Diga a eles seu nome

Matheus Soares
Ponta de Lança
Published in
4 min readJul 30, 2020
Foto: Getty Images

Sair de casa ainda na adolescência para tentar realizar o sonho de ser jogador de futebol é sempre uma tarefa complicada e que envolve muita coisa. Agora, sair do continente africano para enfrentar as barreiras impostas no futebol europeu é ainda mais desafiador. Ser goleiro não é fácil, é sempre uma posição que requer muito preparo. Negro, então, você precisa provar duas vezes que é bom. Os olhos de todo o mundo estarão sempre atentos e é necessário beirar a perfeição para agradar minimamente. E foi assim que André Onana, nascido em Nkol Ngok, no Camarões, enfrentou tudo e todos para se tornar um dos melhores goleiros da atualidade.

No ano passado, em uma entrevista à BBC, Onana falou sobre a dificuldade dos goleiros negros em se firmarem nos clubes europeus por causa do racismo enraizado nas análises:

“Não vejo as diferenças entre brancos e negros, mas nós temos de trabalhar mais. Cometo erros como todas as pessoas, mas os goleiros negros têm de estar mais bem preparados. Não é nada fácil”.

O início da trajetória

Tudo começou na academia de futebol do ídolo camaronês, Samuel Eto’o, junto com o primo e também goleiro Fabrice Ondoa (atualmente no Oostende, da Bélgica). O sonho dos jovens era conquistar o mundo e dar uma vida melhor aos familiares. A grande oportunidade surgiu entre 2009 e 2010, quando ambos se mudaram para Barcelona e deram sequência na formação. Onana já se destacava nas categorias de base e mostrava que não seria só mais um goleiro a passar pela Europa sem grandes destaques. Entre 2010 e 2015, o goleiro conviveu em La Masia mas não teve chances na equipe principal. Em 2016, uma mudança que fez a carreira crescer para, finalmente, mostrar tudo que aprendeu nos anos trabalhando entre grandes talentos que ali surgia. O Ajax, da Holanda, apostou em Onana e o ajudou a se desenvolver colocando pra jogo e dando total confiança para evoluir.

Na primeira temporada, com 18 anos, 13 jogos pelo ‘Jong Ajax’, time de transição que disputa a segunda divisão holandesa, e algumas aparições entre os reservas na equipe principal. Suas atuações chamavam a atenção pelo bom desempenho com os pés, fruto do trabalho no Barcelona e um dos fatores primordiais para o Ajax se interessar pelo seu futebol. As principais características iam muito de encontro com o estilo de jogo do clube, optando sempre pela posse de bola e a criação da jogada a partir da defesa. Abaixo, um exemplo de como funciona a saída de bola do Ajax, com Onana sempre muito participativo.

Onana em ação pela Europa League, 27/02/2020. Reprodução/Football Whispers

Sua estreia na equipe principal aconteceu no dia 20 de agosto de 2016, na derrota para o Willem II por 2 a 1. Mesmo com o resultado negativo, Onana passou muita segurança e deixou todos da comissão técnica bem decididos de que ele seria o substituto perfeito para Jasper Cillessen, vendido ao Barcelona. A partir da sua entrada no time titular, o Ajax iniciou uma série importante sem derrotas, que durou cerca de quatro meses. Onana se tornou cada vez mais essencial para o esquema de Peter Bosz e foi caindo nas graças da torcida.

Sempre muito ambicioso e dedicado, o jovem queria mais. Porém, estar ali assumindo o posto de goleiro titular de um dos maiores clubes do mundo era motivo de orgulho para todos que tentaram conquistar ao menos metade do que o jogador já tinha. Um mês depois, Onana fez sua estreia na seleção principal de Camarões, na vitória pra cima do Gabão por 2 a 1. Seu crescimento era cada vez mais visível debaixo das traves, mas também foi se desenvolvendo um papel de liderança que impressionou. Após o vice-campeonato da Europa League, na temporada 16/17, o Ajax mudou de treinador. Chegou Erik ten Hag e a história não foi diferente: Onana intocável e ainda mais seguro. Na temporada 19/20, Onana fez 39 partidas e sofreu 37 gols.

Hoje, Onana é um exemplo de que esta visão racista do jogador africano que não tem capacidade para assumir posições de extrema confiança é completamente absurda. Temos vários exemplos, mas ainda há uma certa intolerância quando falamos de goleiros. Cobiçado por grandes clubes nas principais ligas do mundo, torcedores não se sentem totalmente convencidos de que o nome do goleiro camaronês seja o melhor. Mesmo depois de ótimas temporadas no Ajax, ajudando o time a garantir mais três troféus para sua enorme galeria, ainda existe rejeição. O fato é que chegou a hora de dar mais um passo na carreira, e provavelmente o destino será a Inglaterra. Por lá, encontrará alguns torcedores que não têm tanta paciência, e uma mídia que ficará sempre na espera da primeira falha para criticar. Onana é o principal alvo do Chelsea para o gol, como substituto do espanhol Kepa Arrizabalaga, que fez uma temporada bem abaixo e não recebeu nem metade das críticas que um goleiro negro receberia.

O futuro será ainda mais brilhante. A trajetória, seja na Holanda ou em outro país, seguirá desafiadora e vencida com muita maestria, como tem sido até aqui. Desistir nunca esteve nos planos do goleiro. Afinal, o que ele mais quer é que as pessoas saibam seu nome.

Ouça o episódio que teve a participação do jornalista Caio Alves, onde falamos sobre os estereótipos nas análises dos jogadores africanos:

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