Em uma era de ruídos, “A chegada” é sobre comunicação

Marco Rigobelli
Ponto Ômega

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O texto contém spoilers do filme. A novela “História da sua vida”, escrita por Ted Chiang, na qual “A chegada” foi baseado não é considerada nesta crítica, o filme está sendo discutido como uma obra separada da original.

O que veio primeiro, a compreensão ou a linguagem? Seríamos capazes de entender e interpretar o mundo sem uma forma de transformá-lo em conceitos e signos; sem maneiras de tornar as abstrações da realidade ideias concretas? Essa é uma questão bastante debatida entre os estudiosos da Linguística: a humanidade decifra o mundo porque tem uma ferramenta para isso ou essa ferramenta surgiu porque começamos a decifrar o mundo?

Quando paramos para observar, nossa sociedade é sustentada pela linguagem, seja ela verbal, gestual ou visual. Os idiomas são provavelmente a primeira coisa que vêm à nossa cabeça quando falamos do assunto, mas a música é uma forma de linguagem, assim como escultura, pintura, literatura, quadrinhos, videogame e cinema também são. Nós transformamos cores em formas de transmitir significados porque eram necessárias soluções rápidas para explicar os momentos de parar, ter atenção e prosseguir por meio das cores. A linguagem também precisa do corpo e de nossa compreensão do mundo para ser bem interpretada, ela se espalha e adapta como um vírus; encontrando novos formatos, servindo como meio de campo para que nós humanos consigamos conversar com os computadores que criamos, interpretar os sinais que os outros animais tentam transmitir e, claro, sejamos capazes de estabelecer canais e laços entre nós mesmos. E é aí que talvez tenhamos nos perdido.

Hoje usamos a linguagem muito mais para impôr e afirmar do que para compreender e comunicar, o que acaba gerando ruído. Todos temos alguma coisa a dizer com tanta ênfase que não damos ouvidos ao que os outros não entenderam ou mesmo o que têm a acrescentar. Como no momento que todas as vozes viram uníssono em uma cerimônia, só acabamos ouvindo quando alguém repete a mesma coisa que estamos dizendo. A chegada é um filme sobre isso, mas também é sobre como no meio dessa cacofonia a linguagem pode ser capaz de definir como enxergamos o mundo, o compreendemos, e como isso também pode acabar causando os ruídos.

Na história, doze naves alienígenas pousam em diferentes regiões do planeta. Elas parecem conchas, não têm bordas, começo ou fim. A doutora em Linguística Louise Banks (Amy Adams) é chamada pelo exército para ajudar a estabelecer comunicação com os visitantes e entender suas intenções na Terra. O filme, se for comparado a outros com o mesmo tema, orbita sempre a tensão que se cria no segundo ato, quando tudo ainda parece um mistério e a audiência percebe estar a ponto de descobrir que a intenção dos visitantes não é das melhores, então o conflito armado parece iminente e manter esse sentimento constante é um dos grandes acertos no filme dirigido por Denis Villeneuve (Sicario: terra de ninguém e o próximo Blade Runner) e escrito por Eric Heisserer (os remakes de A hora do pesadelo e A coisa).

São os passos de Louise que seguimos, desde o início acompanhando flashes de sua vida com a filha em instantes que saltam da infância para a adolescência, até a morte por uma doença rara. Essa é também a introdução que temos da personagem, o corte seguinte é brusco e nos joga em outro momento da vida de Louise como professora de Linguística, esse pautado pela trilha incidental que contrasta momentos de silêncio com ruídos, o que acontece durante todo o filme, como se estivessem em busca de um meio termo.

Quando temos a primeira notícia da chegada dos visitantes, o que vemos é um desencontro de informações. Mas não demoramos para ter o primeiro contato com os alienígenas, sua aparência e a linguagem estranha. Não é uma busca do filme manter o espectador em suspense, não há segredos, mas um desenvolvimento natural que acompanha o próprio aprendizado da linguista. O progresso está pautado nos esforços de Louise, do físico teórico Ian Donnelly (Jeremy Renner) e das forças armadas que monitoram a nave, ambiente que mais parece uma bomba sempre a ponto de explodir.

Amy Adams está incrível no papel de Louise. Uma personagem que se apresenta contida, de fala pausada e paciente esperando todos os outros falarem antes de se manifestar, como se precisasse decifrar os pormenores nas mensagens que cada pessoa envia durante um diálogo, tentando interpretar o significado das sentenças quando são usadas em seus respectivos contextos, permanecendo sempre no controle. Isso fica mais evidente quando vemos a mudança de comportamento dela durante as tentativas de estabelecer comunicação com os alienígenas, quando a urgência, o nervosismo e a própria vontade da Dra. Banks de entender aquelas criaturas a fazem assumir as rédeas da situação. Louise aos poucos compreende que o corpo também precisa falar, que apenas a voz não cria laços, que escrever se torna fundamental para encontrar o canal em comum das duas consciências. Durante todo o filme vemos ela precisando explicar suas decisões para um Coronel Weber (Forest Whitaker) cada vez mais impaciente na situação que — acima de qualquer outra coisa — exige tempo, paciência e cooperação.

Há no Brasil uma tribo chamada Pirahã que serve de exemplo real para uma das questões mais exploradas em A chegada: como saber se uma espécie alienígena é capaz de ter o nosso mesmo tipo de compreensão sobre o universo? E, estando cientes disso, como podemos estabelecer qualquer canal de comunicação quando o que para nós é verde e para eles pode ser marrom? Ou marrom e verde? Ou marrom, verde, vermelho e laranja tudo numa palavra só? Na língua dos Pirahãs existem apenas oito consoantes e três vogais, o idioma encontra portanto variações com tons, sílabas longas ou fortes, e ainda recursos que não costuma-se ver nas línguas conhecidas, como cantar ou assobiar frases inteiras. Há ainda sons nasais, estalos, batidas de lábios e até a forma como se respira durante a conversa pode mudar completamente o sentido de uma palavra. A diferença entre “amigo” e “inimigo” para os Pirahãs está no volume de uma única sílaba. Agora imagine cometer um erro desses no primeiro contato com uma espécie tecnologicamente mais avançada.

Essa é, inclusive, uma das provocações mais constantes que os outros personagens — principalmente os militares — fazem à Louise. Ela é sempre lembrada dos problemas com comunicação que sofremos durante toda a história humana e como, de alguma forma, isso deveria servir de alerta. Em momento nenhum esses personagens pensam que não faz muito sentido projetar a história e problemas de caráter humanos em uma espécie alienígena com preocupações e objetivos que, a princípio, não teriam qualquer lógica para nós. Porém, não é um conceito tão absurdo assim quando pensamos que pessoas como Stephen Hawking também têm os mesmos temores.

A fotografia de A chegada é a mensagem que completa o filme. Ela se aproveita muito bem do ambiente claustrofóbico que é o acampamento militar aos pés de uma das naves, o cenário durante a maior parte do tempo. A câmera também se aproveita do silêncio que as cenas externas costumam transmitir, principalmente perto do fim, quando o estresse pelo qual Louise passa parece tornar-se mais um obstáculo no trabalho dela. São momentos de diálogos até mundanos, com closes (como esse filme usa bem os closes!) e cenas panorâmicas que funcionam como réguas para colocar as coisas em perspectiva.

Não livre de falhas, A chegada peca na metade quando avança o tempo usando uma narração em off que acaba não encaixando com o resto da narrativa, principalmente quando há diversos outros recursos para fazê-lo sem usar essa solução preguiçosa, que fica ainda mais inexplicável quando no fim começamos a entender de que forma a linguagem cinematográfica está brincando com a percepção de tempo adquirida por Louise a medida em que explora e compreende o idioma dos visitantes.

Esse, aliás, é um dos conceitos mais interessantes abordados durante A chegada. Eles mencionam a Hipótese de Sapir-Whorf, proposta nos anos 1930 pelos linguistas Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf, e que olha para nossa compreensão do mundo como algo determinado pela linguagem e não o contrário. Ela foi uma das ideias mais fortes até metade do século passado, até perder força, e então ser novamente estudada mais recentemente.

É uma ideia interessante e até tentadora. Nos faz pensar se a linguagem é fisiológica, se há componentes genéticos nela, se outras espécies do nosso planeta a desenvolveram em algum grau e ela não é um caminho tão raro para a evolução de espécies sociais. Nós sabemos que os cantos das baleias são extremamente complexos e recentemente entendemos que existem até sotaques e cultura entre elas. Será que seremos capazes de compreender seu significado quando vivemos em ambientes tão diferentes — ainda que no mesmo planeta? Será possível nos comunicarmos com as baleias sem o intermédio de uma linguagem visual? Sobre o que falariam e quanto teriam para nos ensinar? A hipótese de reconectar o cérebro através dos idiomas é poderosa a ponto de correr o risco de se tornar mística.

Os visitantes, chamados no filme de heptapods por conta da sua aparência, apresentam uma forma extremamente complexa de gramática que transmite o significado sem usar palavras ou sentenças, não há para eles conceito de passado, presente ou futuro, entendem tudo como uma coisa só, o que se revela fundamental até para a forma como a história é contada.

O clímax acontece quando há desencontro de informações, uma das nações investigando os visitantes acaba escolhendo a maneira errada de se comunicar e não entende o significado de uma mensagem específica transmitida por eles. Como bons humanos, o pânico é instaurado quando todos preferem a interpretação mais óbvia ao invés do diálogo e um confronto parece estar para começar a qualquer momento, ninguém se mostra disposto a ouvir, a ideia de unir os povos da Terra é tratada como absurda em alguns momentos. Quando todos os esforços estão em entender o que diz uma espécie alienígena, o maior obstáculo acaba sendo fazer os humanos se comunicarem. No meio disso, uma coisa nunca muda durante todo o filme, independente das atitudes humanas: os heptapods não se abalam com nada que é feito contra e com eles, como se estivessem cientes de tudo aquilo e dos resultados que as coisas teriam. Essa é a mensagem que se dispersa por todo o filme, e que só faz sentido no final.

Além de diálogo, A chegada fala sobre aceitação. A linguagem dos heptapods sugere que nossa percepção linear do tempo é apenas uma entre tantas, e o filme também diz: o livre arbítrio ao qual nos apegamos durante a maior parte de nossa existência pode não ser tão livre e nem tão arbitrário assim. Se fôssemos capazes de ver o passado, o presente e o futuro acontecendo ao mesmo tempo nos preocuparíamos com mudá-los ou ficaríamos conformados com as coisas da maneira que são? Como seria nossa convivência humana e linear com a consciência de tudo o que aconteceu, acontece e acontecerá em nossas vidas nesses anos que passaremos por aqui? Aceitaríamos como algo inevitável, lutaríamos contra ou tentaríamos o diálogo atrás de um meio termo? O quanto a comunicação nos ajudaria nessa auto-compreensão?

É sintomático pensar que Noam Chomsky seja a pessoa com melhor compreensão do cenário atual no qual nos enfiamos. Por isso mesmo A chegada é tão necessário e providencial ao tratar de comunicação quando parecemos só dispostos a gritar as coisas que estão em nossas cabeças. O filme nos lembra como paciência, aceitação e vontade são necessários para reestabelecermos comunicação uns com os outros.

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