porta dos fundos, reunião de emergência

Em defesa do humor inofensivo

A tentativa de humor político feita pelo grupo Porta dos Fundos é boba e trivial, mas é um humor entre tantos possíveis

Wagner Artur Cabral
Política e Democracia
9 min readJul 4, 2013

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O grupo Porta dos Fundos sacudiu o cenário humorístico nacional subvertendo a dinâmica comum do produto criado pelas empresas de telecomunicações e depois adotados pelo público. No caso dos jovens comediantes a lógica foi criar vídeos de baixo custo e veiculá-los pelo Youtube. Falar do sucesso da trupe é chover no molhado, gostaria de me concentrar em um dos seus trabalhos mais recentes, o vídeo Reunião de Emergência.

Nesse vídeo simula-se uma espécie de reunião extraordinária de uma presidenta inominada, onde vários políticos demonstram-se desesperados por causa dos recentes protestos que tem ocupado o país, seja nas ruas, na mídia ou na conversa de bar. Creio não ser um exagero dizer que há décadas este país não era, curiosamente, tão político. Digressão à parte, o vídeo basicamente expõe uma situação em que a presidenta tenta convencer a todos os envolvidos a “roubar menos”, para aliviar a crise. Um chega a comentar que é inadmissível, trata-se de um caminho sem volta. No fim das contas o grupo entende que é para o melhor da patota reduzir as maracutaias para poder permanecer no poder. O esquete acaba com um dos participantes da reunião demonstrando que usará um boneco de pano para transmitir a mensagem ao ex-presidente Lula (único nome verdadeiro citado no programa inteiro). Fim. À guisa de epílogo um bonequinho apresenta uma mensagem infantilizada contrária aos protestos. Fim de vez.

Muita gente tenta há séculos descobrir o que torna algo engraçado. Eu mesmo não sei responder com certeza, nem é minha intenção propor uma teoria aqui. Para ilustrar uma visão no tópico cito o escritor Charles Baudelaire, em A Essência do Riso:

O riso é satânico; ele é, pois, profundamente humano. Ele é, no homem, a consequência da ideia de sua própria superioridade; e, com efeito, como o riso é essencialmente humano, ele é essencialmente contraditório. Quer dizer que ele é, ao mesmo tempo, marca de uma grandeza infinita e de uma miséria infinita: miséria infinita, se comparado ao Ser absoluto, do qual ele possui a concepção; grandeza absoluta, se comparado aos animais.

Baudelaire reconhece no riso e escárnio um ato de afirmação de elevação, quem ri se apresenta livre da pequenez daquilo criticado, desvencilhado do ridículo. Quando se ri de um tropeço a pessoa pensa: “como é estabanado aquele que cai”, “como é fraco aquele que erra”. O humor pode ser autodepreciativo, naquela rara condição em que a pessoa consegue enxergar suas limitações e arrancar de si uma confissão humilde de falibilidade. O próprio Baudelaire reconhece nesse caso algum tipo de hierarquia moral do humor. O humor que ataca seu próprio emissor tem algo de mais humano do que aquele que desqualifica os outros. A humanidade se une em sua maior característica, a incompletude e precariedade, se comparada a seu criador, segundo o pensamento do autor.

Trazendo em termos mais práticos e contemporâneos, muito tem se discutido no Brasil sobre os limites do discurso de humor, tentando aparar até onde vai o domínio da ofensibilidade, daquilo que deveria ser aceito em nome da democracia e/ou liberdade de expressão. Eu, particularmente, sempre defendi que o Estado Democrático de Direito precisa de liberdade de expressão, que por sua vez é uma régua com vários níveis de satisfação, desde a liberdade de expor uma opinião publicamente, o nível mais básico, passando pela liberdade de divergência, liberdade de crítica e até a liberdade de escárnio. Vou voltar ao ponto do escárnio a seguir.

Rafinha Bastos, humorista

Com o progressivo foco dado ao chamado humor stand-up, em que comediantes mais jovens apresentavam visões menos ortodoxas sobre o mundo com uma linguagem mais acessível, várias situações surgiram para por em cheque os limites da liberdade de expressão aplicada no caso do humor. Um dos casos exemplares foi um post de Danilo Gentili no Twitter:

Gentili, o sutil

Enquanto a discussão no caso de Gentili tenha ficado na esfera do que debate público sobre o que seria mau gosto, outro comediante, Rafinha Bastos, se viu numa situação bem mais delicada. Após ter comentado, ao vivo no programa CQC, que a cantora Wanessa Camargo (então grávida) era tão bela que ele “comeria a mãe e o bebê”, Bastos foi alvo de processos e findou perdendo seu emprego no programa da Record. A piada de Rafinha ofendeu não só a Wanessa, como a seu marido, Marcos Buaiz, e até mesmo o rebento ainda não nascido.

Deixando de lado a discussão de como essa ofensa seria possível, meu ponto é que o humor de Bastos transgrediu algumas convenções sociais ao sugerir que faria sexo (ou comeria mesmo, literalmente, fica a ambiguidade) com uma mulher casada E seu filho. As possibilidades de interpretação são diversas, mas todas elas sugerem algo “errado”, um comportamento socialmente tido por imoral. Longe de mim querer defender a santidade de Rafinha Bastos ou sua qualidade como humorista. Estou apenas exemplificando: um fator relevante na análise do humor é seu potencial de transgressão.

Vou além: na perspectiva política do humor - seu papel em uma sociedade democrática - a transgressão é mais que um luxo, é uma necessidade. É transgredindo que se discute os conceitos, rejeitando ou reforçando-os, de acordo com a compreensão da sociedade.

George Carlin, “Seven Words You Can’t Say on TV”

Um dos parâmetros para quem se interessa em discutir comédia e seu impacto social é o trabalho do comediante norteamericano George Carlin, falecido (infelizmente) recentemente. Carlin apresentou certa vez um especial na televisão chamado “Sete palavras que não podem ser usadas na TV” (Seven Words You Can’t Say on TV), levantando-se contra a hipocrisia presente em nossa própria linguagem.

A metalinguagem é óbvia: diante de um caso ridículo de proteção da moral e dos bons costumes das TVs americanas Carlin resolveu discutir qual seria a ofensibilidade de alguns termos proibidos usando a própria televisão, inclusive repetindo diversas vezes os termos. Transgredindo o politicamente correto Carlin gerou polêmica, claro, e també uma mudança de comportamento. As palavras “proibidas” de Carlin hoje são consideradas banais. O humor assumiu uma função de, com o perdão do clichê, expor que o rei está nu, e com o perdão do latinismo, ridendo castigat mores (é rindo que se castigam os costumes).

Enquanto Carlin e Bastos, a seu modo, zombaram dos costumes, o vídeo relatado do grupo Porta dos Fundos se propõe a outro papel - e esse é meu argumento principal. Apesar de ter outros vídeos em que questiona tabus como linguagem (o fantástico Rola, por exemplo), religião (Deus), sexualidade (vários, aponto A Regra é clara por ter sido considerado especialmente polêmico ao misturar o futebol, um ícone do macho alfa hétero, com homossexualidade), direitos do consumidor (Van) e até mesmo os costumes importados em lanchonetes de grife (Parabéns), no vídeo específico Reunião de Emergência, a despeito do que pode aparentar, o grupo Porta dos Fundos não ofende nem transgride absolutamente nada, muito pelo contrário.

Quando se discute política muito comumente pode acontecer, no debate, a presença dos chamados argumentos despolitizantes, que seja por intenção ou consequência, esvaziam o teor da discussão. Por exemplo, um protesto originalmente proposto para discutir a situação das caixas-pretas no transporte público brasileiro, se convertido em um proposto contra a corrupção de forma genérica ele é esvaziado. Parte-se de uma demanda concreta, um tópico específico e dilui-se em uma proposição fraca que não tem solução evidente. No caso das caixas-pretas, a solução é: transparência nas licitações e operações. No caso do “abaixo a corrupção”, qual a solução lógica? Acabar a com a corrupção. Como? Boa pergunta, mas o argumento não suscita nem esclarece debate, no máximo torna-o ainda mais nebuloso e difuso.

O argumento do vídeo destacado no início de Porta dos Fundos é exatamente desse tipo difuso. Em vez de dizer, pontualmente, que um político específico (digamos, Dilma, que é mencionada de forma vergonhosamente velada) é corrupto, apontando negociatas evidentes (que permeiam nossa história), o vídeo cai no clichê de falar que todos os políticos são corruptos. Qual a transgressão aí? Absolutamente nenhuma. Estamos todos cansados de saber que há corrupção na política. Nesse argumento não há nenhuma característica que nos ajude a entender melhor o fenômeno, percebendo, digamos, nossa hipocrisia, ou incapacidade de, sei lá, diferenciar um político honesto de um salafrário. Enfatizo: o Brasil é LOTADO de exemplos diários de absurdos políticos facilmente ridicularizáveis. Um país cujo presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara se presta ao papel de falar que negros são amaldiçoados é uma piada pronta.

Elenco do CQC, exemplo de típico humor político brasileiro

Perceba que há várias formas de se fazer humor político corrosivo e transgressor. Nos EUA é fácil ver o trabalho de Jon Stewart e Stephen Colbert como exemplo, no Brasil esse tipo de comédia infelizmente só tem espaço no Twitter. Mesmo o programa CQC, que se vendia como um representante desse tipo de humor político, eventualmente se tornou somente um colunismo social e uma fonte de críticas despolitizantes. Enquanto havia um quadro realmente muito bom, Proteste Já, que apontava diretamente falcatruas na gestão pública, maior parte da atenção era empenhada em repetir lugares comuns da política, que é, basicamente, uma reação conservadora, precisamente como no vídeo do Porta dos Fundos.

É imperativo destacar que a opção pelo discurso conservador é uma opção legítima. Se você observa uma situação de injustiça e opta por não brigar contra ela, não transgredir e ofender os costumes, você está escolhendo um lado, o lado que aceita os costumes como eles são. E essa é uma opção válida, é o chamado humor chapa-branca, que geralmente usa o humor da mesma forma que o bobo entretinha a corte. Perceba que nem todo humor precisa ser politizante. Da mesma forma que nem todo cinema precisa ser cerebral, criativo e instigante - às vezes você só quer um filme-pipoca pra relaxar - o humor não é diferente. Daí o comediante pode escolher abraçar o conservadorismo e dizer que seu humor é efetivamente inofensivo.

Quando você faz piada com aquele gordinho da sala está escarnecendo uma pessoa por sua constituição física. Quando ridiculariza o torcedor do Corinthians chamando de favelado ou bandido está expondo como é desprezível ser pobre/criminoso. São todos discursos que o emissor escolheu reproduzir, escolheu não se opor. Quando Porta dos Fundos faz uma coletânea de todos os clichês políticos existentes surfando na atual situação política - como eu já disse, a mais rica em décadas - simplificando a tal ponto de simplesmente colocar na conta da atual presidente e do ex, o faz como uma afirmação clara: não desejamos transgredir. Nosso humor não tem compromisso com o enriquecimento das vidas das pessoas. Seu compromisso é com o riso, quanto mais fácil melhor.

A escolha do Porta dos Fundos pode soar estranha, justamente pelo timing, em que se percebe que é preciso amadurecer nossa cultura democrática, discutir, problematizar. Nesse vídeo específico o discurso foi exatamente aquele da grande mídia que o grupo teoricamente se propõe a oferecer uma alternativa. É parecido com o discurso dos Trapalhões, que não se furtava de caracterizar Zacarias como afeminado incompetente, Mussum como negro bêbado e vagabundo e Didi como nordestino trambiqueiro (sendo Dedé nossa âncora, o “normal”). Ou o humor frequentemente escrachado (e esculachado) da Zorra Total. Faz parte da construção cultural do Brasil, daquilo que achamos engraçado.

Porta dos Fundos tem direito de escolher esse caminho. Assim como todo mundo tem direito de não achar graça nenhuma, inclusive de debater e comprovar, passo a passo, como perpetuar a injustiça é mania nacional. Se às vezes o riso é fácil, difícil mesmo é escarnecer a própria tessitura da nossa sociedade, revelando nossos ridículos e absurdos, abrindo espaço pra que algo novo surja. Se fácil fosse, não estaríamos atolados buscando reinventar nossa democracia, perdidos entre discursos conservadores e absolutamente sem graça.

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