Fractais, frangos espaciais e produção independente na arte de Felipe Gall.

Desenvolvendo games e viajando no cogumelo com Felipe Gall

Gael Mota
Ponto Ômega
Published in
9 min readNov 22, 2016

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Felipe O. Gall vive em Florianópolis, onde é designer e compositor. Apesar de que, muito provavelmente, você ainda não o conheça, é bem possível que acabe escutando algumas de suas músicas nos próximos meses, especialmente se você viveu nos anos 90 e é nostálgico quanto a isso. Felipe é responsável pela trilha sonora do game Heavy Metal Machines, uma produção nacional ainda em fase beta, que é uma espécie de sucessor espiritual do lendário Rock & Roll Racing, lançado em 1993 para Super Nintendo e Mega Drive. Não fosse o bastante, também é o mentor por trás da banda Space Chicken & the Eggs of Disaster que, com seu rock psicodélico, vem progressivamente chamando a atenção dentro e fora do país, abrindo shows para grandes nomes como a norte-americana Radio Moscow.

Em Setembro a Space Chicken lançou um novo EP inspirado nas viagens de cogumelo de Terrence McKenna e é sobre isso, mas também a respeito da composição de trilhas sonoras para games e a produção independente no Brasil, que converso com ele. Confira a entrevista e aproveite para escutar o som da banda enquanto isso!

Gael Mota: Oi Felipe! Conheci seu trabalho através do Heavy Metal Machines. Como foi que rolou esse convite para fazer a trilha? É a primeira que você faz soundtrack para um game?

Felipe Gall: Eu trabalhei na Hoplon por 7 anos e peguei todo o começo do desenvolvimento do jogo tocando a direção de arte. Sou formado em design gráfico e na Hoplon lidava com 3D, a música era só um hobby que foi ficando gradativamente mais sério (comecei a compor umas coisas em casa e eventualmente montei uma banda, a Space Chicken & the Eggs of Disaster). Eventualmente o projeto cresceu e a direção de arte foi pra mãos mais experientes, aproveitamos o fato de que na equipe eu era o único que mexia com som e segui nesse caminho, já que não tínhamos ninguém trabalhando presencialmente nisso. O lance é que o projeto tava numa fase em que a demanda por áudio não era muito grande ainda, então eu me vi com bastante tempo ocioso. Disso surgiu a ideia de tentar compor algo pro jogo, a princípio temas de menu, telas de seleção de personagem e etc, mas o pessoal foi curtindo o resultado e quando eu vi a gente tava fazendo temas pra todos os personagens do jogo. Foi a primeira vez que faço soundtrack pra qualquer coisa, até então era pura brincadeira.

O trailer de Heavy Metal Machines com trilha sonora de Felipe Gall.

Quanto tempo você levou na composição das trilhas? O trabalho de composição já acabou ou ainda é um processo contínuo? Fez tudo sozinho? Como foi a experiência de compor isso aí.

Foi um puta desafio, e acabou sendo uma baita escola. Até então eu tava acostumado a fazer música pra mim mesmo, e de repente me vi tendo que seguir um ‘briefing’, saca? E com prazo contado pra cada música, ainda por cima. Mas no fim foi legal de trabalhar dentro dessas limitações e tentar fazer o melhor possível com o que eu tinha. Como diretor de arte, eu participei ativamente da criação do universo do jogo, dos personagens, etc. Acho que foi uma vantagem, não precisar tentar traduzir/interpretar a ideia de outra pessoa e poder só canalizar a mesma ideia de forma sonora em vez de visual. Quanto ao aspecto técnico, eu consegui aplicar tudo que eu já vinha aprendendo gravando as músicas da Space Chicken. Se o jogo pedisse uma trilha que não fosse rock/metal acho que eu não saberia nem por onde começar, mas dei sorte que o pipeline todo foi igualzinho. Eu levei a guitarra pro trabalho e com ela plugada numa interface USB fiz tudo. Foi bem estranho, ficar tocando guitarra no meio do escritório. Não tínhamos sala de áudio, tinha que confiar no fone de ouvido e aprender a compensar o barulho ambiente. Tudo parte do aprendizado.

Heavy Metal Machines é um seguidor espiritual de Rock n’Roll Racing, clássico da geração 16bits, você voltou nele e em outros jogos para buscar inspiração?

Acho que a inspiração foi no sentido de tentar fazer uma trilha à altura, para empolgar o jogador. Pelo próprio nome, o HMM pedia uma trilha mais pesada, o que eu pessoalmente achei ótimo porque sou mais fã de metal do que de rock clássico. Dentro do metal eu já curti um pouco de tudo, logo deu para explorar bastante coisa e dar variedade pros diferentes personagens. O tema do Tranca-Rua, por exemplo, é um thrashzão com uma pitada de Annihilator, uma banda que curto muito. O do Justa Causa (hoje chamado Rampage) tem um quêzinho de Death e Dying Fetus. Um pouco de tudo misturado com a história de cada personagem, o que também contribuiu bastante para criar uma identidade sonora.

Além da trilha, você também participou do Heavy Metal Machines com outras funções, como foi sua história no desenvolvimento de jogos?

Sim, como te disse, eu tô há uns 8 anos na área, comecei na Hoplon como estagiário e me criei lá. Trabalhei como artista 3D no Taikodom: Living Universe e fiz de tudo — nave, cenário, efeitos…até que o projeto do HMM apareceu. Começou como um projeto paralelo de alguns membros da equipe e foi tomando força. Me chamaram pra dar uma ajuda na arte do protótipo que eles tavam fazendo e, daí, embarquei junto com eles. Quando o projeto foi oficializado pela Hoplon eu assumi a direção de arte e, junto com o Romel Gonçalves, fizemos a arte da primeira fase do jogo praticamente inteira, salvo um ilustrador externo que fazia os concepts e fez também as artes de personagem. A equipe foi crescendo, assumi o áudio, fiz a trilha e foi isso. Saí de lá há pouco menos de um ano pra tentar a vida de freelancer e acabei fisgado pelo pessoal da Cat Nigiri, empresa indie de uns amigos meus. Tô trabalhando de casa pra eles num jogo bem massa chamado Keen! (www.catnigiri.com/keen).

Keen: jogo tático da Cat Nigiri chega em 2017 para PC e PS4.

Você tem uma banda, a Space Chicken & Eggs of Disaster, e ela é meio que uma one man’s band, não é? Quando foi o estopim para começar a compor e decidir lançar um album?

Então, eu comecei a brincar de fazer música por volta de 2011. Era um lazer mesmo, eu sempre amei ouvir música então estava adorando a ideia de poder manipular sons. Aí, fui aprendendo de tudo um pouco pra conseguir me virar sozinho. Um pouco por falta de entrosamento com outros músicos pra compor em grupo, mas também porque eu tinha curiosidade de ver até onde eu conseguia chegar por conta própria, era uma questão de autonomia. Eventualmente surgiu a ideia de formar uma banda pra tocar esse material ao vivo. Recrutei amigos muito legais que toparam a roubada e começamos a ensaiar, criei o nome, página no Facebook e de repente parecia uma banda de verdade. Até que então, com algumas semanas de ensaio, cai do céu a oportunidade de abrir o show da Radio Moscow aqui em Floripa. Seria o primeiro show da banda e de cara abrindo pra eles! Eu queria muito aproveitar o momento e divulgar o som, então peguei as 5 músicas que estavam mais bem trabalhadas no momento e fechei num EP, o Lucidity. Queria ter planejado melhor, mas acabou que cumpriu o propósito e é isso, tem que ter desapego também. O trabalho com material novo já tem sido mais bem pensado.

Como foi reunir o pessoal para tocar ao vivo aqueles sons que antes só estavam ali dentro da tua cabeça? Foi natural?

Foi e vem sendo muito louco, as vezes nem parece que é real . É um som que apesar de pesado é meio introspectivo, e ao vivo a massa sonora fica poderosa. No fundo eu ainda sou bem inseguro quanto à minha música, às vezes do palco eu olho e parece que o pessoal não tá curtindo, porque geralmente estão todos parados no lugar, mas depois fico sabendo que curtiram o som introspectivamente e sei que o som conseguiu comunicar algo. A banda nunca teve uma formação consolidada, mas apesar de só ter rolado um show com a atual (foram três no ano passado com a anterior), o entrosamento tá muito maior. Acho que é a primeira vez que a banda tá sentindo a real intenção por trás do som e isso está começando a se refletir ao vivo de um jeito que eu estou achando muito foda.

Esse ano saiu o The Transcendental Object at the End of Time, um album que gostei muito e é inspirado na vida de Terrence McKenna. De onde surgiu a vontade de fazer esse tributo?

Eu diria que é mais inspirado nas ideias dele do que na vida dele. O que rolou foi que eu tive uma experiência psicodélica com cogumelos mágicos que, pra resumir, me transformou completamente. Foi algo completamente fora do normal e simplesmente indescritível. Durante minhas buscas por entendimento sobre o que tinha rolado, eu esbarrei no trabalho do McKenna. Eu não sei o que que ele tem na voz que me fisgou imediatamente, e eu entendi que ele tava botando em palavras a experiência que eu tinha tido e até então eu não conseguia nem começar a descrever. Conceitualmente, o álbum representa uma trip de cogumelos. Por exemplo, a primeira faixa, Five Dried Grams, simboliza as “5 gramas de cogumelos desidratados” que o McKenna recomenda para que se tenha uma experiência suficientemente reveladora (eu tomei 4g e olha…acho que 3g já tá bem legal pra começar). A voz dele é hipnotizante e a sua oratória tem uma cadência quase musical, eu não tive que editar praticamente nada pra que os discursos se ‘encaixassem’ no som. Musicalmente, eu tentei pintar paisagens sonoras que retratassem essas dimensões por onde se viaja sob efeito da psilocibina. Eu não sei o que é, mas tem algo no som que me retorce o estômago quando eu ouço, uma sensação que é uma das características da experiência psicodélica. Um amigo falou que “sentiu o rosto retorcer” durante um dos refrões, então acho que a mensagem tá sendo transmitida.

Escute agora: The Transcendetal Object at The End of Time Part 2.

O tributo foi dividido em duas partes e agora você está lançando a segunda. Por que rolou essa divisão?

Na verdade essa ideia também começou despretensiosa. Eu tinha feito três músicas inspiradas na trip durante um tempo em que estava de mudança e a banda ficou parada. Nisso pensei em juntar essas três e lançar um EP, só pra movimentar a banda mesmo. Em seguida, tentei fazer mais uma pra dar uma complementada e, no fim, saiu a minha preferida: Invisible Landscape. Lancei o EP em Março desse ano e até aí tudo certo. Mas acabou que sei lá, eu senti que tinha coisa pra sair dali ainda e fiz mais quatro músicas dentro dessa mesma proposta. Estou lançando como uma segunda parte, seguindo o mesmo conceito, mas abordando outros aspectos da experiência. Minha ideia é juntar tudo em um álbum físico no futuro e ter espaço para desenvolver um pouco mais essas ideias no encarte, transmitindo ainda melhor a experiência.

O que você acha do cenário de produtores e produtoras independentes? Seja na música, nos games ou cinema… é um opção só para quem tá começando ou já é algo maior que isso?

Acho que, dependendo das ambições e objetivos de cada um, pode ser a opção principal. Eu mesmo já tive mais vontade de trabalhar fora do país, para grandes empresas de jogos, mas com o tempo passei a valorizar outras coisas e a apreciar mais o local do que o global. Curto muito morar em Florianópolis e trabalhar de casa não tem preço. Tem muita coisa boa acontecendo na cena independente e, geralmente, os desenvolvedores têm uma liberdade criativa muito maior sobre o produto. Lógico que tem suas dificuldades, mas ao mesmo tempo o sentimento de autoria sobre um produto final também é muito maior.

Que outros projetos seus estão rolando por agora?

Além de liderar a Space Chicken, eu toco guitarra na Cobalt Blue (https://www.facebook.com/CobaltBlueband), uma banda de rock progressivo psicodélico também de Floripa. Uma sonzera, vale a ouvida!

The Transcendental Object at the End of Time Parte II já está online e você pode conferir na íntegra no bandcamp oficial da banda: https://spacechicken.bandcamp.com.

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Gael Mota
Ponto Ômega

geoscientist and professor; dreaming of electric sheep.