Vim dar um rolê no Paraguay,

sou underground?

Histórias do Sul do Mundo
6 min readMar 12, 2014

Conhecer este país, foi pra mim um soco no estômago. Andando pelas ruas de Assunción, não parava de pensar em como toda aquela realidade poderia ser diferente. Para quem não sabe, antes da aniquilação pelo Brasil, Argentina e Uruguay, o Paraguay foi a primeira nação latinoamericana a fomentar uma indústria própria, produzir máquinas a vapor e contratar ao seu serviço técnicos europeus (e não a serviço dos interesses europeus) para construir suas linhas ferroviárias, algumas das também primeiras, abaixo da linha do equador. Antes de ser invadido a economia ia muito bem, não existia dívida externa e se seguissem neste ritmo, talvez fossem hoje a maior potência dos lados de cá.

Quando botei os pés na rodoviária de Ciudad Del Este, já tomava altas doses de realidade do que talvez seria o país mais mitificado da América do Sul. As lentes da TV que desde os anos 90 narram os rolês dos sacoleiros na Ponte da Amizade, criaram uma imagem na minha cabeça que aos poucos foi sendo destruída para dar lugar a uma outra coisa, que eu ainda não consegui digerir o que é. Para além também, sinto que fui de alguma maneira formado a partir da ótica dos historiadores liberais e militares ultra nacionalistas, que não mediram esforços para esconder o erro e a grande mancha de sangue que foi Guerra do Paraguay, um massacre covarde à única experiência de desenvolvimento independente na América Latina. Glorificaram assassinos brutais e os homenagearam com monumentos e nomes das principais ruas. O nome do meu time, o Paysandu, também faz alusão à uma “gloriosa” batalha travada na cidade Uruguaia.

Nas escolas, até certo tempo ensinava-se que Solano Lopez, um “ditador sanguinário e louco”, provocou a guerra ofendido por Dom Pedro não ter lhe dado a mão de uma de suas filhas, ou qualquer outra história cabeluda sobre a invasão do Uruguay. Bem, não precisamos ir longe:http://migre.me/hdvSa
No centro Assunción, há um monumento chamado panteão em que uma placa exibe a seguinte frase de Solano e resume: “Surgirei do abismo da calúnia para levantar-me ante os olhos da posteridade”. Para o bem ou para o mal, a verdade é que os longos governos ditatoriais, dele e de seus antecessores, por meio de uma política protecionista e de detenção dos principais meios de produção na mão do estado, criou um país que se bastava, uma afronta às oligarquias submetidas aos mercadores britânicos, que ameaçados pelo forte crescimento do Paraguay e da concorrência de seus produtos, não tardaram em fomentar uma campanha baseada em calúnias, enganos e jogos de interesse para legitimar a urgência do banho de sangue.

Hoje, Solano Lopez é um heroi nacional por ter encarnado a vontade do Paraguay de sobreviver. Com o seu “vencer ou morrer” foi até as últimas conseqüências, terminando cercado na selva com um exército de espectros, velhos e meninos. Por falar em crianças, também é preciso citar uma das histórias mais fortes dessa guerra: no fim, quando não havia mais homens, mulheres e crianças também pegaram em armas para se defender dos saques e matanças promovidas sobretudo pelo exército brasileiro. Em Humaitá, mães se vestiram de homem e pintaram barbas de carvão em seus filhos para intimidar de longe os soldados. Quando se deram conta de que haviam lutado e assassinado crianças de cinco, dez anos, quinze no máximo… os soldados da aliança, cheios de embaraço, empilharam e incendiaram os cadáveres a fim de que isto não fosse registrado pela história. Não adiantou.

Depois da guerra, o estado Paraguaio devastado, pegou seu primeiro empréstimo, claro, da Inglaterra. Assim fizeram os também arrasados Brasil, Argentina e Uruguay, selando mais uma vez, por meio destes empréstimos suntuosos, o destino da América do Sul como semi colônia, deflagrado por sua dependência econômica e divida externa.

O artesanato criativo, a cultura rica e a inusitada presença de uma língua dominante não européia, o Guarani, me fizeram entender o porque o Paraguay tinha tudo pra ter construído sua própria narrativa. No século passado, a guerra do Chaco, diretamente fomentado pela disputa de exploração e interesses econômicos da Shell e Oil Standart, outra vez banhou de sangue por interesses mesquinhos o país, desta vez contra a Bolívia, pelo território ao norte rico em petróleo.

Tudo isso, faz parte do que é o Paraguai hoje. A mesma descrição que fez Galeano nos anos 1970 foi a que eu vi, não foi difícil bater uma foto de uma Mercedes disputando o trânsito com um carro de burro. Aliás, as ruas de Assunción mesmo com um asfalto fino e escasso, estão lotadas de Mercedes e BMW. A baixa taxa de impostos facilita o acesso a produtos importados e de certa forma maqueia a realidade do segundo país mais pobre da América Latina. O edifício do poder legislativo, no coração da cidade, tem em seus alicerces traseiros uma favela que começa apoiada em suas paredes e segue em direção ao rio. Os tetos de brasilit e entulho exibem uma inusitada coleção de parabólicas de TV por assinatura. Não há água encanada nessa comunidade, mas há TV por assinatura.

Continuando, a minha intenção não é fazer uma narrativa negativa, então vale citar que conheci pessoas incríveis, lugares realmente lindos e a melhor cerveja de todos os tempos, a Pilsen Paraguaia. O artesanato, a comida, a noite quente e as praias de rio, são mais que um convite a vir conhecer isso aqui. O turismo é pouco, há algumas rotas para conhecer ruínas de missões antigas e tudo o mais, para além, acho que se informar, livrar de preconceitos e vir conhecer o Paraguay, seja talvez, uma forma de nos desculparmos pelos erros que o nosso país cometeu neste lugar. Peguei o hábito de fazer tererê, comprei o kit completo… Aprendi a falar algumas coisas em Guarani também, pq quando querem fofocar eles falam em guarani entre si ☺

Não faz muito tempo, o Paraguay sofreu um golpe de estado do senado. Me perguntando como isso aconteceu em pleno século XXI, batia os pés pela cidade e cheguei bem em frente da casa do presidente que ocupa um quarteirão inteiro. Inusitadamente, vi que há uma outra instituição que ocupa ao lado outro quarteirão inteiro: a embaixada dos Estados Unidos é maior do que a de todos os outros países, o muro deles é igual ao muro da casa do presidente. Talvez uma pista.

Filipe Almeida / textos & fotos / www.facebook.com/estudiodumundo
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#Peru #cuzco #IntiRaymi

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