Somos todos interfaces

Felipe Esrenko
Ponto Ômega
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4 min readNov 22, 2016

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“Eu bem que tentava entende-los, forçando-os a pertencerem a um dos gêneros — masculino ou feminino -, classificação tão inútil à natureza deles, mas essencial à nossa.”

Em A Mão Esquerda da Escuridão, Ursula Le Guin dá vida a um mundo marcado pela estranheza e pela ambiguidade. Na pele de Genly Ai, um embaixador cuja missão em um planeta estranho o leva ao questionamento de sua própria natureza, somos convidados a nos despir de qualquer ideia simplista ou binária. Toda a história é uma ruptura de conceitos uniformes, começando pela própria noção de gênero. Os habitantes de Gethen — o planeta visitado pelo protagonista — são hermafroditas, sendo todos capazes de gerar filhos. Não apenas carregam características de ambos os sexos, como tendem a alternar a predominância de um ou outro, de acordo com a troca sexual de ferormônios.

Muitos clássicos da ficção científica operam na zona do desconforto a respeito do que criamos. Le Guin não se contenta com isso: nos carrega para o desconforto a respeito do que somos incapazes de compreender.

Se há uma palavra que pode sintetizar o mundo, é entropia. Conhecida por medir ou definir o estado de desordem de partículas em um sistema (seu exemplo mais claro é o do ato de ferver a água, onde o conteúdo antes retido em uma panela se dispersa, sob efeito do calor, tornando-se gasoso) , a entropia nos diz que quanto maior seu efeito, mais irreversível o processo tende a se tornar.

Para uma geração onde as ideias encontram, mais do que nunca, um meio fluido e conectado de propagação, o conceito da entropia nos dá claramente a visão de um ecossistema tão caótico e disperso: que é impossível revertê-lo ou controlá-lo. Para o bem e para o mal, nosso mundo está destinado à desordem.

Desordem? Bem, muito além disso. Na verdade, como Steven Johnson nos ensina em Emergência: a vida integrada de formigas,cérebros, cidades e softwares, que o que ganhamos é uma inversão na pirâmide tradicional de ordem. O que antes era hierárquico, vertical e rígido torna-se um sistema emergente bottom-up (de baixo para cima, diferente da hierarquia tradicional), auto-organizável, cuja inteligência não é mais um canal unilateral e restrito, mas antes de tudo uma ação coletiva, plural, distribuída.

Assim, a entropia proporcionada pela tecnologia de redes não apenas dispersa ideias involuntariamente, mas recria seu sentido e seu significado, criando novas esferas e modos como elas afetam e são afetadas, como elas são organizadas e compreendidas.

É claro que em tempos de falsas notícias e sobrecarga de informação, essa dispersão tende a ser vista muito mais como contaminação: espalha-se todo tipo de conteúdo difuso e muitas vezes enganoso. No campo das redes sociais, isso vem sendo um prato cheio para discussões intermináveis sobre nossa noção de verdade e realidade.

Por outro lado, não podemos nos esquecer como é essa mesma difusão de ideias pela web que se tornou uma fresta por onde vozes nunca ouvidas têm encontrado a chance de se espalhar e serem percebidas. Hoje, mais do que nunca, minorias de todo o mundo encontram uma plataforma acessível para revelar-se e posicionar-se, frente a uma ordem muitas vezes intransponível no terreno analógico.

Cada vez mais, o choque entre o novo e o velho é inevitável. Como é do choque que surge a mudança, nesse embate são nossos valores que vem se redefinindo. Logicamente, a aceitação desses novos valores depende de muitos outros processos, muito mais pessoais e subjetivos. O processo de interiorização desses valores exige um dispositivo muito mais complexo e problemático: nós mesmos.

Enquanto as tecnologias nos forçam a encarar a realidade de modos muito mais diversos, as interfaces que essas tecnologias apresentam nos forçam a encarar as ideias sobre a realidade de modos muitos mais inovadores. Como Plaza e Tavarez disseram, uma interface é uma fronteira compartilhada. Entre o que? Entre partes distintas. A interface é sobre comunicação. Comunicação é sobre compreensão. E o que vem sendo a revolução tecnológica, senão a proliferação de novas interfaces e necessidade de novas compreensões?

O maior desafio de uma era de múltiplas interfaces, onde dezenas de layers de ideias sobrepõe-se e se interceptam, é criar um ambiente que, combinando analógico e virtual, permita o intercâmbio e a compreensão de ideias, de uma forma multidisciplinar e disruptiva. Não é sobre “pensar fora da caixa”. A caixa deixou de existir há tempos. A questão é a fronteira em que existimos, como dar conta de toda a diversidade de formas de pensar com as quais somos desafiados.

Enquanto caminhamos para um futuro onde a inteligência artificial se expande, onde o próprio conceito de ser humano tende a ganhar novas métricas — com disciplinas como transhumanismo e biologia sintética ganhando força — a própria ideia de sermos tão binários tende se tornar obsoleta. Não é mais sobre o que acreditamos ou não, é sobre o que podemos e queremos compreender. O pensamento exponencial, aperfeiçoado por uma era que exige de nós maleabilidade e transformações constantes, irrompe uma necessidade de redesenhar nossos modelos de entendimento do mundo. Caso contrário, a estranheza diante da quebra de gêneros provocadas pelo livro de Ursula Le Guin será cada vez mais familiar.

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Felipe Esrenko
Ponto Ômega

Writer | Storyteller | Cyberpunk & sci-fi enthusiast | Futurist Aspirant