O peso do diálogo

Construir pontes e consensos é uma atividade tão difícil quanto importante para qualquer sociedade

Wagner Artur Cabral
Política e Democracia

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Oi, você vem sempre aqui?

Os números mais recentes sobre o panorama atual das redes sociais são impressionantes. Ajeite-se na cadeira e veja só: segundo dados do segundo semestre de 2013 a estimativa global de usuários de Facebook é de 1.4 bilhões de pessoas. 98% dos jovens entre 18-24 anos usam redes sociais. Cada pessoa gasta, em média, 15 horas e 30 minutos no Facebook por mês, totalizando mais ou menos meia hora por dia. No agregado gastamos em torno de 700 bilhões de horas por mês no site de Zuckerberg. Estamos produzindo conteúdo como nunca antes na história deste planeta. Todavia, basta alguns minutos e scrolls nas páginas de Facebook, Twitter e afins para constatar, com surpreendente naturalidade, que mais espaço potencial de comunicação não equivale a mais diálogo.

A internet, em sua efervescência, constrói um clima cultural e comunicativo que paira por seus usuários (habitantes? componentes?), algo próximo daquilo que os alemães conceituaram por zeitgeist (espírito do tempo). Esse zeitgeist fornece a seus habitantes pautas alternadas, que se renovam diariamente com novas questões de interesse público, apresentadas para avaliação de uma sociedade diariamente convidada por diversos meios de comunicação individuais, a se posicionar. Se noutras épocas a influência midiática era eminentemente vertical, despejando a opinião de poucos núcleos formadores na massa popular, é plausível argumentar que vivemos em tempos de relativa horizontalidade. A notícia bate à sua porta, você a recebe e a recomenda aos amigos. Com ela segue mensagem de aprovação ou rejeição. Preste atenção, isso é importante. Veja que absurdo. Você não sabe o que aconteceu. Uma pessoa engajada pode disseminar suas convicções de forma extremamente ágil e virtualmente sem custo. Fama tornou-se um conceito inútil sem a percepção de capilaridade — capacidade de espraiar informação, fazê-la chegar e influenciar pessoas.

Independente dessa nova feição das relações sociais — cujo entroncamento dos contatos interpessoais não se dá mais nas ruas e nas pracinhas, mas nos ambientes digitais das redes virtuais — permanece a dúvida sobre se essa multidão de opiniões divergentes tem auxiliado ou dificultado o diálogo.

Em outros termos: falar mais nos aproxima ou nos afasta das pessoas?

Doug Muder, mais ou menos 50 anos, ainda bem vivo

Espelhos

Recentemente Doug Muder, autor do excelente blog Weekly Sift, escreveu um artigo bastante interessante sobre a má qualidade do debate político atual (nos EUA). Muder ficou relativamente famoso na internet por seu artigo intitulado “A aflição dos privilegiados”, em que retrata a tendência contemporânea de retração dos grupos que observam seus privilégios históricos serem questionados. Diante de uma série de medidas que vêm sendo tomadas em vários países buscando redução de desigualdades, igualdade racial e empoderamento feminino é simplesmente natural que aqueles que se beneficiavam do status quo ante sintam-se violados em seus direitos — ou naquilo que julgam ser seu direito. O modo, contudo, em que essa divergência é exposta, faz toda a diferença.

Muitas coisas na política americana estão erradas, mas o problema que invade nossos relacionamentos mais próximos é a carência de uma caixa de ferramentas bem preparada para o diálogo político. No lugar temos uma superabundância de retórica elaborada por combatentes em torno de uma metáfora de guerra, bem construída para desferir ataques, marcar pontos, e deixar nossos inimigos furiosos. Nos tornamos bons em demonizar uns aos outros, representando erroneamente as ideias alheias, e distorcendo fatos em nosso proveito. Às vezes os distorcemos tão bem que nos enganamos, e findamos vivendo em um mundo de fantasia. Cada noite na televisão (e onde você preferir na Internet) você pode ser treinado na retórica mais atual, a melhor pra inflamar seus aliados e humilhar seus oponentes.

Parece óbvio que um discurso lastreado nessa prática é de pouca utilidade, consolidando um ambiente em que as partes simplesmente não dialogam, no máximo comunicam unilateralmente suas visões e esperam que elas sejam aceitas, seja pela repetição insistente ou pela violência moral do assédio argumentativo — quem acha que a violência verbal é insignificante deveria dar uma checada eventual nas “mentions” dos principais debatedores no Twitter. Muder questiona: quantas pessoas são efetivamente convencidas por meio dessa prática avassaladora? Será que o abuso moral do discurso zelote resolve alguma coisa? Humilhar e menosprezar o “adversário” vencerá a guerra discursiva?

O que é fácil de concluir é que essa não é das posturas mais razoáveis. Ainda que funcione aqui e ali certamente fica aquém daquilo que escolhemos chamar (e idealizar, claro) como civilização. Um fato distintivo desse arranjo social é justamente a autoridade do argumento, que, não por sua embalagem (especialmente seu volume e raiva), mas por seu teor, consegue promover mudanças em corações e mentes.

Muder exemplifica um processo de convencimento (e mutação de consciência) com o qual eu particularmente me identifico. Ele, assim como eu, veio de uma formação bastante moralista, e foi evoluindo seus pensamentos à medida em que entrava em contato com elementos “alienígenas” de seu modo de vida. Já disse mais de uma vez que eu, pra servir de exemplo autodeclarado, tive uma criação extremamente preconceituosa. Foram necessárias várias pequenas ocasiões de contato com a alegria e o sofrimento humano para que aquele ponto de debate insosso e abstrato que eu discutia por aí se corporificassem em pessoas e dramas individuais. Foi preciso uma aproximação, descer do genérico para o particular.

Há uma diferença no enfoque. Uma coisa é encarar o problema do geral para o particular, outra fazê-lo no sentido inverso. Retornarei a esse ponto específico abaixo.

Mãe e filha, fotografadas pelo Humans of New York

Essa miniaturização das grandes causas nos rende exemplos às vezes belíssimos, mas mesmo na banalidade já os torna mais fáceis de proporcionar identificação. A quem usa o Facebook recomendo ambas as contas Humans of New York e Humans of Teeran. A foto acima retrata mãe e filha, e vem acompanhada de um “causo”, em que uma delas nota como a outra sempre enxerga a vida como uma oportunidade de aventura. Cita um exemplo: durante o Furacão Sandy o piso na casa cedeu, e a outra aproveitou o entulho decorando-o para o Natal. Que uma pessoa consiga se preocupar com iluminações de Natal após o assoalho da casa ter cedido talvez deixe muitas pessoas estupefatas. Mas pode servir de exemplo para vários tópicos distintos. Um exemplo de relação de mãe e filha. Exemplo de sobrevivência aos desastres naturais. Falando a você de “sobreviventes de desastres naturais” eu comunico muito mais com essa imagem do que com dossiês repletos de números.

Essa aproximação a exemplos de estranhos pode ser chamada de simpatia, e pode ser um dos conceitos-chave na compreensão do atual problema discursivo, bem como sua solução. Adam Smith (ele mesmo) já escreveu sobre o tema em sua Teoria dos Sentimentos Morais:

Por intermédio da imaginação podemos nos colocar no lugar do outro, concebemo-nos sofrendo os mesmos tormentos, é como se entrássemos no corpo dele e de certa forma nos tornássemos a mesma pessoa, formando, assim, alguma ideia das suas sensações, e até sentindo algo que, embora em menor grau, não é inteiramente diferente delas. Assim incorporadas e nós mesmos, adotadas e tornadas nossas, suas agonias começam finalmente a nos afetar, e então trememos, e sentimos calafrios, apenas à imagem do que ele está sentindo. (…) Que essa é a fonte de nossa solidariedade para com a desgraça alheia, que é trocando de lugar, na imaginação, com o sofredor, que podemos ou conceber o que ele sente ou ser afetados por isso, poder-se-ia demonstrar por muitas observações óbvias, caso se julgue que não é bastante evidente por si.

Esse nível de identificação certamente não está disponível para os debatedores que disputam (seria impreciso dizer que “dialogam”) ao modo denunciado por Muder. O modus operandi do debatedor político interessado em um combate interpessoal não possui espaço para a alteridade ou para a simpatia. Muito pelo contrário, passa pela desconstrução da pessoa “adversária”, que deixa de ser um ser pensante, complexo, com um passado e sentimentos para ser apenas um conjunto de alcunhas depreciativas. “Esquerdista”, “Esquerdopata”, “Reacionário”, “Golpista”, entre tantas outras, são nomenclaturas que podem servir para muita coisa, mas certamente não são adequadas para se aproximar de alguém.

Provavelmente a obra de ficção mais acurada para descrever esse comportamento de incapacidade discursiva é o esquete de comédia do grupo britânico Monty Python, “A clínica do argumento” (trocadilho com a palavra argument, que em inglês quer dizer, ao mesmo tempo, argumento e discussão). Aqui está o vídeo, abaixo destaco um trecho. Recomendo-o inteiro, contudo, pois é simplesmente hilariante.

Monty Python, The Argument Clinic

O trecho mais brilhante para nossa discussão é quando o cliente começa a contestar a técnica de debate empregada pelo seu argumentador. Enquanto o cliente tenta obter respostas o outro meramente responde negativamente.

Cliente: Olhe, isto não é uma discussão.

Argumentador: É sim.

Cliente: É apenas contradição.

Argumentador: Não, não é.

Cliente: Aí está. Acabou de me contradizer.

Argumentador: Não, não fiz isso.

(passam algumas contradições inúteis)

Cliente: Uma discussão não é o mesmo que contradizer.

Argumentador: Pode ser.

Cliente: Não, não pode. Uma discussão são várias afirmações para estabelecer uma perspectiva.

(Após definir de forma surpreendentemente sucinta e elegante o que é um diálogo, se espera que o outro lado tome consciência que não está ajudando em nada para compor qualquer tipo de perspectiva de modo construtivo.)

Argumentador: Não, não é.

(Droga.)

A resposta final do Argumentador é emblemática, demonstrando exatamente o que é essa perspectiva meramente negacionista não-propositiva de um segmento inútil do diálogo — ao menos como diálogo, que conceitualmente depende de intercâmbio de ideias, que não se presta a produzir resultado, basta em si mesmo como uma vontade catártica de falar, e falar, como se todos tivessem direito de expor suas opiniões livremente, imunes à crítica alheia. Trata-se de um poço de narcisismo emparedado numa muralha de amor-próprio. Cada opinador dessa categoria é em si um monolito opinativo, intangível e inalcançável.

Esse comportamento é uma patologia do discurso, que só é compreensível se adotado como estratégia (como vários colunistas que são contratados como polemistas, sendo pagos exatamente para semear a discórdia). Se você não for um advogado, polemista contratado ou uma pessoa com um senso de humor bastante sádico, esse comportamento não faz sentido algum em um debate. Uma discussão improdutiva só faz sentido para quem se beneficia da ausência de resultado, da inércia e do imobilismo.

Se você tem interesse real no discurso, proponho dois caminhos a serem explorados: o mais humano e o mais abstrato. A distinção entre eles — seu método e sua essência — faz surgir uma diferença crucial na sua aplicação. Não são fórmulas garantidas para um diálogo bem-sucedido, somente estratégias que considero, na minha experiência (obviamente contestável), úteis para se ter sucesso no terreno acidentado do embate de ideias.

“ Os homens nascem iguais, mas no dia seguinte já são diferentes.”
— Barão de Itararé

O mais humano

Já expus que, por meio da possibilidade de identificação nós podemos nos aproximar, e, de certa forma, fazer das dores alheias nossas dores também, comungando com suas experiências e partilhando de suas preocupações. Quando o diálogo se dá entre iguais ele é imensamente mais produtivo.

Arthur Schopenhauer, (1788-1860), filósofo e wolverine before it was cool

Um dos filósofos que melhor trabalharam o conceito de empatia foi o alemão Arthur Schopenhauer. Não que Schopenhauer fosse um sujeito exatamente humanitário (suas perspectivas para o Direito Penal são de dar calafrios), mas estava no cerne do seu pensamento a ideia que existia um fundamento único em toda existência. A essa energia ele dava o nome de Vontade.

Ele importou do pensamento oriental a noção de que existe uma unidade substancial na existência. Algo que faz de tudo o que existe a mesma coisa, ainda que de modo diferente. Aquilo que é, em princípio, igual, acaba sendo disfarçado de formas distintas por algo que ele chama de “Véu de Maia”, que compartimentaliza a existência em frações aparentes.

Imagine uma caixa de lápis de cor.

Para Schopenhauer toda a existência é algo como uma composição de desenhos feitos a partir de lápis de cor, com graus diferenciados de sofisticação.

Imagine que eu queira desenhar uma pedra, e pra isso precise apenas de um lápis preto. É um objeto que não se move, nem se altera durante a vida. A simplicidade unicolor é suficiente.

Já uma árvore, por sua vez, possui alguma sensibilidade. Algumas espécies de plantas inclusive se movem para acompanhar o deslocamento do sol. Eu precisaria de mais cores para descrever essa vida, ainda que singela.

Um animal seria um ser que se move, respira, e possui um sistema nervoso que o capacita a sentir. Alguns animais com cérebro mais sofisticado conseguem ter relações sociais e ter inclusive sentimentos muito próximos dos humanos. Eu precisaria de muito mais habilidade e bem mais cores para descrever esse animal.

El tres de mayo de 1808 en Madrid — Francisco Goya

Já o ser humano — também um animal, mas dotado de uma capacidade cognitiva singular, repleto de nuances, com sua capacidade de raciocínio superada somente por sua capacidade de abdicar de toda a razão pelas paixões mais “fúteis” (as aspas aqui são imensuráveis), requereria toda a cor existente nesse universo. É normalmente bem difícil de descrever, quem dirá explicar.

Entre os diferentes graus de sofisticação, uma coisa é certa: tudo que existe, tudo o que somos, não passa de reinterpretações e reaplicações dos mesmos temas, num constante reaproveitamento de elementos fundamentais. A pedra, a planta e o filósofo alemão são todos feitos de lápis de cor, a despeito do quanto o último se ache essencialmente superior aos anteriores. Para Schopenhauer é preciso olhar para além do véu, e perceber que onde parece haver diferenciação na verdade só há distorção, cortina de fumaça.

Toda forma de distinção é aparente e relativa. O elemento essencial no discurso deve sempre ser o diálogo, a capacidade de aproximação e intercâmbio de ideias entre iguais. Nesse sentido, para derrubar o véu que nos esconde e faz que pensemos que somos diferentes, quando somos na verdade bem parecidos, é importante o contato, a experiência que une.

Retratos da dor: mães da Praça de Maio, em Buenos Aires, reclamam semanalmente notícias de seus filhos desaparecidos pelo regime militar

O relato pessoal no discurso público possui o papel social de exposição de um fato, algo que precisa ser noticiado e tomado conta. Sem que aquilo seja divulgado, tal fato não entrará na esfera de conhecimento do indivíduo. Se ele não descobre que quem sofre as moléstias da vida são pessoas como ele, com nome, sobrenome, endereço e CPF, continuará reduzindo o sofrimento às estatísticas, de forma exatamente impessoal.

A superação dessa barreira cognitiva — que impede que a pessoa tenha conhecimento do sofrimento de outra — é especialmente importante no caso dos direitos de minorias. Ora, por definição, minorias são escanteadas do discurso público, estando incapacitadas de difundirem seus pleitos publicamente. Falar de minorias, inclusive, é dar dar espaço para um termo que precisa de uma compreensão mais apurada: Todo direito de minoria na verdade é um direito da sociedade inteira, que pode se encontrar em uma situação de minoria ou fragilidade perante o resto da sociedade). Mas existe uma barreira de reconhecimento para aquelas pessoas.

Se sua vida e agruras fossem de pleno conhecimento não se tratariam de minorias, mas de maiorias, e (provavelmente) estariam acobertadas devidamente pela proteção institucional do Estado (malgrado restrições contingenciais). O Congresso é um órgão representativo democrático, normalmente defende o interesse da maioria. Se o interesse da minoria for igual ao interesse da maioria será incorporado às leis pelo legislativo naturalmente. Esse raramente é o caso, simplesmente por importar em concessão de direitos que são vistos como desnecessários pela maioria, que deles não se beneficia.

Em nenhum caso é tão importante a divulgação dos relatos de sofrimentos de indivíduos quanto no caso das mulheres, negros, índios, gays e tantas outras minorias que são continuamente tratadas como bárbaros em meio à nossa sociedade supostamente sadia e pacificada, atrapalhando nossa boa vivência com suas reclamações.

O diário de Anne Frank é um dos registros testemunhais mais famosos, denunciando a banalidade dos sofrimentos sofridos pelo povo judeu na Segunda Guerra Mundial

A narrativa de cada João e Maria oprimido pela cultura, pela sociedade, pela religião, pelo Estado, pelo patriarcado, pelo capital, pela comunidade, pelos costumes, pela família, pela insegurança, pela vida em si, tem seu valor para comunicar e “contaminar” a novos integrantes do discurso perspectivas antes desconhecidas.

Fazer a novas pessoas o mesmo que já fez a mim e a Doug Muder, como mencionei acima. Não nego, inclusive, que esse tema seja particularmente caro a mim. Conseguir entrar em contato com ideias diferentes mudou radicalmente como eu enxergo o mundo, e tenho uma dívida inegável que jamais pagarei.

Voltando: derrubando a barreira entre as pessoas podemos desfazer a estranheza, e entender que debaixo daqueles conceitos como “gay”, “reacionário”, “misógino”, estão pessoas como eu e você. O primeiro passo é justamente estabelecer essa conexão de reconhecimento. A partir daí podemos de fato dialogar. O “inimigo” deve, tal qual os monstros de Scooby-Doo, ser desmascarado: somos todos pessoas em carne e osso, com temores e argumentos mais ou menos relevantes.

Contudo, essa forma de conexão não ocorre sem ruídos e problemas. À medida em que possibilitamos essa derrubada do muro que nos afasta utilizando exemplos e testemunhos temos dificuldade em articular uma resposta plausível. É claro que há uma mensagem: Eu, que sofro, chamo a atenção para um sofrimento (meu ou de alguém com quem me compadeço). E daí? Pra onde vamos? O que faremos, como responder? Como podemos, como uma sociedade, agir diante do injusto?

Atista político e primeiro gay assumido a assumir (sem trocadilhos) cargo público nos EUA: Harvey Milk em passeata por direitos dos gays

Quando a realidade particular é “tratada” pela percepção coletiva perde um pouco do seu vigor, passa a ser enxergada pela lente da coletividade, muitas vezes visando uma aplicação prática. Recebida a demanda, enxergada a carência, a sociedade (composta não exclusivamente por quem tem a demanda, obviamente) formula sua proposta que é, naturalmente, enviesada. Vemos, por exemplo, o histórico de concessão de direitos e tentamos encaixar aquelas demandas aos modelos existentes. Buscamos encaixar o discurso em exemplos anteriores para estabelecer analogias. Nessa busca por incorporar esse novo elemento ao discurso, de certa forma, se restabelece um pouco do Véu de Maia.

Seria muito fácil se a cada demanda pudéssemos, com um assinar de papéis, mudar a sociedade. Salvo raros casos, mudar o mundo dá muito trabalho. Não basta mudar uma realidade jurídica, há diversos outros fatores econômicos, comportamentais e até mesmo pedagógicos que precisam ser modificados. Nesse esforço, é importantíssimo o engajamento longo e resiliente em garantir que todos as etapas sejam desempenhadas e que a demanda proposta pela parte mais frágil não seja desviada ou sequestrada se transformando em algo totalmente adverso (às vezes piorando ainda mais a situação anterior).

Panfleto de campanha pela formalização do trabalho das profissionais do sexo.

Por essa razão personalíssima do discurso de testemunho trata-se de uma área bastante complicada no diálogo. Você não tem base para desqualificar o sofrimento de quem sofre. Você não pode dizer a um homossexual que aquilo que ele sente não é humilhação, da mesma forma que não pode informar a uma mulher que não tem atualmente direito pleno sobre seu corpo que seu sofrimento é exagerado. Seria cruzar uma espécie de fronteira invisível do juízo particular, em que o juízo do outro é soberano, tal qual o seu o é, na sua vida.

Em vez de aprofundar uma discussão sobre ética e as delimitações filosóficas da moral acho importante frisar que, a despeito de muitas dessas dúvidas serem insolúveis, nem todas o são. Não é preciso ter uma concepção moral única e exclusiva que abarque todos os fatos da vida para que possamos tomar decisões com base nas pequenas coisas, e, sobretudo, nas pequenas consequências que se sucedem sobre a vida das pessoas. Conhecer os dramas particulares é, pelo menos, vislumbrar as motivações mais importantes na vida das pessoas.

Nessa aproximação do discurso pelo caso particular temos uma facilidade e um problema. Podemos ampliar nosso espectro de conhecimento, ouvindo vozes incomuns, mas temos dificuldade em introduzir esses pensamentos contra-majoritários na gramática comum. Uma solução para o problema seria a aplicação conjunta de outro método de diálogo, pensado de forma mais distanciada, invertendo nosso olhar.

“Não é triste mudar de ideias, triste é não ter ideias pra mudar”
— Barão de Itararé

O mais abstrato

Debates científicos são normalmente extremamente ilustrativos, ainda que nem sempre ilustrando aquilo se propõe. Algumas vezes eles mais esvaziam do que enriquecem. Mas, felizmente, podemos contar, às vezes, com a engenhosidade científica em nosso favor.

“Ve? Ao mesmo tempo!”

Um dos experimentos mais famosos na ciência é aquele proposto por Galileu Galilei, questionando alguns elementos da física vigente em seu tempo. O prolífico italiano questionava a convicção vigente de que corpos com massa maior seriam atraídos com mais velocidade à terra. Uma bola de metal, por exemplo, cairia mais rápido que uma pena. Galileu discordava, e propôs a seguinte situação para explicar sua divergência.

Imagine que uma pessoa suba a uma torre e de lá deixe cair dois corpos com massas distintas. Um objeto tem 2kg, o outro 4kg. Se o último possui velocidade naturalmente superior ao primeiro, caso amarremos ambos, o peso de 4kg será desacelerado pelo de 2kg. Parece lógico. Mas, se juntos são um peso de 6kg, sua velocidade não deveria na verdade acelerar? Em outros termos: se o resultado da união entre 2 e 4kg for um pouco mais lento que um peso de 4kg, como ele ficaria comparado a um peso de 6kg?

Velha ideia, ideia defendida por Galileu

Por meio desse experimento mental Galileu demonstrou o que pode ser comprovado empiricamente até hoje, que a gravidade afeta igualmente corpos de massas distintas, sendo a velocidade limitada não pelo peso, mas pelo formato e resistência que aquele objeto oferece ao ar. Trata-se de uma forma elegante de propor um argumento contundente que supera um velho credo que já não mais se sustenta em bases científicas.

Com o perdão do trocadilho, Galileu foi bastante inventivo, de uma forma a trazer uma resposta simples a um problema teórico de seu tempo.

Experimentos mentais tem sido fundamentais nos questionamentos da vida desde priscas eras. O exemplo de Galileu não foi acidental. Às vezes é preciso lançar mão de modelos de pensamento que nos iluminem em nosso raciocínio, ajudando que percebamos que o mundo, visto em menos detalhes, pode revelar nuances antes ignoradas. Seria o discurso beneficiado por um nível de abstração?

Para mim o melhor experimento mental elaborado para discutir questões de direitos (e de pretensões divergentes em um diálogo) é um pensado exatamente pra se aproveitar do obstáculo do Véu de Maia invertendo os preconceitos e julgamentos simpáticos já descritos aqui. Trata-se da Posição Original de John Rawls.

John Rawls, (1921-2002)

Vamos imaginar mais uma vez.

Imagine que nós sejamos um grupo responsável por desenvolver as regras fundamentais de uma sociedade, como que em uma constituinte. Somos pessoas naturais, com antecedentes diversificados, que carregam consigo interesses particulares. A composição do nosso grupo influenciará significativamente o resultado final.

Se tivermos, por exemplo, mais pessoas inclinadas a valorizar o mercado financeiro, provavelmente nosso acordo privilegiará a segurança dos contratos e a previsibilidade nas relações sociais. Já se houver, entre nós, um grande grupo de pessoas com interesse em questões de gênero provavelmente nosso resultado será especialmente sensível à demandas feministas, transgênero e afins.

Quando não conseguimos colocar toda a sociedade ao mesmo tempo, no mesmo lugar, dando a mesma voz de maneira similar a todos, estaremos sempre trabalhando politicamente em um sistema de representação. Dependendo do tamanho do país essa representação pode ser proporcionalmente relevante ou não. Em países como o Uruguai, com pouco mais de 3 milhões de habitantes, é muito mais fácil tomar uma amostra relevante dos interesses populares do que no Brasil, com seus quase 200 milhões de nacionais.

É difícil pensar que a Assembleia Geral da ONU, com seus 193 países membros, represente adequadamente aproximadamente seis bilhões de pessoas

Dependendo de quem estiver nesse seleto grupo constituinte podemos ter reconhecimento de direitos minoritários, ou não. Assim a composição do grupo se apresenta como uma questão importantíssima. Incidentalmente é preciso frisar que esse é um problema fundamental em qualquer órgão legislativo, destinado a normatizar comportamentos. Só é possível esperar um resultado justo para toda a sociedade se ele representar de forma proporcionalmente fidedigna toda essa sociedade que gostaria de se ver representada.

Não é preciso muito esforço para comprovar que há aí uma grande distância entre teoria e prática. Basta ver a composição da atual legislatura federal no Brasil para se constatar que ela não representa seu povo, mas seus segmentos econômicos que podem financiar a representação de seus direitos. Vou parar por aqui, mas acho que já fui claro em apontar esse funil de acesso ao processo normatizador como um problema democrático.

Voltemos ao nosso experimento mental: se toda escolha de um conjunto de regras por nosso grupo constituinte corre o risco de ser enviesado, haveria alguma forma de minimizar ou desfazer essa possibilidade de lobby?

Para John Rawls, sim. Ao menos em tese.

A deusa grega Têmis representa simbolicamente a justiça, com seus olhos vendados, incapaz de diferenciar entre seus governados

Imagine que cada membro desse grupo precisasse ser submetido a uma espécie de Véu da Ignorância, uma espécie de barreira entre a pessoa que está naquela sala decidindo e a pessoa que vai efetivamente viver a vida sob aquelas leis. Aqueles envolvidos no diálogo precisam definir as características da sociedade antes de saber qual papel desempenharão nela, ignorando quais serão suas propriedades, capacidades intelectuais ou mesmo gênero e cor. Você deveria prever, digamos, o direito de herança, sem saber se receberá uma fortuna dos pais (caso raro) ou não receberá nada (caso mais comum). A união civil deve ser pensada sem que você saiba se será homem, mulher, se vai querer se casar ou não, tampouco qual será sua sexualidade. É bem diferente discutir políticas de cotas sem saber qual será sua característica racial. Percebe como fica muito mais difícil enviesar a estrutura de uma sociedade quando não se sabe exatamente o que são boas notícias e o que são bombas-relógio?

O bom-senso diz que normalmente as pessoas escolheriam, entre as várias opções possíveis de elementos fundamentais para a sociedade, aquelas que seriam menos danosas em potencial. Como você não sabe se será príncipe ou plebeu no arranjo final das coisas, pautado somente pela história ou pela sorte/azar, lhe parece conveniente que aquela pessoa em situação de carestia ou desvantagem mais aguda esteja na melhor condição possível. Essa aparente caridade não passa de uma forma deslocada de egoísmo com boa vontade social.

O que Rawls faz com sua Posição Original, o exercício de pensar no que as pessoas escolheriam se precisassem se submeter às suas escolhas sem ter certeza em qual parte da sociedade se encaixariam, é usar o véu de Maia num outro contexto, também relativo à alteridade. Quando Schopenhauer fala do distanciamento entre as pessoas fruto de suas diferenças, o faz para deixar bem claro que somos, no fundo, iguais. Ignoramos nossa similitude, focando naquilo que nos distingue. Rawls inverte o caminho: ignorando nossa distinção, é possível pensar que somos todos sujeitos de direitos com algo em comum, e este algo em comum possui um profundo impacto discursivo.

Exemplo: Agente e sujeito da lei são, a despeito de suas diferenças, igualmente súditos da Constituição

Dialogar sobre direitos minoritários muitas vezes pode parecer um trabalho árduo justamente por envolver uma consideração de algo que não é universalmente aceito como importante (se o fosse, não seria minoritário), suscitado pelo exemplo particular. Ao dialogarmos com base na abstração podemos buscar intuir os princípios necessários de justiça em cada caso sem precisar invadir a esfera normativa do caso concreto. Se eu discuto em abstrato, digamos, uma legislação antihomofóbica, eu não parto da experiência individual, mas sim do fato que é de interessse de todos os cidadãos desenvolver formas de evitar o discurso de ódio. Existe um imperativo de alteridade a ser desenvolvido, que apesar de poder se beneficiar da função unilateral do discurso de testemunho, não precisa se ater a este. Até porque um discurso de testemunho pessoal limitado pela praticalidade perde sua força e importância. Ele é exatamente necessário quando precisa dizer algo que a sociedade organizada não está preparada para concluir em seus modos institucionais.

Esse caminho abstrato de diálogo, em que discutimos argumentos não pelo caminho da simpatia imediata, mas por proposições que apelam ao senso de justiça dos participantes, me parece bastante razoável.

O próprio Rawls alerta que esse método não serve em todos os casos. Somente os elementos fundamentais numa sociedade democrática deveriam ser alvo desse modelo de escrutínio. Opções morais estritamente individuais não precisam ser discutidas. Mas questões de natureza minoritária precisam ter sua proteção de alguma forma canalizada na esfera pública, num debate aberto que privilegie a constituição da estrutura básica da sociedade, com suas garantias e direitos.

É muito bom poder olhar de perto, e olhar de longe também. Mas nem só de métodos discursivos se constrói pontos para o novo.

“Mantenha a cabeça fria, se quiser ideias frescas”
— Barão de Itararé

Tempo rei,
transformai as velhas formas do viver

Este artigo foi encabeçado pela foto de Nelson “Madiba” Mandela por dois motivos. Primeiro por eu ter começado a escrevê-lo à época da morte do notável político sulafricano. Segundo por ter sido, este grande homem, um exemplo no incansável dever de buscar o diálogo em prol de um mundo melhor. A despeito de ter sim um passado rebelde (acho forçoso conferir a ele a pecha de terrorista), o que distanciou Mandela de tantos outros foi a persistência de acreditar que o diálogo pode unir e reconstruir uma nação. A seu lado, na foto que inicia esta seção, está Frederik Willem de Klerk, um de seus maiores aliados e co-responsável pela derrubada do Apartheid. de Klerk, reconhecido como um político de atuação conservadora — inclusive defensor do Apartheid — foi um dos principais apoiadores da mudança de consciência e reestruturação do país. Não bastava libertar os presos políticos como Mandela e derrubar o Abartheid. Foi preciso refundar a África do Sul. Por seu trabalho foi agraciado, junto a Madiba, com o prêmio Nobel da Paz.

Mandela, de Klerk e tantos outros fizeram um serviço à humanidade não só defendendo ideias corretas, mas permitindo que, pelo diálogo, seja possível mudar a sociedade. Talvez suas versões jovens se revoltassem com as mudanças nos discursos de suas contrapartes maduras. O testemunho que legaram foi o de que o diálogo em algum momento foi instrumental para mudar a história e proporcionar uma sociedade mais justa. Foi preciso muito tempo, muita saliva e muita dedicação para que a verdade fosse realmente vista como tal, reconhecida em sua lucidez irreversível.

Igual a Mandela e de Klerk há inúmeros outros, famosos ou não. Celebridades políticas ou desconhecidos que se dedicam a solidificar, por meio do diálogo e da compreensão, as relações sociais entre pessoas, nos mais diversos níveis.

Escrevi este post gigante movido por esse credo: que a razão pode iluminar o obscuro e construir pontes entre povos, culturas e convicções diametralmente opostas. Me propus a discutir alguns desafios no diálogo atual, seja ele engajado com base em exemplos concretos ou na dimensão abstrata das teorias. São dois métodos importantes para, em conjunto, nos ajudar a discutir e debater as questões mais importante em nossas vidas.

Contudo, creio que essas ferramentas não bastam. Mais que nada, é preciso se reconhecer o dever — e a responsabilidade — que perpassa o ato de construir consensos. Acima de tudo, há o peso.

Quando se está exausto, exaurido pelo ato de tentar entender aquilo que não parece claro, ou mesmo de suportar deslealdade numa argumentação (ridicularização, falácias, apelo à autoridade), é muito fácil — e até razoável — pular fora. Desistir de tudo, seja por preferir um melhor emprego de seu tempo ou por uma questão de sobrevivência.

Escrevi este (imenso) post como minha (singela) homenagem a pessoas maiores (e melhores) que eu, que tiveram paciência o suficiente para me convencer em diversos momentos da minha vida que eu estava errado, num exercício severino de dedicação. Pessoas que passam pela história e que ensinam ser possível resistir ao desejo de retrair-se para a zona de conforto e continuar lutando.

Como disse Schopenhauer: “A vida é curta, mas a verdade vai longe e tem vida longa; falemos a verdade.”

Assim tantos viveram e se tornaram maiores que o tempo.

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