Pôster contra o voto dos negros nos EUA

Igualdade, ainda que tardia

É preciso refletir sobre como transformar a igualdade racial em mais do que um bordão ou uma proposta normativa: uma realidade brasileira

Wagner Artur Cabral
Política e Democracia
9 min readNov 20, 2013

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Neste Dia da Consciência Negra — que é feriado em várias cidades, não aqui em Natal (que, como bem apontado por Pedro Henrique Motta , prefere guardar para o feriado o dia de amanhã, comemoração de sua padroeira) — é uma boa oportunidade para pensar e discutir a questão racial.

É curioso que uma das maiores questões no Brasil sobre esse tópico seja na verdade uma meta-questão: existe uma questão racial?

Para responder essa meta-questão eu indico uma imagem compartilhada mais cedo por Helio Paiva Neto:

Não é só impressão

Me parece claro que há, sim, uma questão racial.

Inclusive, eis um post sobre a violência racial e salários de negros:

Chamo atenção para o asterisco, muito importante para entender a escolha metodológica, que não compromete a compreensão do quadro

Aliás, chega a ser difícil sequer enunciar essa meta-questão quando se observa uma imagem como esta:

Meu sangue é de Carnaval

Carnaval de Salvador, numa típica metonímia da sociedade brasileira, demonstrando quem faz festa e quem fica do lado de fora.

Isso me lembra uma imagem que Isolda Lins Ribeiro postou mais cedo:

Será hoje o dia dos brancos, humanitários, fazerem festa à custa dos negros?

Me parece ser um dia bom para pensar um pouco. Se pensando a gente não muda efetivamente o mundo a gente pelo menos começa a mudar. Ou tenta.

Essa longa introdução na verdade serve para eu indicar um texto para sua leitura e propor a minha contribuição para a reflexão sobre a consciência negra e a questão racial em nossa sociedade. Sinta-se à vontade para opinar — apenas enfatizo que o texto é muito bom e merece ser lido, não sendo diretamente vinculado ao meu ponto aqui. Para os apressadinhos, eis o link.

Um dos pontos de vista mais confusos sobre a percepção de minorias como titulares de direitos é o que confunde (propositalmente ou não) os direitos que essas minorias buscam como sendo vantagens de diferenciação. Certos discursos repetem a ideia de que quando uma minoria busca um tratamento diferenciado ela busca, afinal, privilégios. Esse princípio é repercutido aplicado a qualquer minoria que busque seus direitos politicamente na esfera pública.

No caso específico dos negros, que afinal são o ponto central desta reflexão, é fácil encontrar esse argumento na contestação da política de ação afirmativa, mais especificamente, no programa de cotas raciais. As cotas seriam uma forma de favorecimento aos negros que possuiria um duplo impacto negativo na sociedade: por um lado afetaria a necessária meritocracia vigente na sociedade, por outro lado geraria um profundo sentimento de racismo pelo tratamento injustamente benéfico dado a somente um segmento racial.

O cerne do argumento é exatamente esse: as políticas afirmativas de cotas raciais criariam um racismo inexistente ao estabelecer diferenciações incabíveis numa sociedade igualitária.

“Contra a deficiência educacional”

Antes de mais nada é preciso destacar que parto de um pressuposto que considera razoável que o Estado faça distinções. Parece estúpido fazer esse tipo de ressalva, mas há quem esqueça que é necessário, no ato de normatizar, i.e. estabelecer padrões, criar conceitos e diferenciá-los. Se você não aceita que é papel do Estado diferenciar cidadãos para fins de justiça então suspeito que nada que eu escreva aqui fará diferença (trocadilho não-intencional).

A questão então reside exatamente em como poderemos estabelecer a diferenciação sem que ela finde criando mais injustiça do que a que se procura sanar. Em termos populares, evitar que o tiro saia pela culatra.

Entre aqueles que acreditam que o Estado pode agir ativamente — defensores das ações afirmativas, por exemplo — há dois grandes grupos que discutem qual seria o melhor tratamento dado à questão racial no Brasil. Um deles acredita que a melhor resposta é diretamente racial — intervir no espectro racial atingido, no caso, os negros — enquanto o outro grupo defende que a intervenção deve ocorrer no espectro econômico — que inclui não só negros mas outros cidadãos em situação de desafortunada na nossa sociedade.

Parto do pressuposto que ambos discutem em boa-fé.

Me parece que a solução para a dúvida é clara a partir do momento que especificamos o que exatamente estamos perguntando. Quando se acusa as cotas raciais de produzirem discriminação o que acontece, a meu ver, é uma redução da percepção da discriminação a um critério formal ao passo em que se omite a diferenciação material.

Em termos mais claros: o argumento motriz dos proponentes das cotas econômicas é que elas impulsionam “por tabela” os negros, sem precisar criar uma distinção racial. Você resolveria, em tese, o problema dos mais pobres, sem precisar lançar mão de um critério naturalista, coisa perigosa na história da humanidade, isso sem entrar no campo da subjetividade de conceituação. Haveria uma intervenção na sociedade de forma a reduzir a desigualdade racial, mas não por vias raciais, propriamente ditas, somente por vias econômicas. João, negro e pobre, seria atendido. Pedro, branco e pobre, também. Não haveria a sensação de desigualdade racial de privilégio de uma etnia sobre outra.

O problema dessa concepção, a meu ver, é que ela é justamente produto de uma sociedade que enxerga igualdade como acesso a bens de consumo. É normal que, se você pensa que um cidadão tem uma vida plena quando possui acesso aos bens econômicos da vida, um cidadão atinja a plenitude diante de uma boa condição econômica. Em uma sociedade em que todos podem comprar, todos são felizes. Ocorre que há problemas que ultrapassam essa leitura, sobretudo problemas de reconhecimento. Nossa cultura de racismo é tão enraizada que mesmo que estivéssemos diante de duas pessoas racialmente distintas com posses financeiras, ainda haveria estigmatização.

Aí entra o post que eu queria indicar para sua leitura: o ensaio de Ana Maria Gonçalves sobre Monteiro Lobato, o racismo de seu tempo e o contexto da obra As Caçadas de Pedrinho. O texto se chama Não é sobre você que devemos falar.

Altas aventuras no imaginário infantil

A formação do povo brasileiro como hoje o entendemos não se deu por uma canetada mágica da princesa Isabel que concedeu a todos os negros a alforria e o pleno respeito na sociedade. Muito pelo contrário, a despeito da libertação formal, materialmente negros sempre foram, e até hoje são, cidadãos de segunda classe em nossa sociedade, a despeito do que digam as leis. Se inúmeros tratados internacionais alardeiam a igualdade plena entre os povos a despeito de seu credo, orientação sexual ou cor, vemos continuamente o mundo real estapeando o mundo jurídico, que muitas vezes parece aquela criança que insiste que quer enfiar um bloquinho cilíndrico em um buraco quadrado.

O grande obstáculo que impede que a sociedade se assente adequadamente, consubstanciando aquilo previsto na própria Constituição Federal, não é, na maioria dos casos, a lei. Não é a realidade formal. É a realidade material, o dia a dia, que ensina que negro rico é exceção. Negro médico é milagre. Negro juiz é exemplo de superação. O culto da excepcionalidade ocorre justamente pela condição inerente da raridade como sendo a negação do comum. A vida do negro é, por força da nossa cultura e constituição social, fadada à desgraça, à morte em valas das periferias, conversão de João de Santo Cristo em estatísticas de violência nas cidades-satélites do Distrito Federal.

O resgate do negro começa pelo resgate do imaginário, pela afirmação que o ser negro (e de ter sua cultura afrodescendente), como símbolo, não é errado, tampouco sinal de pobreza, sinal de sujeira, de desconforto, de perigo, de bruxaria. A imagem do negro como macaco, urubu, fedorento e afins, que Monteiro Lobato disseminava deve ser contraposta com a inclusão desse povo em nossa sociedade, como um produto da própria ideia de igualdade.

Afirmei anteriormente que há dois principais argumentos contra as cotas raciais em princípio (há argumentos diversos e importantes sobre sua aplicação, como critérios e afins, mas guardo esta discussão para outra hora. Se admitimos que, em princípio, cotas raciais são válidas, passamos a discutir não mais o se, e sim o como): a reversão da meritocracia e o privilégio dos pseudo-oprimidos.

THE CHAMPIONS!

Meritocracia é o primeiro argumento contra qualquer ação afirmativa, declarando que não cabe ao Estado intervir na competição natural entre particulares. O Estado, ao privilegiar os “piores”, prejudicaria os “melhores”. Acontece que o juízo moral sobre o valor particular de mérito deveria, em tese, partir de condições iguais de comparação. Se você presume que um estudante negro, de escola pública, está competindo em igualdade com um estudante branco, de escola particular, está somente agarrado a uma denominação formal. Materialmente, ou seja, no conteúdo além das etiquetas, você está comparando acesso totalmente diferenciado a todos os bens da vida, de qualidade de educação até mesmo a alimentação. Perceba que mesmo sob uma análise formalista (colorblind) que não tome em consideração a cor, o passado ainda faria que o estudante negro fosse influenciado negativamente, sendo incapacitado de competir em igualdade com alguém que teve bem mais recursos durante toda a sua vida.

Qual o mérito (como valor moral) que há nessa situação eu não faço ideia. No máximo seria uma vitória de Pirro, em que o jovem aluno de escola particular se congratula por ter tido todas as chances na vida e receber uma vaga em uma instituição pública quando milhares de jovens negros tiveram poucas ou nenhuma chance.

O argumento do mérito em si me parece despropositado e ignorante da nossa realidade social complexa, que proporciona uma profunda desigualdade socioeconômica, e, portanto, de oportunidades. Portanto é razoável pensar no Estado como uma força que atue justamente regulando essas oportunidades, dando mais liberdade (material, não somente a liberdade pro forma, no papel) a quem tem pouca. É fácil tratar todos com igualdade formal quando estão sob o mesmo ponto de partida, o que é bem distante da nossa realidade atual.

Essa visão é contrária às ações afirmativas como um todo, por achar que ela atrapalha um jogo de livre competição. O argumento que realmente concerne à questão racial é o de que surgiria uma forma de racismo reverso por causa do tratamento privilegiado que se daria à minoria negra. Brotaria na sociedade um sentimento de injustiça, gerando uma divisão que não é natural na nossa cultura, miscigenada por excelência.

Enxergo esse argumento não como impeditivo, mas como estímulo para uma política direcionada para a afirmação das cotas raciais, por um motivo muito simples. Não há no Brasil, por exemplo, ódio banalizado contra grávidas, contra idosos, contra crianças, por receberem tratamento diferenciado do Direito. O motivo pelo qual esse ódio não surge é, a meu ver, a percepção que esses segmentos são parte indissociável da nossa sociedade, do nosso cotidiano, do nosso tecido social, e seu pleito por trato especial é justo.

Como muito bem afirmado pelo ensaio de Ana Maria Gonçalves, o negro sempre foi um alheio na sociedade, marginalizado. Isso impõe um dever ao Estado de trazê-lo para dentro. É preciso grande esforço de educação justamente para que eles e elas sejam vistos como elementos essenciais do nosso povo. Para que não seja mais o feio, o pobre, o esquecido. Não foi por acaso que foi construída essa ideia preconceituosa. Foi um desenho social de desigualdade racial que precisa ser revertido urgentemente.

Enfatizo que vivemos um contexto de políticas sociais de caráter econômico — sendo o Bolsa Família um programa de referência global de combate à pobreza — é essencial refletir sobre a importância de dar um passo além. Em meio a tantas formas que a sociedade busca resguardar os mais frágeis é preciso pensar que há sim, até hoje, uma distinção racial no reconhecimento entre pessoas que causa impacto negativo na vida de todos. Existe um vazio na própria representatividade do negro na nossa sociedade que precisa ser corrigido pela inclusão, não só de pobres, mas de negros, que existem em grande número, mas longe dos centros.

A ideia de igualdade precisa ser uma ideia de todos, defendida por todos e para todos. Nós precisamos assumir como Estado a proposta de igualdade já prevista na constituição como quem diz que uma depreciação racista é uma depreciação a todos nós. É um ataque à ideia de democracia como um acordo de cooperação que beneficia a todos. A igualdade formal muitas vezes mascara o racismo persistente, que ainda traça o destino de tantas pessoas, todos os dias, em todo país. A solução me parece ser mais debate, mais inclusão, mais respeito, mais consciência. Tudo em nome de um projeto de futuro de país.

Precisamos incluir a ideia, o símbolo, a imagem, de que o Brasil não aceita que haja bairros brancos, festas brancas, faculdades brancas. Para que, enfim, a liberdade não seja somente para uma, mas todas as cores.

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