Copa do Mundo, Jabulani e Gana: a bola que nunca caiu

Uma crônica sobre um dos jogos mais marcantes da história das Copas.

Bruno Negrão
Ponta de Lança
5 min readJul 2, 2020

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Tudo o que sobe, desce. Minha mãe me ensinou esta lição quando eu ainda era pequeno, nos momentos em que alguma bola de futebol ficava presa entre galhos de árvore ou num telhado vizinho. Não duvido que a mãe tenha ensinado esta lição ao tal de Isaac Newton também — essa história das maçãs nunca me convenceu muito, não. Digo, talvez não tenha sido exatamente a minha mãe, mas com certeza alguma mãe. Palavra de mãe, como todos sabem, possui mais respaldo acadêmico que qualquer lei física.

Pouco antes da Copa do Mundo de 2010, no entanto, tentaram desafiar Newton, a gravidade e todas as mães do mundo: criaram uma bola de futebol que subia, subia, subia, e ia fazendo seu trajeto, ia desbravando seu próprio caminho. Nada garantia que ela cairia. A Jabulani, ela mesma, não seguia mapa nem GPS. Era a própria liberdade travestida em couro, gomos e câmara de ar. Pronta para consagrar atacantes, atormentar goleiros e contrariar o vento. A Jabulani subia, mas só descia quando — e se — quisesse.

Jabulani, em zulu, significa “celebrar”. (Foto: Divulgação)

Embora polêmica, a Jabulani era a escolha perfeita para ser a protagonista da primeira Copa disputada em solo africano. Aquilo que muitos apontavam como defeito, poderia ser também uma qualidade inestimável - a sua rebeldia. O recado estava dado: ela não iria seguir as ordem de colonizador nenhum, não dessa vez!

Logo na primeira partida do mundial, a Jabulani voou livremente para o fundo das redes após um disparo fulminante de Tshabalala. Subiu, voou, flutuou e caiu somente no abraço da torcida. Ao longo do torneio, dona Jabulani pregou peças, artimanhas, enganou e desenganou atacantes, goleiros e torcedores. A cada chute, ela se tornava capoeira. Suas curvas sinuosas eram pura mandinga, ao modo em que literalmente gingava pelo gramado e aplicava rasteiras e tesouras nos mais afoitos. A vuvuzela era o berimbau que dava movimento à bola da Copa. Uma trilha sonora perfeita, pois ambos eram incompreendidos pelas mentes fechadas dos analistas da imprensa. Ambos eram, de certa forma, a representação da África dentro — e fora — de campo.

Acontece que já há algum tempo, a FIFA, dita senhora do futebol no planeta, tenta padronizar ao máximo a maior competição esportiva do mundo. Provavelmente, daqui a poucos anos nem saberemos mais onde as Copas serão realizadas, ou se soubermos, pouca diferença fará: os estádios estão todos iguais, os entornos estão todos lotados de estabelecimentos padrão-FIFA, os torcedores são sempre os mesmos e provenientes das mesmas regiões do primeiro mundo e que esgotam os ingressos com seu poderio financeiro, e os jogadores só podem falar as mesmas poucas palavras presentes no dicionário-FIFA durante as entrevistas.

De toda forma, em meio a tantos padrões, a Jabulani reinava em absoluto. Segundo os seus idealizadores, as onze listras presentes no design da bola representavam cada etnia e idioma da África do Sul. Mas não é exagero nenhum dizer que, quando Asamoah Gyan colocou a bola sobre a marca da cal durante as quartas de final do torneio, Jabulani já não pertencia mais apenas à África do Sul, assim como o goleiro Muslera não enfrentava somente o atacante ganês. Ela representava todo um continente — e sua diáspora também, inclusive. Nem nos melhores sonhos dos pan-africanistas mais fervorosos, poderia se imaginar uma África tão unida quanto naquele momento: se a Jabulani beijasse as redes, seria a primeira vez que uma seleção africana disputaria as semi-finais da Copa do Mundo. Dali, bastaria apenas uma vitória em qualquer um dos próximos dois jogos para que os ‘Black Stars’ figurassem no pódio.

(Foto: Divulgação)

A seleção ganesa, inclusive, recebe o apelido de Black Stars devido a estrela preta que possui no centro da sua bandeira nacional, uma homenagem à Black Star Line, companhia de navios e embarcações do ativista jamaicano Marcus Garvey. Se tudo o que sobe, desce; é válido dizer que tudo o que vai, também volta. Sendo assim, o sonho de Garvey era que os pretos residentes no Estados Unidos pudessem retornar ao continente africano.

Pelo menos em pensamento, todos retornaram quando Asamoah, portanto, tratou com carinho a bola que recém havia sofrido um golpe fatal do uruguaio Luis Suárez, num gesto que mesclava desespero, coragem e esperança — a receita certa para aqueles que desejam entrar para a história.

Jabulani sabia da importância daquilo que estava prestes a acontecer. Asamoah Gyan, também. Quando o seu chute acertou o travessão, o atacante olhou para os céus. Estava esperando a bola cair. Mas Jabulani subiu, subiu, e nunca mais foi vista. Subiu, apenas.

Dizem que após o lance perdido, houve uma disputa de pênaltis. O regulamento daria uma nova chance aos Black Stars. No entanto, pouco se sabe sobre as cobranças seguintes, estavam todos olhando para o alto esperando a Jabulani cair. O Uruguai, que não tinha nada a ver com isso, foi superior com mérito — Loco Abreu, inclusive, finalizou o embate com uma cavadinha. Ele sabia que poderia confiar: na ausência da Jabulani, que naquele momento estava presente apenas em corpo, a bola iria subir e cair, conforme ele ordenasse.

(Foto: Divulgação)

Dez anos após a partida, ainda é possível encontrar torcedores esperançosos caminhando sem rumo e olhando para o alto nos arredores do estádio Soccer City, em Joanesburgo. É possível encontrá-los nos campos de terra em Accra, nas escolas de futebol em Lagos, nas calorosas arquibancadas de Maputo. Uma legião de fãs que acredita que, assim que a Jabulani cair, o futebol africano poderá enfim ter sua redenção, seu momento de glória perante o Mundo. Vingança, para alguns; revanche, para outros. Apenas quando a Jabulani regressar, a realidade dos diversos povos filhos do mesmo solo poderá ser esquecida por instantes para que se possa saborear o doce gosto de utopia que só o futebol nos proporciona, a felicidade momentânea que entra para a eternidade, apesar do paradoxo.

Outros, céticos, dizem que a bola nunca mais voltará para o solo do continente, que a vitória é um privilégio reservado apenas aos grandes polos do esporte, dos ditos “desenvolvidos”, e que só poderá ser atingida a partir de um processo de naturalização para outras nações.

Jabulani, em verdade, se tornou mais uma filha da diáspora, mas África é Mãe, e as mães sabem: tudo o que sobe, desce. O bom filho à casa torna.

(Foto: Divulgação)

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