Psiquiatra da Unicamp faz análise sobre crack e políticas públicas

Publicado originalmente com o título “Programa na Cracolândia ajuda a controlar uso da droga, diz especialista” no Portal R7, em 1º de dezembro de 2014.

Luís Fernando Tófoli
Políticas de drogas no Brasil
6 min readDec 2, 2014

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Detalhe de “Peixe e Pedras”, de Ken Danby (1967)

A história da modelo Loemy Marques, 24 anos, que vivia na Cracolândia, em São Paulo, e ganhou destaque nacional na última semana, chamou atenção para o uso e a política de drogas no Brasil. Ao R7, o psiquiatra e professor da Unicamp (Universidade de Campinas) Luís Fernando Tófoli faz uma análise sobre o consumo do crack no País e os desafios que o País deverá enfrentar em relação às drogas nos próximos anos.

R7 — Brasil é um dos maiores consumidores de crack do mundo. É possível reverter esse quadro? Se sim, como?

Luís Fernando Tófoli — Depende do que você quer dizer com a palavra ‘reverter’. Em primeiro lugar, gostaria de aplaudir a opção por não ter usado o termo ‘epidemia’. Há um uso muito grande de crack em termos absolutos e parece bem claro que a droga substituiu, ao menos em parte, o uso de cola e solventes em municípios de médio e pequeno porte no Brasil. Porém, o termo ‘epidemia’ está mais ligado às doenças infecciosas e é pouco adequado para doenças não contagiosas, como os problemas relacionados ao uso de substâncias psicoativas. Isso não quer dizer que não haja um problema, mas também precisamos entender o tamanho desse problema para poder saná-lo. Um ponto muito importante é entender os seres humanos que usam crack, e quais são os problemas pelos quais eles passam. Por exemplo, o crack é uma droga muito associada à situação de rua. Abordar a questão é impossível de se fazer sem pensar em políticas públicas para esta população. De certa maneira, prevenir o uso de crack é ter um olhar especial para este grupo. Outro ponto é entender que o atendimento deve ser feito por uma rede plural. Qualquer política que centre em apenas um aspecto — só em internação ou só em centros de atenção psicossocial, os CAPS, por exemplo — está destinada ao fracasso. É preciso entender que a relação entre o indivíduo e a droga é mediada pela sociedade e muda conforme o momento no tempo. A mesma pessoa pode precisar, em momentos diferentes, de tipos de serviços completamente diferentes, e em alguns momentos pode, simplesmente, não querer parar de usar a droga. O que se faz em situações desse tipo, quando sabemos que o tratamento forçado é pouco efetivo? Vamos ter que pensar em cuidar de pessoas em cenários de uso, temos que começar a pensar, por exemplo, em salas de uso seguro — que não são destinadas a incentivar o uso e sim a reduzir os malefícios, oferecendo um conjunto de ações no local de uso que permitam ao usuário controlar, minimizar ou até parar o uso de substâncias.

R7 — Políticas como o Programa São Paulo de Braços Abertos, da Prefeitura de São Paulo, contra o crack são eficientes?

Luís Fernando Tófoli — O Braços Abertos é um programa revolucionário por trazer, no campo das políticas públicas brasileiras sobre drogas uma inovação tão grande quanto foi o programa de troca de seringas dos anos 1990. Da mesma maneira, por ser tão inovador, suscita espanto e críticas. Algumas dessas críticas são importantes, como, por exemplo, o fato de ele ter sido oferecido somente a uma parcela dos usuários da região da cidade de São Paulo conhecida como ‘Cracolândia’. Outras críticas advém puramente de uma visão preconceituosa que não aceita que alguém possa receber cuidados sem ter que, obrigatoriamente, cessar seu uso de droga. Acredito que em alguns meses poderemos responder a esta pergunta com mais clareza. No momento, acho importante reforçar que o programa tem oferecido resultados que parecem ser encorajadores, principalmente no resgate da cidadania destas pessoas, sem prejuízo para sua saúde. Aliás, o que parece estar acontecendo é que muitos participantes — com altos e baixos, é claro, já que isso faz parte do universo destas pessoas — estão conseguindo migrar para um uso mais controlado e, portanto, com menos danos.

R7 — Existe hoje política de prevenção antidroga no Brasil? Se sim, é efetiva? O que ainda falta?

Luís Fernando Tófoli — O termo correto seria ‘prevenção do uso problemático de drogas’. Usar a expressão ‘antidrogas’ é assumir a ideia de que elas poderão ser exterminadas do espaço público ou de que elas não proporcionem prazer às pessoas. Do ponto de vista da saúde pública, o que queremos é evitar que as pessoas sofram ou façam sofrer a sociedade por conta de seus usos de drogas. De qualquer maneira, apesar de acontecerem iniciativas espaçadas neste sentido — por exemplo, a Secretaria Nacional de Política Sobre Drogas fará um grande evento sobre prevenção no final deste mês de novembro — ainda haveria muito o que se caminhar no Brasil no sentido de uma política nacional de prevenção ao uso. O programa de prevenção mais disseminado no nosso país, o Proerd, mantido pelas polícias estaduais, embora seja genuinamente bem-intencionado, usa um modelo americano e é focado excessivamente no medo.

R7 — Quais são os desafios em relação às drogas que a presidente terá que enfrentar nos próximos anos?

Luís Fernando Tófoli — Falar sobre drogas, especialmente as ilícitas, exige que lidemos com valores morais muito arraigados na sociedade. A nossa sociedade tem dificuldade em olhar a problemática atual das drogas de uma forma que não seja apavoradora. É necessário um olhar sereno e crítico para a violência e a dificuldade de acesso ao tratamento que são causadas pelo atual sistema de proibição de algumas drogas. Quando estamos apavorados, tomamos decisões que não são racionais. As decisões governamentais da presidente eleita nesse campo se tornaram difíceis de se tomar justamente porque — apesar do mundo estar se movimentando lentamente na direção de novas políticas que reconhecem e tentam remediar o fracasso da guerra às drogas — tais medidas seriam impopulares. A questão é tão moralizada que a mera proposta de se discutir o assunto de coração aberto faz com que uma parcela dos políticos e especialistas entenda que se está querendo abrir as portas do inferno. Drogas precisam ser regulamentadas não por que são inofensivas, mas porque seus usos podem ser perigosos. A proibição absoluta é tão ruim como a liberdade total: ambas são a ausência de regulamentação. Precisamos de mais regras, e uma forma de se começar a fazer isso é por vias que soam inusitadas, como a descriminalização do uso ou a legalização de algumas delas, como a maconha. Se o País e seus governantes quiserem resolver o problema de forma honesta, vão ter que lidar com essa realidade.

R7 — O senhor também diz que “ações pragmáticas de redução de danos e de educação franca sobre os efeitos e riscos das drogas são necessárias”. Quais seriam essas ações?

Luís Fernando Tófoli — Vou aproveitar então a pergunta para esclarecer duas coisas. A primeira é que as estratégias de redução de danos, diferente do que dizem seus detratores, não estão preocupadas em somente facilitar que pessoas usem drogas. Estas estratégias são mais voltadas para pessoas que não conseguem ou não querem atingir a abstinência. Precisamos ter consciência de que a busca pela abstinência pode ser muito efetiva para algumas pessoas. No entanto, ela não funciona para todo mundo, então seria uma crueldade montar um sistema que fosse baseado somente em uma técnica que não funcionará para todos. E claro, abster-se do uso de drogas, se for a opção da pessoa, também é reduzir danos. A outra coisa que eu gostaria de esclarecer é que a educação para a prevenção não deve ser hipócrita. Não adianta apavorar os jovens sobre as drogas para que depois eles descubram, ao usá-las, que elas podem proporcionar prazer. Com uma adaptação de conteúdo de cada faixa etária, jovens devem ser informados sobre os fatos científicos a respeito das drogas. Eles incluem, por exemplo, a realidade de que o uso pesado da maconha na adolescência parece estar associado com o risco de esquizofrenia, e os jovens precisam entender as razões pelas quais se supõe que isso aconteça. Informar melhor sobre drogas é um desafio, pois é impressionante constatar o quanto o conhecimento de profissionais da educação e até da saúde está contaminado por informações inverídicas e preconceituosas. As pessoas têm o direito de se informar para se proteger, e a imprensa, vale dizer, tem um papel importantíssimo nisso.

R7 — Quais são os males das drogas para quem usa e mais amplamente para a sociedade?

Luís Fernando Tófoli — Estou convencido que não há mal maior do que o preconceito. Ele veta o olhar humanista, prejudica o conhecimento científico e justifica um morticínio muito maior — seja ele praticado pelo tráfico ou pelas forças da lei — do que aquele que é causado pelas drogas em si. Qual o caminho a tomar? Precisaremos discutir como uma sociedade madura e encontrar nossa direção. Posso dizer, no entanto, que não tenho qualquer dúvida de que a atual visão das drogas precisa ser contaminada pela compaixão, e se transformar.

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Luís Fernando Tófoli
Políticas de drogas no Brasil

Psiquiatra. Professor na UNICAMP. Pesquisador sobre políticas de drogas e psicodélicos. Ele. | Drug policy and psychedelics researcher. Posts in Portuguese. He.