Porque as crianças esquecidas em carros vão a óbito? Como evitar?

Todos os anos crianças morrem esquecidas dentro de carros. Um minuto de distração pode ser fatal. Para evitar este acontecimento trágico, um estudante brasileiro desenvolveu um par de pulseiras que alerta os pais da criança nesse tipo de situação.

Polyteck
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6 min readDec 19, 2014

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Pode ser difícil para um pai ou mãe admitir que possa esquecer seu bebê dentro de um carro. Eles cuidam tão bem dos seus filhos que sequer imaginam que uma situação como esta pode facilmente ocorrer no dia-a-dia: basta que a criança adormeça no banco traseiro e reine o silêncio dentro do veículo — estando momentaneamente fora de vista e fora dos pensamentos do condutor — para que um simples esquecimento se transforme em um dos piores pesadelos na vida de uma mãe ou pai.

Segundo um artigo publicado na Annals of Emergency Medicine por pesquisadores da Universidade do Estado da Louisiana, a realidade é que entre 15 e 25 crianças morrem todos os anos de hipertermia, essencialmente por que foram esquecidas “cozinhando” dentro de carros. Parece contra intuitivo, mas a temperatura externa ao carro tem pouca relação com a rapidez da elevação da temperatura interna: em um ambiente a 14 ºC, o interior do carro pode alcançar, na primeira hora, entre 22 ºC e 36 ºC. Cerca de 80% das mudanças na temperatura no interior do veículo ocorrem nos primeiros 30 minutos.

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Esquecer uma criança no carro pode ser fatal. Até mesmo em dias com temperaturas amenas.[/caption]

Ou seja, até em um dia fresco o interior de um carro pode tornar-se mortal. A agressão aos bebês é inicialmente branda: o calor causa apenas desconforto físico, mas a situação pode se agravar causando exaustão e desidratação. Quando a temperatura corporal do bebê atinge 40 ºC, ocorre a disfunção do sistema nervoso central, convulsões, coma e a morte por AVC.

Você pode estar se perguntando: mas que tipo de pessoa esquece um filho dentro de um carro? A realidade é que os ricos esquecem. E também os pobres e os da classe média. Acontece com pais de todas as idades e raças. Mães são tão capazes de esquecer quanto os pais. Nos últimos dez anos isso já aconteceu com dentistas, policiais, contadores e soldados, professores universitários e pedreiros. Até mesmo um pediatra já esqueceu seu filho dentro do carro, levando-o à morte. O fato é que um pequeno momento de distração pode ser fatal.

Como evitar? A história do CareOn

Após acompanhar vários casos de mortes de crianças por hipertermia que ocorreram na Bahia em 2007, Matheus Tomio e o seu pai decidiram fazer algo para evitar que isso continuasse a acontecer. A primeira ideia foi desenvolver um dispositivo de base imantada, no formato de uma barbatana de tubarão, que seria colocado sobre o teto do carro sinalizando a presença uma criança em seu interior. Foi assim que eles começaram o projeto Bebê a Bordo. Tomio, que na época era estudante de ensino médio e inventor de primeira viagem, considerou a invenção equivalente a chegar à Lua.

Após desenvolver alguns protótipos, Tomio apresentou a primeira versão do CareOn (o projeto inicial era chamado de Bebê a Bordo) na XXVI Mostra de Ciências das Escolas Positivo, conheceu uma advogada que se interessou em registrar a ideia e ainda foi premiado com um pequeno troféu. Já naquela época, ele percebeu que inventar qualquer aparelho requeria muito mais trabalho braçal do que neurônios. Teve muito mais trabalho com os papéis de registro de patente do que com a própria invenção.

Quando ele ingressou no curso de Engenharia de Controle e Automação (Mecatrônica) na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), percebeu que o dispositivo inventado era equivocado. Se uma mãe esquece um filho dentro do carro, com certeza também esquecerá um dispositivo colorido fixado na parte superior do carro. Após cursar disciplinas de eletrônica e programação, contou com a ajuda do coordenador do curso, professor Ricardo Alexandre Diogo, que esteve disposto a ajudar com as burocracias e orientar o andamento do projeto.

Como funciona

Hoje o CareOn evoluiu e, o que antes era uma peça colocada sobre o carro, virou um par de pulseiras que vibram quando o filho se afasta mais de 10 m dos seus pais. Segundo Tomio, o método de comunicação entre os dispositivos foi uma grande dificuldade. Chegaram a considerar a utilização de Bluetooth, Wireless e GPS. Todas estas tecnologias têm seus pontos fortes e fracos: a licença de uso do Bluetooth, por exemplo, custa aproximadamente $ 50 mil. Acabou optando-se por rádio frequência: um transmissor numa pulseira emite pulsos “1”, sempre que a criança está dentro do raio de 10 metros, para um receptor na outra pulseira. Se as pulseiras se afastarem demais, o sinal é trocado para “0”. Isso ativa um pequeno motor elétrico que faz a pulseira dos pais vibrar, ao mesmo tempo em que um buzzer na pulseira da criança emite um sinal sonoro, permitindo sua localização.

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A bateria do dispositivo também foi outro ponto complicado. Alguns protótipos funcionaram, enquanto outros tiveram problemas com curto circuito. Hoje a bateria é recarregável por indução eletromagnética, uma tecnologia já existente em vários smartphones: basta aproximar o dispositivo do carregador.

Múltiplos usos

A vantagem desse novo modelo do Bebê a Bordo é que, além de evitar o esquecimento de crianças no interior dos veículos, também pode ser utilizado em qualquer lugar e a qualquer momento: não importa se na praia, shopping ou supermercado. Tomio já prevê atualizações: pulseiras à prova d’água e com sistema GPS, tornando possível calibrar a distância máxima entre as pulseiras. Outra possibilidade é a utilização de sensores que alertam se a pulseira da criança for retirada sem autorização, como em caso de sequestro.

O produto deve chegar ao mercado em 2015 e custará entre R$ 80 e R$120 um valor acessível para a maioria dos pais.

Sobre o registro de patentes

Uma patente é um documento que assegura os direitos de invenção a uma determinada pessoa ou instituição. Ela tem validade de 20 anos contados a partir do pedido de depósito. Durante esse período, a patente pode ser explorada comercialmente somente pelo detentor dos direitos da invenção. Após o vencimento, a patente é considerada de domínio público e pode ser utilizada comercialmente por qualquer pessoa. Com a ajuda da Agência PUC, o dispositivo criado por Tomio foi patenteado no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) no Brasil. A maior parte das universidades já possui escritórios de propriedade intelectual, que podem auxiliar na elaboração e depósito de um documento de patente.

Devido ao fato das leis de propriedade intelectual terem validade nacional, não é possível que uma única patente seja válida em todos países do mundo: é preciso depositar um pedido de patente em cada país onde se almeja a proteção da invenção. Para facilitar esse processo existe o Tratado de Cooperação em matéria de Patentes (PCT, na sigla em inglês), uma espécie de pré-registro internacional que pode ser requisitado até um ano após o depósito no país de origem. Ele funciona como uma extensão de prazo para que sejam escolhidos os países onde será feito o depósito, e é muito útil pois é preciso traduzir o documento de patente para a língua de cada país onde será realizado o pedido.

No caso do Bebê a Bordo, o PCT já foi requisitado e, juntamente com a agência PUC, Tomio está escolhendo os países onde a invenção será protegida. Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, França e Austrália estão na lista devido ao grande número de casos de esquecimento de crianças em veículos. O pedido também deverá ser feito na China pois, como a produção do Bebê a Bordo será terceirizada, é importante proteger a invenção neste país também. É interessante notar que, para patentear uma invenção, é necessário que o novo dispositivo ou tecnologia atenda a uma série de requisitos.

O primeiro deles é também o mais difícil de ser cumprido pelos inventores: a novidade. Para ter direito a uma patente, o objeto da invenção deve ser diferente de qualquer outra
patente ou produto já existente, além de não poder ter sido divulgado em qualquer tipo de apresentação oral ou escrita.O segundo critério é a atividade inventiva, que é geralmente o mais controverso de todos: o objeto da invenção não pode ser óbvio para qualquer pessoa com experiência naquele assunto. O terceiro requisito é da utilidade: a patente deve ser aplicável em alguma área ou indústria. Portanto, uma descoberta científica não pode ser patenteada, enquanto as aplicações dessas descobertas podem. ■

Artigo escrito por André Sionek com base no depoimento de Matheus Tomio sobre o projeto Bebê a Bordo.

Referências:

Gregory C. Patek, Annals of Emergency Medicine, 61, 6, pp 703–704, (2013)

World Intelectual Property Organization — WIPO — http://www.wipo.int/

Artigo originalmente publicado em fevereiro de 2014 na Revista Polyteck

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