. É preciso afastar homens que agridem e abusam de mulheres. É preciso demarcar que determinadas atitudes não são toleradas. Não se posicionar contra o abuso e agressão de mulheres significa se posicionar ao lado do opressor, e, mais do que isso, não se cria um ambiente seguro para as mulheres. Isso não significa não aceitar nenhum companheiro que tenha tido atitudes machistas. Significa excluir àqueles que perpetuam suas práticas machistas cotidianamente, que insistem em não fazer autocrítica, que são reincidentes em agressões e abusos a parceiras, que empreenderam abuso/agressão violenta à companheira e aos que agem dessa forma conscientemente.

Aceitar a permanência de homens agressores/abusadores é fechar totalmente as portas para as mulheres, impedindo que aquele seja um espaço para a mulher agredida. Ao esperar o homem fazer uma possível autocrítica, a mulher precisa conviver com isso diariamente, logo, sua dor, seu tempo e sua segurança não serão mais importantes, se isso ocorrer. Quando isso acontece, as mulheres agredidas acabam trilhando o caminho do isolamento, de profunda tristeza e decepção e se afastam de seus espaços de militância, de sociabilidade e até de trabalho e estudos.

Não se trata de punitivismo puro e simples, negar a participação num espaço, em resposta a condutas machistas e violentas é uma resposta política e solidária ao sofrimento da mulher. Os homens, historicamente, transitam livremente e gozam de protagonismo nos ambientes políticos, culturais, acadêmicos, nos lugares públicos. Para as mulheres, não, nos é destinado o espaço privado, do cuidado, portanto quando somos rebeldes e ocupamos outros espaços, é com muita luta e perseverança, para enfrentar inclusive os companheiros, os amigos, os parceiros que nos oprimem. Lutamos por direito à vida, por espaços seguros, e para isso precisamos garantir que tenhamos condições de permanecer onde quisermos e isso é incompatível com a presença de nossos algozes. Não significa a defesa da prisão deste homem, ou da defesa de que sofra violência similar à que cometeu. Não significa que ele não possa fazer autocritica. Pode ser que sim, mas que o faça longe da mulher agredida, longe daquelas que violentou, em respeito a elas. Não é possível construir uma política/espaço progressista com tolerância a atitudes violadoras de direitos. E entender que quem precisa de mais apoio em um momento como esse é a mulher agredida e não o homem agressor. É preciso escolher um lado e ser coerente com ele.

Para isso é preciso não julgar também, uma vez que ainda não existe fórmula mágica para o enfrentamento dessas situações. Logo, se uma mulher quiser denunciar na justiça, quiser expor o seu agressor no Facebook e redes sociais, quiser falar em espaços auto-organizados, quiser apenas falar com as amigas, quiser ser didática e explicar o que é o machismo, ser radical no enfrentamento ou não, ela que tem que escolher. Não adianta falar o que foi melhor para mim, se cada mulher sofre de um jeito, e tentar “cagar regra” no momento em que uma mina consegue falar sobre o seu sofrimento. Por mais que seja “pra tentar ajudar”, só colabora para que ela se sinta isolada e sem apoio.

Muito se tem falado da utilização do Facebook como ferramenta pra denunciar nossas violências, que isso é muito radical, que virou uma tática punitivista, o “tribunal do Facebook”, tentando mais uma vez nos desmerecer, deslegitimar nossa luta e nos inferiorizar. Talvez esse seja o único espaço que me acolheu e que eu me sinta segura. Para mim essa crítica, ainda mais em momentos em que mulheres estão denunciando seus algozes, deixa evidente que a nossa sociedade, assim como algumas de “nossas companheiras (os) de luta e feminismo” tem mais se preocupado em educar os homens do que apoiar as mulheres, por que se realmente eu estou sensível com a sua violência eu não vou, nesse momento, criticar ou dizer “eu te apoio, mas…”, ou me preocupar mais com a possível autocrítica do homem e de seus amigos. Isso é, no máximo, uma tentativa de fingir que se preocupa com a mulher, pois é feio não ficar do lado dela. Ao mesmo tempo, para não sair feio com os amigos, há a tentativa de ficar em cima do muro (coisa que não existe). Se essa for a postura, isso significa que se está do lado do opressor.

Então, em vez de ficar criticando a forma com que uma mulher decide expor a violência sofrida ou dizendo que “por sua experiência” essa tática não é a melhor, ou deslegitimando um relato porque ele não tem provas concretas ou não foi denunciado na justiça, apenas apoie e critique o homem, o abusador, o assediador, o responsável pelo sofrimento, pela violência; ele, sim, precisa ser criticado e exposto, denunciado, não a mulher.

Penso que assim conseguiremos ter mais coragem em pedir ajuda, em expor, em enfrentar, pois sentiremos que o apoio é real. Que tenhamos força pra pensarmos juntas as melhores táticas pra esse fortalecimento e enfrentamento, sempre com muita empatia e sensibilidade a dor umas das outras.

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