CULTURA

A pandemia além dos multiplex

Na Região Metropolitana de Porto Alegre, cinemas fora das grandes redes enfrentam dificuldades, mas permanecem ativos

Tábata Kolling
Pontos de Escuta

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Fachada do Cine Mais Arte, em Montenegro | Foto: Tábata Kolling

“Eu acho que vai levar uns dois anos para voltar ao que era em 2019, ou três.” A fala é de Ewerton Brandolt, administrador da rede Cine Mais Arte, com três cinemas de sala única no Rio Grande do Sul e um em Santa Catarina, o primeiro deles aberto em 2016, em Montenegro. É o único cinema da cidade de aproximadamente 60 mil habitantes e distante 55 km de Porto Alegre. Sua história é longa: inaugurado em 1957 com o nome “Cine Tanópolis”, funciona desde então no mesmo lugar, no segundo e terceiro andares de um prédio no centro da cidade, cujo térreo é ocupado por uma loja de variedades. Ele já contou com alguns períodos de interrupções das atividades e diversos administradores, sendo uma das salas mais antigas do Rio Grande do Sul ainda ativas e um ponto de referência para os montenegrinos. Ewerton a reformou em 2016, implantando equipamentos modernos e abrindo junto a ela uma lancheria, onde ocasionalmente ocorriam eventos musicais antes da pandemia, em horários próximos aos das sessões.

Segundo ele, mesmo com a vacinação e o respeito aos protocolos de segurança, o público ainda não retornou em quantidade suficiente para preencher a lotação máxima permitida, de 75% dos 180 lugares da sala, com a maior parte das sessões ficando bastante abaixo da capacidade. O adiamento de estreias e lançamentos simultâneos de filmes de grande porte em serviços de streaming tornam a situação ainda mais complicada: “Se está liberado 50% [da capacidade], vão 10% nas sessões, 20% no máximo”, diz. Além disso, Ewerton relata não ter tido auxílio por parte da prefeitura da cidade. Contou apenas com negociações em relação aos aluguéis das salas com os donos dos prédios, tanto em Montenegro quanto em Capão da Canoa, no Litoral Gaúcho, onde mantém dois cinemas que enfrentam problemas semelhantes. Apenas a unidade de Sombrio, em Santa Catarina, apresenta uma situação melhor, que o administrador atribui ao fato de ter sido aberta recentemente na cidade, que até então não tinha cinema.

Normas de funcionamento dos cinemas em Porto Alegre e Montenegro, de acordo com a legislação em vigor no momento | Arte: Tábata Kolling

A rede Cine Mais Arte não é a única em dificuldades: em agosto deste ano, o Cine Guion, de Porto Alegre, anunciou o encerramento de suas atividades após 26 anos exibindo filmes alternativos. Segundo matéria de GZH publicada em 21 de outubro, ele será reaberto ao público no próximo dia 24, com nova administração, do médico Marcelo Tiburi, e novo nome, “Cine Grand Café”. A programação deve permanecer com filmes “de arte”, mas trazer também produções antigas e blockbusters — filmes de cunho mais comercial e grande orçamento.

Comparação de público e arrecadação dos cinemas entre 2020 e 2021, no Brasil, Rio Grande do Sul e Região Metropolitana de Porto Alegre, com dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine) | Arte: Tábata Kolling

Jornalista e graduado em Produção Audiovisual, Yuri Célico escreve críticas de filmes para o site Esqueletos no Armário, e é uma das pessoas que diminuiu a frequência de ida aos cinemas. Ele conta que, no momento, vai aproximadamente uma vez por semana, dando preferência ao streaming quando possível. “Antes, numa semana que eu ia pouco, ia umas duas vezes ao cinema. Era uma média de quatro vezes por semana.” Frequentador principalmente da Cinemateca Capitólio e do Espaço Itaú de Cinema, que encerrou suas atividades em Porto Alegre em setembro, ele também notou que o movimento nas salas das sessões em que estava era fraco: “É a sensação de que voltou, mas não voltou”. Já a auxiliar administrativa Júlia Moraes, que frequentava o Cine Mais Arte de Montenegro aproximadamente uma vez por mês, não vai ao cinema desde o início da pandemia. Agora, só assiste a filmes e séries por meios digitais.

A importância das salas alternativas e dos cinemas independentes

Segundo a professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Miriam Rossini, mesmo antes da pandemia já havia dificuldades para os cinemas de menor porte e desligados das grandes redes nacionais se manterem, e a tendência era de concentração das salas dentro dos shoppings. Para ela, que pesquisa a área do cinema, o avanço de novas tecnologias, culminando no streaming, contribuiu para que o público assistisse mais a filmes em casa, em um processo que foi intensificado pela pandemia.

“Se tu não tem um cinema independente em uma cidade assim, tu não vai ter esse acesso dentro da tua cidade, tu precisa de um cinema independente para conseguir chegar em populações menores”, Júlia Moraes, frequentadora do Cine Mais Arte, em Montenegro

Para Yuri, os cinemas alternativos cumprem um papel importante ao exibir produções que não têm espaço nas grandes salas comerciais: “Eles conseguem fazer com que esse repertório circule melhor nos grandes centros urbanos, e não ter isso é não só triste como também preocupante do ponto de vista que pode prejudicar toda a nossa cadeia de produção”. Miriam destaca que, com o fechamento de cinemas desse tipo na capital, há uma perda cultural para os bairros, já que esses são espaços que movimentam e aproximam os filmes e a experiência do cinema enquanto arte da população local. Um efeito parecido ocorre em cidades menores que perdem suas salas, por vezes únicas, que são também um ponto de referência para a população, mesmo que exibam filmes mais comerciais. “As pessoas entram na cinefilia por diferentes lugares. Eu acho que, mesmo que a pessoa comece vendo filmes blockbuster, em algum momento ela vai acabar vendo alguma outra coisa”, diz a pesquisadora Miriam. Júlia também considera importante o papel desses cinemas: “Se tu não tem um cinema independente em uma cidade assim, tu não vai ter esse acesso dentro da tua cidade, tu precisa de um cinema independente para conseguir chegar em populações menores”. Ela também considera que poderia haver mais auxílio do governo ao setor durante a pandemia.

O cineasta e diretor do Instituto Estadual de Cinema (Iecine), Zeca Brito, observa duas questões em relação à importância dos cinemas alternativos e independentes: a primeira é a econômica, considerando os trabalhadores das salas de cinemas. A segunda é a do convívio social coletivo, uma vez que passar pela experiência do filme junto ao restante do público e sem as distrações e pausas comuns do ambiente caseiro, como o celular, a torna mais potente: “Eu acho que o cinema, o ritual coletivo, sensibiliza as pessoas, faz com que a gente tenha mais empatia”.

Cinematecas de Porto Alegre também sentem os efeitos da pandemia

Nas cinematecas Paulo Amorim e Capitólio, a pandemia trouxe mudanças na relação com os espaços. Por não dependerem exclusivamente da bilheteria para seu financiamento e manterem uma programação diferenciada em relação à maioria dos complexos dos shoppings, tanto o período de fechamento quanto as restrições atuais tiveram efeitos diferentes. Leonardo Bomfim, programador da Cinemateca Capitólio, mantida pela Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, conta que 2019 foi um período de grande aumento de público no lugar, que formou uma relação forte com a cidade. A decisão de não estabelecer uma programação online fixa como forma de substituição da presença física no cinema foi nesse sentido, para além das dificuldades financeiras e práticas que essa opção envolveria: “A Cinemateca tinha muito esse sentido da relação com a cidade, com as pessoas, e o online quebra isso, é uma outra experiência”. Exceções foram o Programa de Alfabetização Audiovisual, voltado a formações nessa área para alunos e professores desde o ensino básico até a extensão universitária, e atividades pontuais como a mostra “O Cinema e a Cidade”, realizada na semana de aniversário de Porto Alegre, que foram adaptadas para a exibição pela internet.

Sala de cinema da Cinemateca Capitólio | Foto: assessoria de imprensa da Cinemateca Capitólio

Zeca conta que a Cinemateca Paulo Amorim, gerida pela Secretaria de Estado da Cultura, passou por um processo de reinvenção no período, buscando manter patrocínios e empregos de funcionários terceirizados mesmo com a ausência de público. Para isso, foram promovidos cursos e oficinas de qualificação e aperfeiçoamento para os profissionais, seguidos de um processo de identificação de todos os longas metragens gaúchos existentes e dos profissionais neles envolvidos, com o auxílio de especialistas, que resultará em um portal online e em um livro. “Os funcionários da Cinemateca se transformaram em pesquisadores do audiovisual gaúcho”, diz Zeca. Esses materiais poderão auxiliar também na análise, elaboração e reivindicação de políticas futuras para o setor.

Futuro é visto com otimismo, mas sem ignorar as mudanças

“Eu acho que vai ser quase um renascimento, ainda maior”, diz o programador Leonardo sobre o futuro da Cinemateca Capitólio depois da pandemia. Após 15 meses fechada, ela reabriu para o público no dia 6 de julho. Ele conta que o cinema voltou com apenas uma sessão diária, mas no momento já são três, com algumas atingindo o limite de lotação adotado pelo espaço, de 50% dos 164 lugares — regra não exigida no município, que permite 100% de ocupação — ou sendo reprisadas por conta da grande procura. “Eu estou muito otimista nesse sentido de que as pessoas vão querer ainda mais ir ao cinema, e não só pelo filme na tela grande, e com essa experiência do som, que comparando com essa experiência que a gente foi obrigado a ter em casa realmente é uma outra coisa, mas eu acho que é a questão do encontro também.”

Zeca, citando o caso do Cine 7, em Bagé, no interior do Rio Grande do Sul, vê que esse e alguns outros cinemas estão reabrindo com uma estratégia diferente da que tinham antes da pandemia. Estão dando menos ênfase aos filmes mais comerciais e procurando produções alternativas, que representam um diferencial, uma vez que os primeiros já encontram seu espaço no streaming. Além de, no caso de Bagé, haver adaptações também em função da parceria com a prefeitura da cidade, que possibilitou a reabertura. Apesar de achar difícil fazer previsões, ele vê as mudanças nas formas de consumo de filmes como algo permanente: “O cinema massivo, do grande público, migrou para a casa das pessoas. O cinema sala de cinema, hoje, está cada vez mais ligado à ideia de cinefilia”. A professora Miriam também vê uma mudança nos hábitos nos últimos anos que impacta nos cinemas, com o público acostumado a uma duração mais curta e episódica das narrativas, em oposição aos filmes mais longos e sem intervalos. Ela destaca também a questão econômica, já que o valor para ir a uma sessão é alto, especialmente considerando uma família, um ponto também apontado pelo jornalista Yuri. Mesmo assim, a pesquisadora acredita que a experiência cinematográfica voltará a ter espaço.

Yuri pretende aumentar a frequência nas salas em relação ao momento atual, mas não imagina uma volta completa ao hábito anterior: “Eu gostaria de voltar ao ritmo de ver vários filmes no cinema toda semana, mas eu não sei até que ponto a nossa rotina não foi alterada em outras frentes, e o quanto isso não vai limitar a nossa locomoção pela cidade e a comodidade de estar passando pelo cinema e pensar, ‘vou assistir alguma coisa’”. Já a montenegrina Júlia pretende voltar à sua frequência anterior, mas ao mesmo tempo manter o hábito de assistir mais produções nos serviços de streaming: “Eu gosto de ver no cinema. Tem filmes que é bom ver em casa e tranquilamente, mas aquela coisa da arte mesmo requer uma tela maior. Ela requer aquela experiência, o cheirinho da pipoca, então isso faz falta.”

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Tábata Kolling
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Sou uma publicitária e estudante de jornalismo de 25 anos apaixonada por livros e filmes, e amo escrever sobre qualquer coisa que não seja eu mesma.