Quando os índios falarem

Pequena reflexão sobre o “descobrimento da Austrália” e os “atropelamentos” em Mato Grosso do Sul

Alexandre Spengler
Accent Brasil

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Dia 26 de janeiro marcou mais um “Australian Day”, um dia construído em cima de noções de civismo e mais recentemente na visão de uma Austrália pujante e receptiva de povos do mundo inteiro. Além de festividades ufanistas, as páginas dos grandes e pequenos jornais estampam fotos das cerimônias anuais onde o Estado australiano concede o título de cidadão a pessoas dos mais diversos países, sotaques e cores. São os traços multiculturais desse país continente, tão metodicamente selecionados pelo Departamento de Imigração.

Mas a data que corresponde ao 22 de abril brasileiro vem devagar tomando outros contornos, através de outros discursos, pelas mãos e vozes de uma multiculturalidade milenar que só teve acesso ao voto em 1962 e passou a fazer parte do censo populacional apenas em 1967.

Deve ser porque ainda me é claro na memória de infância as ilustrações sob o mote “descobrimento do Brasil” - caravelas, uma grande cruz, praia e o encontro de gente com pouca roupa vs. muita roupa — que o trabalho do aborígene Daniel Boyd me chamou tanta atenção naquele verão de 2010.

“Aqui nós os chamamos de piratas”, de Daniel Boyd, retrata o hasteamento da bandeira da Grã-Bretanha pela primeira vez na Austrália — acervo do Sydney Museum of Contemporary Art

Se por um lado o 26 de janeiro marca “oficialmente” a chegada da primeira frota inglesa a Warang, região hoje conhecida como Sydney, e o primeiro hasteamento da bandeira britânica em solo habitado pela civilização viva mais antiga do planeta; por outro, já se vê faíscas extra-oficiais que ecoam outros slogans da contemporaneidade.

Em 26 de janeiro de 2014, a jovem aborígene Nakkiah Lui teve seu artigo publicado pelo renomado The Guardian, onde ela explica porque para ela e sua família o “Dia da Austrália” é de fato o “Dia da Sobrevivência” — uma data de luto e não de celebração.

Nós não celebramos a vinda dos grandes navios ao porto de Sydney. Em vez disso, nós lamentamos a declaração de que a Austrália era “terra nullius” (terra que não pertence a ninguém), bem como aqueles que morreram em massacres, os que foram despojados de suas terras e casas, os que tiveram sua humanidade negada, aqueles que foram algemados, espancados, enviados para campos de prisioneiros, e relegados a viver em reservas. Nós lamentamos aqueles que morreram na resistência. Nakkiah Lui

Minha mente viaja ao Mato Grosso do Sul, onde a citação da jovem indígena é bem mais que uma coincidência. Onde sobreviver ou morrer na resistência ainda é parte do cotidiano da segunda maior população indígena do Brasil.

Segundo dados do Conselho Missionário Indígena (CIMI) para o ano de 2012, 37 indígenas foram mortos no MS num total 60 em todo o país. No rol das violências fatais praticadas contra as diversas etnias do MS está o “atropelamento”. Das 19 vítimas indígenas de atropelamentos no Brasil, o Mato Grosso do Sul lidera novamente a lista com 8 casos registrados.

Foto de Egon Heck, Relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil”

No sábado, dia 9 de fevereiro de 2014, mais um número para as estatísticas frias. Por volta das 21 horas, Deuci Lopes, 17 anos, morreu após ser atropelada e arrastada por um caminhão carregado de bagaço de cana na BR-463, sudoeste do MS. Como de costume nesses casos, o motorista trafegava acima da velocidade permitida e fugiu sem prestar socorro. Segundo testemunhas, o caminhão pertence a uma usina local que ocupa uma área reivindicada pelos índios. Deuci deixou um filho de dois anos e o marido que a acompanhava em seus últimos momentos às margens do tekoha Apyka’i.

Quando li em um post de facebook sobre o ocorrido (pouco citado e sem nenhum destaque nos jornais locais), pensei em Daniel Boyd e Nakkiah Lui. Imaginei o dia em que os nativos dessa terra que hoje se chama Brasil se farão ouvir em mídias “tradicionais” para chamar o 22 de Abril de “Dia da Invasão” e denunciar para olhos e ouvidos atentos “assassinatos” mascarados de acidentes de trânsito.

Foto de Renato Santana, Relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil”

Alexandre Spengler é jornalista, cientista social e imigrante brasileiro na Austrália

Fontes:

Conheça mais o trabalho de Daniel Boyd:

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