Kwame Nkrumah, futebol e pan-africanismo

Como o futebol explica o mandato do histórico presidente ganês

Bruno Negrão
Ponta de Lança
5 min readSep 2, 2020

--

Boicote à FIFA, criação da ‘Champions League’ Africana e empate contra o Real Madrid: o futebol foi um fator determinante tanto para a ascensão quanto para a queda de Kwame Nkrumah, primeiro presidente ganês, durante a reconstrução do país.

Em 1957, Gana se tornou primeiro país da África Subsaariana a conquistar a independência após a colonização. O principal líder político da nação na época, o pan-africanista Kwame Nkrumah, possuía o sonho de ver uma África unida e liberta — e acreditava que o futebol poderia ser um dos caminhos para o seu objetivo. Assim que a independência ganesa foi consolidada, Nkrumah foi declarado Osagyefo (líder vitorioso) e primeiro-ministro. Três anos mais tarde, em 1960, ele assumiu a presidência do país — cargo que ocupou durante 6 anos.

“A nossa independência é sem sentido a menos que seja ligada com a libertação total de África.” Kwame Nkrumah (Foto: Divulgação)

Nkrumah sempre apostou no futebol como uma ferramenta para a afirmação da identidade nacional e desenvolvimento do país. Foi ele quem fundou a liga nacional, criou a Associação Ganesa de Futebol e filiou a seleção ganesa à FIFA. Já no início dos anos 60, Nkrumah e Ohene Dijan, então Diretor de Esportes do país, foram responsáveis pela criação de um “superclube”: o Real Republicans, cujo nome havia sido inspirado no Real Madrid, era uma aposta para reforçar o sentimento nacionalista dentro de campo.

Com apoio estatal, o Real Republicans estabeleceu uma hegemonia no país, contratando para si os melhores jogadores locais. Os atletas do clube eram tratados como realezas e possuíam acesso ilimitado ao presidente. A superioridade dos Republicans frente aos demais oponentes nacionais era, sem dúvidas, desproporcional — o que deixou alguns torcedores insatisfeitos, principalmente os adeptos do Asante Kotoko e Heart Of Oaks, os maiores times do país.

O Clube Próprio de Osagyefo (OOC), como era conhecido. (Foto: Divulgação)

Os Republicans eram a base da seleção de Gana que, no momento, colhia bons frutos dentro de campo. A seleção nacional também foi utilizada para expressar a ideologia pan-africana de Nkrumah, sendo apelidada de Black Stars — uma homenagem ao jamaicano Marcus Garvey, um dos pioneiros do pensamento. Em 1962, Gana disputou um amistoso contra o poderoso Real Madrid. A partida terminou empatada em 3–3, diante de 30,000 torcedores orgulhosos no Accra Stadium Sports. Dos onze jogadores titulares, oito atuavam pelo Real Republicans. No ano seguinte, a seleção ganesa atingiu seu auge ao sediar e conquistar a sua primeira Copa Africana de Nações. O bicampeonato da competição, em 1965, confirmou Gana como uma das maiores potências do continente.

A esta altura, Kwame Nkrumah já exercia forte influência política sob a Confederação Africana de Futebol (CAF). O presidente ganês, portanto, foi um dos idealizadores da criação de um campeonato continental entre clubes, colaborando com o financiamento do torneio.

“A África não pode se dar ao luxo de ficar para trás em qualquer esfera da vida. Por isso, encarrego-nos de organizar a versão africana da Liga dos Campeões com este troféu.” afirmou o Osagyefo.

Em 1964, foi realizada a primeira edição da CAF Champions League. O clube próprio de Nkrumah, o Real Republicans chegou às semifinais desta edição, que foi conquistada pelos camaroneses do Oryx Douala. Inclusive, o primeiro troféu do torneio levou o nome de Kwame Nkrumah. Em 1977, o Hafia FC, equipe do Guiné, conquistou a posse da taça ao se tornar o primeiro clube tricampeão da competição.

O Hafia FC foi campeão continental nos anos de 1972, 75 e 77. (Foto: Divulgação)

Para a Copa do Mundo de 1966, disputada na Inglaterra, a FIFA destinou uma única vaga para as seleções da África e Ásia disputarem entre si. Apesar dos africanos geralmente não participarem da competição (era necessário disputar uma partida de repescagem contra uma seleção europeia), Nkrumah não ficou satisfeito com a decisão e organizou um boicote ao torneio junto às demais seleções africanas. O apelo deu certo. Na Copa seguinte, em 1970, a FIFA reservou duas vagas para os continentes: uma para a África e outra para a Ásia. O Marrocos representou os africanos na edição — antes, apenas o Egito, em 1934, havia disputado uma Copa.

No entanto, não demorou muito para que o feitiço virasse contra o feiticeiro. Insatisfeitos em perderem os seus melhores jogadores para o Real Republicans, as demais equipes ganesas realizaram um boicote ao campeonato nacional e ao autoritarismo de Nkrumah. Ter um governo autoritário e centralizador já eram críticas recorrentes a Kwame Nkrumah, sendo um dos principais motivos de insatisfação da oposição. Em fevereiro de 1966, Osagyefo sofre um golpe de estado durante uma viagem para a China e se exilou no Guiné, local em que permaneceu até sua morte em 1972. Vale ressaltar que, após os militares tomarem o poder, o clube Real Republicans foi dissolvido e o futebol ganês sofreu um relativo declínio.

Apesar da relação entre o futebol e pan-africanismo ser fruto de um paradoxo (um é baseado na superioridade, o outro na unidade), a história nos mostra que é possível colher bons resultados desta relação quando dosada na medida certa. Embora muitos afirmem que futebol e política não se misturam, o esporte se apresenta como uma lente poderosa para observarmos contextos políticos e sociais na África, além de ter sido um aliado fundamental para a reconstrução da identidade pan-africana após o domínio imperialista.

Kwame Nkrumah é, até hoje, considerado um dos maiores líderes políticos da história do continente, tendo um memorial em sua homenagem em Accra, capital ganesa. Os ‘Black Stars’ seguem como uma das grandes forças do futebol africano e a Liga dos Campeões da CAF está em sua 53ª edição.

(Foto: Divulgação)

--

--