Desportiva Lusaca: um clube orgulhosamente afro-baiano

Rubens Guilherme Santos
Ponta de Lança
Published in
7 min readJun 13, 2020

Resgatar as raízes africanas através do esporte é a inspiração que guia o trabalho desenvolvido pelo Lusaca. Fundado em 1º de janeiro de 2007, a Associação Desportiva Lusaca é um clube afro-baiano, originário da cidade de Dias d’Avila, região metropolitana de Salvador.

Fundação do Lusaca

Dentro de uma população majoritariamente negra, Ruan Conceição Santos desejava valorizar suas origens africanas através do esporte. Ele já vivenciava o mundo do futebol feminino e acumulava experiências dentro da modalidade. Em 2007, Ruan decidiu juntar sua paixão e a de sua família pelo futebol para fundar um clube focado em representar e enaltecer o povo afro-baiano. Assim, nascia a Associação Desportiva Lusaca.

O fundador Ruan Conceição (no centro) ao lado de atletas do time. Foto: Divulgação AD Lusaca.

Segundo levantamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Bahia é um dos Estados mais negros do país. Além disso, Salvador, a capital baiana, é a cidade mais negra fora de África, tendo 85% da população parda e preta. De fato, a Bahia carrega na pele e no espírito a conexão com o continente africano. O Brasil foi o país que mais recebeu escravos nas Américas e Salvador pode ser considerada o berço da história negra brasileira. Foi em terras soteropolitanas onde aportaram os primeiros navios com povos africanos escravizados. Por lá, também surgiram importantes movimentos pela resistência do povo africano, durante e após o período de escravidão. Não à toa, o cotidiano baiano possui várias influências dos povos de África: na culinária, na religião e na música, por exemplo.

Você sabe a origem do nome do clube?

Leon Ferreira, diretor, analista e gestor de marketing do Lusaca, comenta sobre a inspiração para a denominação do time.

“O nome vem do povo Lusaka, que se assemelha muito ao povo baiano. Assim como eles, nós tivemos de lutar por nossa independência”. Sobre a grafia com diferente, ele acrescenta: “tiramos a letra “k” (do nome) pois não deixaram nos inscrever assim”.

Lusaka é a capital de Zâmbia, país localizado ao sul do continente africano. O nome da cidade é proveniente de uma aldeia chamada Lusaka, em homenagem ao seu antigo chefe, anteriormente nomeado por Lusakasa. O povo Lusaka habitava a região da Colina Manda, próxima ao atual prédio da Assembleia Nacional da Zâmbia.

Vínculos entre Lusaka, África e Bahia

A cidade que deu origem ao nome da equipe baiana foi o local de formalizações de capítulos importantes para Angola e Moçambique, dois dos principais locais de origem dos negros escravizados desembarcados no Brasil.

O Acordo de Lusaka, assinado em 1974 pelo Estado Português e a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), foi o documento no qual Portugal reconheceu formalmente o direito à independência moçambicana. Um ano depois, Moçambique concretizou sua emancipação.

Também foi na capital de Zâmbia assinado um tratado de paz na tentativa de cessar a guerra civil que ocorria em Angola. O Protocolo de Lusaka, de 1994, tinha como finalidade a desmobilização de tropas do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que governava o país, e das tropas da União Nacional Para a Independência Total de Angola (UNITA), que reivindicava um Estado angolano de plena democracia. O Protocolo fez parte dos três principais acordos de paz celebrados entre as duas partes, na tentativa de solucionar o conflito político militar. O desfecho dos conflitos ocorreu em 2002, com um Acordo de Paz assinado por ambas as partes, MPLA e UNITA.

Identidade do clube

O formato atual do escudo do clube foi inspirado no brasão da seleção de Camarões. Em busca de abranger toda a África, as três cores, verde, amarelo e vermelho, foram inseridas tendo como referência a maioria das bandeiras dos países africanos. A bandeira da Etiópia, o Estado independente mais antigo da África, inspirou os pendões de outros países do continente, composta exatamente pelo verde, amarelo e vermelho. A bandeira etíope anterior não possuía o atual brasão azul, o qual foi introduzido no ano de 1996.

Escudo do Lusaca. Foto: Divulgação AD Lusaca.

“Fomos pegando um pouquinho de cada país e introduzindo em nossa história. Os mascotes, o Pantera Negra e as Guerreiras Africanas de Wakanda (da Marvel) e a estrela preta/negra vem da bandeira de Gana”, conta Leon.

A estrela amarela representa a maior conquista do time. Já preta foi acrescida ao escudo em 2020. Esta última foi colocada para fortalecer a essência do clube e a razão de seu trabalho.

Gana foi um dos países que empregou a combinação tricolor etíope em sua bandeira. O país também adicionou a estrela preta como homenagem ao primeiro movimento de unidade negra, estabelecido em 1914, por Marcus Garvey, ativista jamaicano. Garvey também inspirou a presença das estrelas ao redor de África. O astro era um dos componentes da bandeira da Black Star Line, companhia de navegação fundada pelo jamaicano para ligar a América ao continente africano.

O caboclo, no centro do escudo, é o símbolo da Independência da Bahia, datada de 2 de julho de 1823. Juntamente com a cabocla, ícones que representam a luta pela emancipação do Estado contra as tropas portuguesas.

[CLIQUE AQUI E OUÇA OS PODCASTS DO PONTA DE LANÇA]

O protagonismo feminino

Os capítulos gloriosos na história da Desportiva Lusaca são escritos principalmente por mulheres. O protagonismo feminino de Mama África, continente que deu origem à humanidade, também se faz presente na sublime biografia do clube. O sucesso do futebol feminino possibilitou o reconhecimento do time no cenário desportivo brasileiro.

O Lusaca é referência na formação de jogadoras no eixo Norte-Nordeste e seu maior legado é a revelação de atletas para os principais centros do futebol feminino brasileiro. A lista de revelações é extensa. Aila Santana, do Bahia, Andiara Correira, do Minas Brasília, Maria Vitória, do Ceará e Stephanie Brito, da Ferroviária, comprovam o êxito no trabalho de desenvolvimento da modalidade. Elas integraram o Lusaca ao longo da trajetória do futebol feminino e hoje disputam as principais competições do futebol nacional.

De 2018 a 2019, a agremiação selou uma parceria com o Esporte Clube Bahia de cerca de um ano. Entre os torneios disputados durante a fusão, destaca-se a Série A2 do Campeonato Brasileiro Feminino, onde o Bahia/Lusaca foi eliminado nas quartas de final. Entretanto, o intercâmbio de atletas entre os clubes permanece até hoje.

A conquista do Baianão

Além de revelar inúmeras jogadoras, a competitividade do time é grande. Após flertar por anos com o título estadual, as “Guerreiras Africanas” conquistaram o Campeonato Baiano Feminino de 2017, em uma campanha invicta, com oito vitórias e um empate. Em outras três oportunidades, a equipe foi vice-campeã do Baianão, nas temporadas de 2011, 2015/2016 e 2018.

O título do Baiano 2017 veio após campanha invicta do Lusaca. Foto: Divulgação Federação Baiana de Futebol.

Leon conta alguns detalhes do histórico título de 2017. “Foi uma luta de independência, figuradamente falando (risos). O Lusaca não tem patrocínio, nem ainda profissionalizou as meninas, devido à falta de apoio. Eliminamos o Vitória na semifinal, dentro do Barradão (estádio do Vitória). Na final, vencemos o Jequié (4 a 1 no placar agregado). A sensação foi de ganhar uma Copa do Mundo. A partir daí, nosso nome começou a crescer mais no cenário”, declara.

O título baiano de 2017 deu o direito ao time de participar da seletiva para o Brasileirão Feminino Série A2 de 2018. A classificação para a fase de grupos aconteceu, após vitória por 1 a 0 contra a União Desportiva Alagoana. Mas a campanha das Guerreiras Africanas parou por aí. Outra competição nacional importante disputada pela equipe foi a Copa do Brasil, em 2008, quando parou ainda na primeira fase.

Atividades da entidade

Atualmente, o Lusaca possui equipes principais e nas categorias de base no futebol, no futsal e no Futebol 7, todas as modalidades com times masculinos e femininos. A ideia, segundo Leon Ferreira, é ampliar a presença do clube em outras categorias. Em 2021, o objetivo é competir no voleibol e nos e-Sports (competições profissionais de jogos eletrônicos). Além de desenvolver atividades em Dias d’Ávilla, o Lusaca também conta com uma estrutura em Ribeira do Pombal, no interior da Bahia.

O diretor também destaca o desenvolvimento do time ao longo do tempo. “Começamos como um clube de futebol e hoje temos muitas modalidades. Sem contar os projetos dentro do clube que vão além do esporte. Hoje temos o projeto ‘Além do Esporte’, que assessoria a carreira de atletas para o estudo profissional, a participação social e o empoderamento”.

O diretor Leon Ferreira (à esquerda) foi atraído para trabalhar junto aos Panteras Negras. Foto: Arquivo Pessoal.

Orgulho Lusaca

Questionado sobre a importância de um clube afro-baiano em um país que conta com grande contribuição de atletas negros e negras no futebol e no esporte, Leon responde: “muito, mas muito importante! Para o nosso povo afro-baiano, africano e para os afrodescendentes de todo o mundo”, declara.

Além de encarar as dificuldades financeiras impostas pela lógica do mercado desportivo, outro trabalho intrínseco à existência do Lusaca é a luta antirracista, dentro e fora de campo. Desde sua criação, o clube é formado majoritariamente por negros e negras, a partir da composição da diretoria até os plantéis de atletas. Por isso, frequentemente o time faz questão de se posicionar sobre temáticas raciais, rememorando sua essência e a genuinidade de seus valores.

Leon Ferreira trabalhava em outro time no momento em que se interessou pelos Panteras Negras.

Ele comenta sobre a razão do interesse em contribuir no clube. “Eu era do Vitória quando conheci o Lusaca. Me identifiquei com essa equipe pois sou afrodescendente, por parte de mãe e de minha avó”.

A Associação Desportiva Lusaca não é apenas uma agremiação poliesportiva. É a ancestralidade africana e a representatividade da população negra da Bahia, dentro de campo ou da quadra, fora de ambos também. O Lusaca tem orgulho de dizer que é um clube afro-baiano.

--

--