2 de Outubro de 1988 / Agência Brasil / Wikicommons

Nascer, mudar ou morrer

Não há nada a ser ganho que dependa exclusivamente de uma nova constituinte. Há, contudo, muito a ser perdido.

Wagner Artur Cabral
Política e Democracia
8 min readJun 26, 2013

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“Oxalá fôssemos uma nação de juristas. Mas o que somos, é uma nação de retóricos. Os nossos governos vivem a envolver num tecido de palavras os seus abusos, porque as maiores enormidades oficiais têm certeza de iludir, se forem lustrosamente fraseadas. O arbítrio palavreado, eis o regime brasileiro. Agora mesmo, a usurpação de que me queixo perante vós, nunca se teria sonhado, se a espada, que nos governa, estivesse embainhada no elemento jurídico. Mas a espada, parenta próxima da tirania, detesta instintivamente esse elemento.” - Rui Barbosa

Havia prometido escrever algo sobre a questão da Constituinte Exclusiva, com seus problemas essenciais, por isso postei no Facebook uma versão menor deste texto, que agora republico aqui com contribuições de Clara Coutinho. A ideia é tentar explicar um pouco qual o debate jurídico que tem ocupado nosso país. As leis não devem ser privilégio dos juristas, muito menos a Constituição.

Ainda estou esperando opiniões mais abalizadas que me dêem razão para enxergar algo que hoje não enxergo. Me parece um absurdo (jurídico) tão grande que ver essa possibilidade ventilada me faz assumir que eu não entendo de Direito, ao menos não DESSE Direito. Ficou maior que eu pensava, mas não tenho tempo pra reduzir e tornar mais conciso algo que é meio enrolado.

Anatomia de uma constituinte

Manifestos pela Constituinte de 1988

Vejamos: o que é uma Constituinte? É um momento de rompimento de paradigma, em que se inaugura uma nova ordem constitucional. A Constituição serve como regra principal de um sistema jurídico, à qual todas as demais se reportam e devem obediência. Ela não é a única lei, na verdade deveria ser só uma espécie de lei básica. Tudo que não for básico - logo, acessório - deveria vir apartado, guardando somente o que existir de mais grave e essencial pra ser objeto da Constituição. É por isso que existem leis e outras normas infraconstitucionais: complementam o ordenamento jurídico, estabelecendo novas regras (sem preciosismo quanto à definição teórica do que seria regra). Qualquer norma infraconstitucional deve estar de acordo com a Constituição, pois de modo contrário seria inconstitucional.

O momento de definição do conteúdo da Constituição, a qual vai reger todo o ordenamento jurídico, é o momento da (Assembleia) Constituinte. Em outras palavras, é quando se define as linhas mestras de uma ordem jurídica, com seus valores e instituições.

Ao mesmo tempo em que se afirma como documento perene nossa Constituição Federal (CF) se apresenta como documento passível de melhoras, portanto, imperfeito. Para que possa receber alterações foi criado um procedimento especial de Emenda (as famosas PECs são exatamente Projetos de Emenda à Constituição) que está descrito no artigo 60 da CF.

No entanto, por meio da Constituinte que criou a Constituição Federal de 1988 nós escolhemos alguns valores como essenciais, e demos a eles o status de cláusulas pétreas. Isso quer dizer que, embora possamos alterar a Constituição e amoldá-la, enquanto nós tivermos essa Constituição, devemos defender esses valores acima de quaisquer outros. É uma forma de dizer que este é o retrato de nossos anseios, do Brasil de 1988, que nós queremos garantir.

[É importante notar, como acrescentou Solino no Facebook, que a Constituinte também não foi um mar de rosas em meio a tempos de paz. Foi um processo político complexo, que inclusive não foi fruto de um corpo político especialmente eleito para tal: na verdade em vez de eleger constituintes basicamente se aproveitou o congresso vigente. Além disso, a sombra da Ditadura ainda estava lá, restringindo de várias formas nossa amplitude de escolha. Mas foi, insisto, o melhor possível, à época.]

As cláusulas pétreas estão mencionadas no artigo 60 da CF, que descreve os limites para o processo de emenda à Constituição:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (…)

§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.

Não há, portanto, qualquer limitação à reformulação da organização política (além do estabelecido no artigo) por emenda à Constituição, ou seja, não se trata de cláusula pétrea, imutável, que ensejaria a edição de nova Constituição - ainda que parcialmente.

[Existe uma discussão muito interessante e complexa nesse tema - longe de mim querer fazer parecer simples algo que não é - que é o déficit geracional da formação de um texto constitucional. Em outras palavras: nós (o povo brasileiro de hoje) não fizemos esta constituição, nós herdamos as palavras ditas por nossos pais, e nós poderemos achar sensato fazer que nossas próprias palavras sejam a lei de nosso tempo. Mesmo que a CF sofra constante mutação ainda resta um pedaço imutável, como legado, que nós podemos ou não guardar.]

A questão que nos é proposta é que toda constituinte é um momento de mudança de paradigma jurídico, daí não fazer muito sentido falar de constituinte restrita ou exclusiva. Se estamos falando apenas de um esforço concentrado de elaboração normativa então nós estamos falando de um procedimento legislativo derivado, ou seja, que não cria, mas que segue a Constituição, sendo derivado dela. Existe, sim, o poder constituinte derivado. Mas ele é exercido cotidianamente, pelo legislativo, e se limita ao que estipula a Constituição vigente. Ao se falar em constituinte, fala-se em poder constituinte originário, que inaugura uma ordem jurídica, retirando-se todos os pressupostos e garantias individuais que temos hoje estabelecidos.

Além da impossibilidade teórica há ainda a impossibilidade jurídica: a CF definiu no artigo 60 como ela pode ser emendada, estipulando seu procedimento: (art. 60, § 2º: ”A proposta será discutida e votada em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.”).

Ou se faz alterações por essa via, por meio do poder constituinte derivado, ou se contradiz a Constituição. Pode-se chamar essa ruptura de Constituinte, Levante Popular, Vontade Divina ou como quiser, vai ser, a despeito do nome charmoso ou assustador, um ato inconstitucional em sua essência, uma vez que nega a Constituição existente e propõe a criação de novas diretrizes e linhas mestras que balizarão todo um ordenamento jurídico.

Os jogos da política

Pronunciamento à nação da Presidenta Dilma Roussef

Assim, partindo do fato que é um ato manifestamente inconstitucional, há duas interpretações sendo discutidas pelos juristas, cabe a você, que aguentou ler até aqui, fazer seu próprio juízo de valor, subscrevendo, apoiando e/ou contestando qualquer opção, lembrando que eis um bom tempo para você oferecer sua própria saída pro imbróglio.

Opção 1: Dilma realmente pretende levar adiante uma constituinte, encerrando o reinado da CF 1988, abrindo portas para grandes mudanças. É preciso ressaltar que a única diferença entre uma constituinte e o congresso regular seria na facilidade de aprovação de texto constitucional. Tanto poderia haver o uso do mesmo congresso atual quanto poderia haver a eleição de uma nova constituinte só para aprovar esse novo documento.

Eu honestamente gostaria de acreditar que seria possível hoje eleger uma nova composição do congresso capaz de nos dar MAIS DIREITOS do que os que temos hoje garantidos em cláusula pétrea, que, lembrando, não estariam previamente garantidos em uma nova Constituição (seria necessário optar, mais uma vez, por incluir, por exemplo, cada um dos direitos estipulados no artigo 5º). Como nossos poucos direitos têm sido tolhidos por uma bancada extremamente conservadora, sendo garantidos somente por via judicial e/ou a marretadas jurídicas, só fico com a impressão que não há como ver muita esperança em uma constituinte que garanta mais do que CF hoje faz. Os Felicianos e Bolsonaros da vida provavelmente vão encher nossa constituinte de vários dispositivos que provavelmente vão mudar bastante aquilo que chamamos de Brasil. Provavelmente.

Opção 2: Dilma está fazendo um blefe com a população, jogando pro Congresso a obrigação de se manifestar contra a reforma política em seus termos. É esperado que o Congresso faça isso, já que sua proposta é manifestadamente inconstitucional. Para responder a Dilma o Congresso tem duas opções. Primeira: afronta a Presidente institucionalmente, peitando a Chefe de Estado que nesse exato momento conseguiu converter um clima de insatisfação institucional redirecionando o ódio amorfo contra o Congresso omisso. É uma opção complicada e de sucesso duvidoso, sem falar na crise institucional que seria escancarada. Segunda: Faz, no susto, as reformas que seriam necessárias, tornando, por sua vez, a constituinte desnecessária. De ambos os modos Dilma venceu o jogo político, ainda que montada num Frankenstein jurídico.

Claro que isso ainda pode dar muito errado, e a constituinte pode acabar saindo e frustrando os anseios de Dilma (e os nossos), mas em clima de total instabilidade institucional é só desestabilizar um pouco mais e inventar mais uma quebra de ordem. Não quero especular sobre como isso se daria, mas de qualquer forma já estamos indo longe demais daquilo que eu planejava falar, o fenômeno jurídico. Gostaria de ressaltar, afinal, que, a despeito dos partidários do PT elogiarem o ato de Dilma como uma jogada política de mestre (Littlefinger would be proud) trata-se de uma boa e velha manipulação das leis por “razões puras”. Manobrar o ódio popular para fazer valer suas pautas. Promessa de política nova, de educação, de aproximação com o povo? Tudo balela, conversa fiada em nome de um “projeto de governabilidade”. Eis um valor que parece que nunca muda, consolidando a ideia que o Iluminismo aqui nunca chegou, ainda precisamos ser governados no escuro pelos sábios com suas tochas.

O que me resta é concluir que ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.

Mais algumas migalhas no caminho

Sessão do Supremo Tribunal Federal

Primeiro post scriptum: Na opção 1, Dilma poderia fazer a Constituinte utilizando um artifício que eu considero como ilegal e imoral, mas estamos falando de Constitucionalismo, o que implica dizer que a Política fala muito mais alto que o Direito.

O governo pode fazer uma PEC criando uma nova forma de Emenda Constitucional, uma espécie de Assembleia Constituinte ou o que for - inclusive emenda constitucional por plebiscito. Provavelmente essa PEC seria considerada inconstitucional até mesmo em seu projeto, o que de uma forma ou de outra faria que o STF realizasse controle concentrado de constitucionalidade sobre ela. Mas, pra sorte (?) de Dilma, existe a PEC 33 que modifica o processo de controle de constitucionalidade para que tipo de norma? Exatamente, emendas à constituição. Pela PEC 33 a PEC barrada pelo STF volta a plenário no Congresso. Se for confirmada então vai pro voto popular, que decide quem ganha na queda-de-braço, o Judiciário ou o Legislativo. Como o povo quer profundamente uma reforma política, provavelmente essa PEC autorizando a Constituinte passaria. Aí está a solução formalmente constitucional. Detalhe importante: a PEC 33 em si pode ser considerada inconstitucional. O jogo é mesmo complicado.

Segundo post scriptum: Há ainda mais uma opção, ainda mais sutil. No Ato de Disposições Constitucionais Transitórias, uma seção da CF dedicada a regramentos temporários, uma espécie de fase de adaptação à constituição nascente, tem uma previsão de revisão constitucional: “Art. 3º. A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral.”. A revisão foi realizada em 1993, com pouquíssimas emendas de revisão aprovadas. Poderia ser o caso de realizar outra sessão semelhante, talvez com outra PEC só para esse fim - que poderia, claro, ser considerada também inconstitucional. De todo modo, esta é uma possibilidade que sequer vi ser suscitada ainda.

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