Judt, Gaspari, Brasil

Wagner Artur Cabral
Política e Democracia
12 min readAug 15, 2015

Eis um textão de Facebook levemente adaptado para ficar mais fácil de ler.

Os espaços de diálogo das redes sociais — sejam eles verbais ou não — existem não por termos plateia, mas por desejarmos falar. Tanto é que muitas vezes falamos, mesmo sem plateia. Falamos, expomos, delimitamos traçados do belo e do justo. Algumas pessoas precisam de mais feedback do que outras. O essencial nesse ato expressivo é o posicionamento. Em muitos aspectos é um espaço novo, que nós não crescemos com sua influência em nossa vida. Nossa vida pregressa era fechada em caixinhas, seja as comunitárias (família, sociedade), seja a o confinamento solitário de nossas mentes. Estamos abrindo uma porta e descobrindo, coletivamente, o que há do lado de lá.

A descrição acima se aplica, a meu ver, sem reparos expressivos, à rua, o mais recente chamego da cultura brasileira. Se duvida de mim, tente substituir o texto lá em cima, pensando nas movimentações sociais modernas.

Eu espero.

Dito isso, esse texto é uma comunicação minha, que não precisa de feedback. Há um público-alvo: as pessoas que, como eu, se encontram observando os rumos do nosso país num estado meio contemplativo, meio meditativo, meio apreensivo, demonstrando que a matemática empalidece ante o mundo real e suas complexidades. Eu sei que nem todo mundo é estridente, sei que muita gente admite que não tem respostas pra tudo e por isso precisa avaliar tudo com parcimônia, e sei também que a novidade traz mudanças e com ela a dúvida cruel: estamos testemunhando a evolução ou involução? Sendo menos teleológico, a mudança vai causar dor considerável em nós e quem nós amamos?

Originalmente pretendia escrever sobre um livro muito bom que li recentemente, sob indicação involuntária de Joao Vargas: Ill Fares the Land, de Tony Judt. Quem convive comigo sabe que passei pelo menos um mês falando dele pra todo mundo, sugerindo: leiam, é muito bom! Ou, se estiverem com preguiça, leiam o artigo da The New York Review of Books de 2010, que cobre os pontos principais do livro, ainda que numa versão meio esquálida. (link, caso alguém se interesse)

Eu não sou um bom vendedor, já aceitei isso pra vida. Se talento tivesse viveria entre uma feliz comunidade de fãs de Dire Straits, Kurt Vonnegut e Treme, mas não é bem assim. Então pensei em escrever algo aqui no Facebook, onde algumas pessoas poderiam passar os olhos numa leitura diagonal e depois talvez se interessar por algum ponto específico, que poderíamos bater papo posteriormente (se possível em mesa de bar, mas também há valor na Academia, dizem).

Nesse ínterim o tempo passou, a situação nacional se modificou (“progrediu”, “agravou” são palavras aplicáveis também, com discursos subjacentes). Essa semana, em meio a uma rotina de trabalho levemente ensandecida, tropecei num artigo muito claro do normalmente claro Elio Gaspari, que pôs uma lente importante na passeata prevista para domingo. Recomendo o artigo na íntegra (o link para quem não tiver acesso à Folha: http://naofo.de/6lf8), mas transcreverei um trecho a seguir:

“Para quem não gosta do PT, de Lula e muito menos de Dilma, Eduardo Cunha dá a impressão que lhes faz oposição, mas suas iniciativas agravam a crise econômica e radicalizam a crise política. É verdade que a doutora enfrenta a própria ruína exercitando uma megalomania do fracasso, mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.

Tudo bem: Fora Dilma. Para botar Michel Temer no lugar, “alguém [que] tenha a capacidade de reunificar a todos”? Olhando-se para a oposição, nem a alma de D. Eugênio Sales seria capaz disso. Um pedaço do PSDB quer Temer. Outro quer anular o pleito que o elegeu. Um terceiro quer novas eleições. Isso deixando-se de lado a facção interessada em tirar o parlamentarismo da tumba em que foi colocado por dois plebiscitos.

Há dois fenômenos em curso. O primeiro, visível, é a rejeição a Dilma Rousseff e ao PT. O segundo, encapuzado, é uma tentativa de botar fogo num circo onde o Ministério Público e o Judiciário estão na jugular da oligarquia política e empresarial do país.”

Me parece claro que, se de fato cumprir o que promete, essa passeata de domingo vai trazer um mistureba de pautas. Entre as três linhas do PSDB, as três do PMDB (Temer, Cunha e Renan) já tem bagunça o bastante fazer suar o doutor em ciências políticas que tentar explicar segunda-feira. Para além desses, temos ainda os malucos da Ditadura e os protestantes anticorrupção. O impeachment é uma bandeira difusa que cobre a maioria mas não a totalidade deles. O golpe militar também é um conjunto que abrange vários grupos, mas somente uma minoria quantitativa. Tem gente quer quer impeachment, golpe, até queda de meteoro, qualquer coisa que possa acabar com o PT, a qualquer custo.

O que motiva esse texto é uma sugestão: não dá para tratar todo mundo nesse caldeirão como uma unidade coesa e articulada de insatisfação. Em verdade, se acreditamos que é possível ainda produzir algo de bom no atual establishment brasileiro (sem renunciar a tudo e ter de recorrer a alguma revolução), nós não só *podemos* como *DEVEMOS* engajar o diálogo com quem está aberto para tal. E nesse processo, algumas autocríticas são necessárias, sobretudo por parte da esquerda.

Logicamente, não acho que dê para dialogar com quem quer golpe. Essas pessoas surfam num paradoxo lógico, a única razão pela qual elas podem fazer o que fazem — discursar contra a Constituição — é por não terem garantido o que pedem. Em nome da nossa mãe CF88 deixemos eles darem chilique em seu lugar, sem perder tempo. O pessoal que quer a morte (simbólica ou literal) do PT e petistas sobre tudo também. Não vamos perder tempo batendo palma pra doido dançar. Esses dois exemplos são, no máximo, caso de polícia, que trabalhe caso a necessidade surja.

Entre o pessoal que advoga pelo impeachment temos três tipos.

Um não entende a distinção entre impeachment e recall. Recall é a possibilidade de abreviar um mandato por falta de suporte popular. É uma espécie de controle popular sobre mandatos. Não sou essencialmente contra, mas em democracias instáveis como a nossa, talvez seria uma temeridade. Uma coisa é certa: se tivéssemos recall, Dilma já estaria cuidando dos netinhos no Rio Grande do Sul. Mas até hoje recall neste país não há, então pra tirar chefe do executivo só mediante acusação de crime de responsabilidade contra o país, nos termos do art. 85 da CF88 e da Lei 1.079, de 1950. A despeito do que um ou outro jurista diga, a maioria das pessoas acha que não há indícios de nada parecido com o previsto nessas leis. O próprio Gilmar Mendes, que, justiça seja feita, não deve frequentar o CTG com a Dilma, acha que não existe cenário pra isso.

O primeiro tipo — que pede impeachment não sabendo que não e recall — está apenas equivocado. Nós nem discutimos como país a importância de responsabilidade de adotar um modelo de recall, e quando se tenta fazer uma legislação abrangente com participação popular ela é barrada pelo Congresso, que não tem muito interesse nisso de povo se metendo em assuntos elevados (Decreto 8.243/2014). Esses, talvez você explique que Impeachment não é exatamente o que ele quer/precisa, e daí seguimos.

Um outro tipo de apoiador do Impeachment, o que sabe que há essa distinção mas acha que há base para o pedido, é um interlocutor interessante. Há vários motivos de crítica do governo Dilma, inclusive elementos que poderiam ser interpretados de modo a enquadrar com os artigos da legislação de Impeachment. Talvez seja um pouco tarde para dizer isso, mas eu não escrevo esse texto para isentar a Dilma não. Reconheço muitos problemas no governo, inclusive mencionarei alguns adiante. Mas é uma questão de por as coisas em seu devido lugar. A maior parte das críticas que se faz, atos passíveis de impeachment, se referem a um mandato que já acabou. Ao contrário do que muitos pensam, estamos em um mandato que tem apenas 8 meses, apesar de aparentar ter pra lá de 8 anos. Nesses oito meses, houve algo na atuação da Dona Dilma que justificasse o impeachment? Acho que não, e acho inclusive muito difícil que haja. Mas porquê essas pessoas insistem defendendo essa demanda que a gente percebe ser insubsistente sem precisar nem ir muito longe? Por entender, de relance, que o mandato reeleito é parte integrante do mandato que o antecedeu. Eu entendo a lógica, mas não é assim no Direito brasileiro. Talvez a gente pudesse ter mandatos de 8 anos com uma votação de confirmação no meio? Sei lá, pauta pra reforma política. Mas no Direito brasileiro, hoje, esse pedido também não faz sentido.

Percebam que esses meus argumentos são jurídicos e formais, não políticos. Dizer que não é viável, legalmente, essa manobra, não vai apagar o desejo de quem a quer. Deixar claro que esse impeachment é inadequado apenas tirar uma saída para um desejo reprimido, que se enquadra numa outra categoria, da qual falarei a seguir.

A última categoria pró-impeachment é a dos que sabem que impeachment não é recall, e não estão interessados no motivo. Qualquer um que aparecer, qualquer coelho da cartola, se colar colou. Conheço várias pessoas assim, inclusive gente que respeito muito. Para eles Impeachment é instrumento político por excelência, para tombar um governo que está vacilando. É um argumento lógico. Mas, se você pensar a longo prazo vai olhar com ceticismo uma política que mantém uma bala de prata na agulha. Não só nesse governo, mas em todos os governos subsequentes, a política será vista como manutenção do apoio popular, só e somente. Hoje já xingamos o presidencialismo de coalizão, mas não vai haver nada além disso. Se o presidente perder a maioria do impeachment, entra na zona de rebaixamento, podendo cair a qualquer hora, sem ato específico motivador. Alguns podem dizer que esse argumento é um “slippery slope”, uma indução não-autorizada. Eu concedo. Pode ser que somente nesse governo se use o impeachment sem base factual clara, somente por motivos políticos. Não ficaria exatamente surpreso. Mas temo que isso se torne regra.

Esse último tipo de apoiador de impeachment é de todos os mais difícil de manter diálogo. Para ele o presente está tão ruim que vale a pena correr o risco de abrir um pouco mais a fresta na caixa de Pandora política. Os outros dois eu acho que se interessariam em um debate pelo futuro de Brasil, preservadas as outras preocupações subjacentes com os problemas que afetam nosso país.

A imensa maioria das pessoas que vai protestar esse fim-de-semana está sob um guarda-chuva muito mais amplo e paradoxal. Sai em nome de um não-tema, o Combate à Corrupção. Ora, a corrupção é um problema desde que o mundo é mundo. Por quê cargas d’água não seria um tema? Simples: não há absolutamente ninguém no debate político a favor da corrupção. Não faz sentido marchar pela rotação da terra ou pelo campo gravitacional de Jupiter. A ação social não faz absolutamente nenhuma diferença nisso. Nós fazemos a diferença no combate à corrupção quando tomamos posições claras que, essas sim, recebem resistência.

Exemplo: que tal uma lei que obrigue todos os gastos públicos a serem transparentes? Desde contratos, convênios, até salários de todo o funcionalismo público, incluindo todos os adicionais e penduricalhos. Assim fica mais fácil um cidadão descobrir quem está recebendo dinheiro público e por qual motivo. Essa é uma medida contra corrupção evidente. Tão evidente que parece inconteste, não é?

Vejamos o caso da LAI, Lei de Acesso à Informação, nº 12.527/2011, que basicamente inaugurou uma nova era de transparência institucional no Brasil, atacando todos os pontos anteriores.

Três partidos, a despeito de não votarem contra, determinaram posição em obstrução dessa pauta, claramente saneadora. Vocês não imaginam quais.

Não foi pouca gente, inclusive servidores públicos, reclamando:

A polêmica acerca da publicação dos salários dos servidores

Liminar veta divulgação de salários da câmara

Divulgação de salários do judiciário é tabu nos estados

O tempo passa e a caravana segue. Uma hora o STF pacificou a questão, na marra. Infelizmente os protestos atuais não aconteceram naquele contexto, teriam sido bem-vindos. Atuariam pressionando as instituições envolvidas a fazerem seu trabalho, em prol de uma medida prática boa para o Brasil.

Mas a pergunta persiste: o que querem os anticorrupção? Quais políticas eles desejariam ver postas em prática? O que caberia ao congresso, ao judiciário e, talvez mais importante, ao executivo? Existe um fim a ser alcançado, ou estamos testemunhando somente uma catarse popular que desembarcou nas ruas como uma coqueluche, inaugurada pelos ventos de mudança de Junho 2013?

Nisso eu retorno ao texto de Gaspari: há muitos interesses distintos em jogo, e quem marcha pode se alinhar a algum desses, a vários, ou mesmo a somente seu interesse particular. Como nós devemos interagir diante dessa difusão de pautas? Esperar que elas se concretizem em algo consistente, que possamos defender em sede de propostas legislativas, para de fato produzir mudança institucional? Devemos ficar quietinhos, calados, esperando o temporal passar? Penso que não. Penso que devemos agir, nós que louvamos a democracia e a participação popular na definição dos rumos da vida, ativamente provocando e propondo uma saída para esse período de catástrofes cotidianas que estacionou sobre o país.

Aliada ao pensamento proativo deve estar a alteridade e reconhecimento que há sim demandas graves que precisam ser atendidas. Jogar o jogo do nós versus eles não serve mais. Com o perdão da piada, essa polarização só prejudica o país. Especialmente quando ela se dá numa rejeição hipócrita das ruas. As ruas só são belas nas nossas cores, quando estão ocupadas pelos nossos. Valei-me, Tony Judt:

“If we don’t respect public goods; if we permit or encourage the privatization of public space, resources and services; if we enthusiastically support the propensity of a younger generation to look exclusively to their own needs: then we should not be surprised to find a steady falling-away from civic engagement in public decision-making. In recent years there has been much discussion of the so-called ‘democratic deficit’. The steadily declining turnout at local and national elections, the cynical distaste for politicians and political institutions consistently register in public opinion polls — most markedly among the young. There is a widespread sense that since ‘they’ will do what they want in any case — while feathering their own nests — why should ‘we’ waste time trying to influence the outcome of their actions.”

Nós entendemos o contexto, ele nos parece bem próximo. Um país gradualmente ensimesmado, com ilhas de opinião mediadas pelas redes sociais, onde grupos juntam pessoas que pensam igual e bairros separam pessoas que vivem diferente. Mas isso está mudando. De algum tempo pra cá muitas pessoas que cresceram depois das Diretas Já estão aprendendo a usar as ruas, e isso é ótimo. O que precisamos é ir além da algazarra e da batalha de memes (a que ponto chegamos…) e de fato dialogar com as propostas divergentes. Se não marchar junto, pelo menos estender a mão para um caminho de reconstrução.

Nem todos vão aceitar. Alguns prescindem do diálogo amplo, presos numa obsessão que a democracia comporta o silenciamento de um discurso por outro. Se tem algo que a história nos ensinou é que há algo de resiliente na vida gregária, o consenso é mais que indesejável, é impossível. Sempre brota a divergência. Vamos incorporá-la ao nosso debate.

Vamos discutir o ajuste fiscal. Agenda Brasil? Brasil de quem? Que tal abrir o BNDES? Aliás, que tal prestar mais atenção nos tribunais de contas, Brasil afora? Falando em Brasil afora, vamos rediscutir a distribuição de cadeiras na Câmara? Lei antiterror num país sem histórico de terrorismo? Reforma tributária, quando vamos conseguir ter uma liderança que consiga fazer alguma coisa? Segurança pública: Federalizar? Municipalizar? Desfazer e renovar as polícias? Criar uma polícia judiciária?

O que não dá é pra assistir, lentamente, o Brasil se afundar numa crise institucional grave enquanto alguns batem palmas e torcem pelo pior. Nosso papel, como amantes da democracia, é driblar o cinismo e insistir tentando o diálogo. Ainda que muitos não queiram e defendam que diálogo é concessão, prejuízo. Diálogo é força, diálogo é construção de futuro.

Não participarei do protesto de domingo por não estar disposto a marchar com pautas que não apoio. Não tenho interesse em bater palmas para Eduardo Cunha et caterva. Mas respeito os amigos e amigas que vão demonstrar suas convicções (felizmente não tenho nenhum amigo que queira golpe militar, grazadeus) e estou disposto a participar, discutir e lutar pela nossa democracia, nossa Constituição e o aprimoramento de nosso país. Discutir o papel da Esquerda (E Direita, porquê não?) no nosso Brasil. Contem comigo para o debate honesto.

Ah, e leiam o livro do Tony Judt, é bom pra cacete.

PS: Passando a limpo pro Medium achei que eu deixei de falar sobre a autocrítica que a Esquerda precisa fazer, como parte desse processo de reconstrução. A mentalidade já capilarizada na Direita que a esquerda é acrítica em suas escolhas faz sentido sim. Demonizando posturas chegamos a um ponto em que o debate foi interditado de tantos modos que a própria esquerda tem dificuldade de se encontrar em um debate minimamente convergente. Judt também escreve sobre isso (o trecho dele sobre os problemas do debate político identitário, que substitui a contestação econômica, é um dos mais atuais), e reforço minha recomendação de leitura. Não dá para votar na Dilma, por exemplo, e esperar não ser cobrado quando ela assume uma política de austeridade fiscal análoga à proposta por Aécio. Não dá, gente. O malabarismo argumentativo que permite esse tipo de coisa é o que dinamita a credibilidade de quem se afirma como esquerda. Às vezes parece que o discurso contestador da esquerda tradicional só funciona como oposição. Não pretendo elaborar isso aqui, mas fica a sugestão: é bom olhar no próprio quintal antes de xingar o mal-lavado. Às vezes nós estamos sujos até demais. Temos de ter humildade de ouvir as críticas que merecemos, e sermos maduros o suficiente para aprender com elas.

PS2: No PS anterior não falo dos envolvidos na Lava-Jato, que, sejam de esquerda ou direita, devem ir pro xilindró receber sua pena devida. Falo de políticas públicas e opções de governo.

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