SAÚDE

Corpo não livre

Como a gordofobia é tratada na formação acadêmica dos cursos de Nutrição e Educação Física

Laura Bortolini
Pontos de Escuta

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Apesar do avanço na abordagem da gordofobia, o debate encontra empecilhos dentro do discurso da comunidade acadêmica | Foto: Freepik

Estudante de Nutrição da Pitágoras-Unopar, Franciele Soares, de 30 anos, sentia que o que mais lhe incomodava nas aulas eram os olhares julgadores de seus colegas e professores, enquanto fazia comentários ou apresentava trabalhos. Nas aulas práticas de avaliação física, entrou em desespero e pensou em trancar o curso — não se sentia confortável com os exercícios — e acabou desabafando com uma colega. Quando essa colega conversou com uma professora sobre a sua situação, Franciele passou de avaliada para avaliadora, para que não fosse exposta nas atividades corporais. Nas salas de aula do ambiente acadêmico, ela vivenciou o repúdio com seu próprio corpo gordo.

A luta contra a gordofobia teve sua discussão ampliada a partir do desenvolvimento da internet, representada nas mídias sociais por movimentos como o Body Positive. Conhecido no Brasil como Corpo Livre, o movimento tem como intuito incentivar o amor próprio e a luta pelo fim da associação do corpo gordo à doença. No entanto, esse cenário parece não ter alcançado com plenitude os diálogos das salas de aula do meio acadêmico da área da saúde.

Ian Massumi Carneiro Ogawa, graduado em licenciatura em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e atual estudante do bacharelado do curso, afirma que poucas disciplinas são voltadas a uma orientação social, envolvendo a construção de estereótipos do corpo gordo. “Nas três cadeiras socioculturais que realizei, havia o diálogo sobre o racismo e o machismo, que também são pautas importantes, mas em nenhuma delas abordaram a questão da gordofobia”, comenta o aluno.

A falta de diálogo sobre a aceitação corporal durante a graduação fez com que a nutricionista Aline Jerônimo se interessasse pela investigação das condições multifatoriais da obesidade. Formada pela UFRGS, sua dissertação de mestrado tratou sobre o preconceito contra a diversidade de corpos e o ativismo educativo-cultural de pessoas gordas na militância contra a gordofobia via mídias digitais.

Aline participou de uma aula da disciplina de Ética na Alimentação e na Profissão, do curso de Nutrição da UFRGS em 2019 | Foto: Arquivo pessoal
Aline participou de aula da disciplina de Ética na Alimentação e na Profissão em 2019, do curso de Nutrição da UFRGS | Foto: Arquivo pessoal

“Quando eu comecei a minha pesquisa para a dissertação do mestrado, muitos colegas não entenderam o porquê da escolha de problematizar a gordofobia e falaram que eu estava romantizando a obesidade”, afirma. Hoje, dois anos após ter defendido sua dissertação, percebe que o movimento antigordofobia está forte na sociedade e principalmente dentro da nutrição. Com o enfoque de sua pesquisa, Aline foi além do tradicional: excedeu a perspectiva patológica da obesidade e produziu um estudo científico que englobou a consciência sociocultural da doença, servindo como exemplo no debate da gordofobia.

Estereótipos no papel

Mesmo com a preocupação de alguns alunos sobre o tratamento do corpo gordo durante o período de graduação, há casos em que o preconceito transborda o ambiente da sala de aula: torna-se um embate no atendimento clínico, com a realização de conclusões automáticas que modificam a prescrição médica feita aos pacientes.

Um estudo realizado na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) em 2015 avaliou a interferência dos estereótipos em diagnósticos feitos por alunos de Nutrição para pacientes obesos. Os estudantes deveriam analisar casos hipotéticos de intolerância à lactose — sem relação com o estado nutricional — para homens e mulheres eutróficos (com peso adequado) e obesos. A mulher obesa recebeu as piores avaliações, mesmo com os dados fornecidos sobre hábitos de vida, quantidade de calorias ingeridas e características da dieta idênticos aos demais pacientes, sendo o peso corporal a única exceção.

A mesma aplicação foi realizada pelo Rudd Center for Food Policy and Obesity — organização sem fins lucrativos de pesquisa e políticas públicas — na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. O resultado estadunidense foi equivalente ao do Brasil, com a afirmação de que a mulher obesa teria a pior qualidade de dieta. Com base nessa perspectiva, a visão reducionista dos alunos excede o preconceito quanto ao aspecto físico e relaciona-se também às pressões estéticas presentes no universo da mulher. A amostra do trabalho brasileiro, composta principalmente por estudantes do sexo feminino, eutróficos, solteiros e brancos, comprova a preocupação excessiva na realização de dietas e na reprodução dos padrões corporais ditados pela sociedade, experiências frequentemente vivenciadas por mulheres.

Raquel Canuto, professora da disciplina de “Ética Alimentar e Ética Profissional” do curso de Nutrição da UFRGS, aborda o preconceito em relação à obesidade por meio de leituras e com a participação de convidados. A discussão da temática, considerada por Raquel recente e localizada no nicho das plataformas digitais, faz com que a responsabilidade de inserção no meio acadêmico se conduza a outro objeto: à produção de conteúdo científico.

“Para modificar o processo de conhecimento dos alunos dentro da sala de aula, deve-se produzir material de conteúdo que não provém das redes sociais, e o número de pessoas que discute sobre gordofobia deve aumentar”, declara a professora. Se estiver presente no diálogo de diferentes esferas sociais, a temática chegará aos ouvidos de quem debate e quem produz ciência.

Já Ian considera que a ação dos alunos e professores deve fazer barulho nesse contexto. Pelas alterações no currículo escolar serem mais lentas do que as mudanças sofridas pela própria sociedade, os acadêmicos devem trabalhar como porta-vozes da introdução das problemáticas sociais nas salas de aula. O estudante afirma que os assuntos abordados nas disciplinas iniciam com as típicas conversas de corredor. “O viés mais social vem de uma movimentação de fora da sala de aula, ou de uma situação específica que aconteça dentro da universidade ou de um meio que seja notificado pela imprensa. Algo que realmente venha à tona e seja comentado”, explica.

Turma do 5º semestre de licenciatura em Educação Física da UFGRS nas interclasses de 2017, da qual Ian participou | Foto: Arquivo pessoal

A mente à parte

Foi quando a preocupação maior deixou de ser a desnutrição e deu espaço à obesidade, no chamado período de Transição Nutricional, que os profissionais da saúde alteraram sua atuação quanto a doenças corporais. Fatores como a urbanização, o sedentarismo e os novos hábitos alimentares marcaram esse período e indicaram mudanças no modo de vida da população, e a análise das enfermidades passou a ser realizada com base biológica-nutricional e como fator de risco para outras enfermidades. Assim, levou-se em conta o organismo apenas como estrutura física, — desconsiderando as dimensões psicológica, comportamental, cultural e econômica envolvidas no processo de determinação social da doença.

Bárbara Leone Silva, nutricionista pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), afirma que uma investigação sobre doenças corporais baseada apenas sob uma perspectiva biológica, fisiológica e dietética acaba por reduzir os indivíduos que convivem com essas doenças a corpos doentes. A negação das demais perspectivas sobre a doença pode gerar a culpabilização do indivíduo pela condição em que se encontra — fator que limita o cuidado e afasta o sujeito dos serviços de saúde, além de agravar a sensação de falta de autonomia e empoderamento possivelmente já experienciadas pelo sujeito.

O corpo gordo foi atrelado à doença e aos maus hábitos alimentares, considerando apenas fatores físicos | Foto: Andrés Ayrton

No aspecto da sala de aula, Angelita Jaeger, professora de Educação Física da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) alega que, mesmo com a explicação de que o corpo é uma construção sociocultural em diferentes tempos e lugares, ainda há uma força dos conteúdos biológicos em detrimento às ciências humanas. “Sobretudo pela preponderância histórica, já que eram os médicos que prescreviam os exercícios físicos, e depois, os militares”, explica a professora.

Nova conduta

“É dentro da academia que se aprende a ter um olhar humanizado e entender que saúde não se mede em números”, Aline Jeronimo, nutricionista

Aline alega que, apesar da discussão dentro do ambiente acadêmico ser atual, a evolução deve partir desse mesmo cenário. “A mudança tem que ser de dentro para fora, ou seja, é dentro da academia que se aprende a ter um olhar humanizado e entender que saúde não se mede em números.” — Ela acredita que a nova geração de profissionais da saúde estará disposta a quebrar tabus e a desconstruir estereótipos e estigmas que foram socialmente aceitos e reproduzidos.

“Os alunos têm sido sensíveis para a temática, porque fazem parte desse grupo que está mais conectado e participativo nas redes”, afirma Raquel. Uma nova imagem profissional está sendo estruturada pelo ramo da nutrição comportamental, segundo a professora: os futuros nutricionistas querem ser reconhecidos como aqueles que cuidam da alimentação dos pacientes e da vida saudável como consequência disso, não necessariamente da perda de peso. A redução do uso das dietas prescritivas é um exemplo dessa perspectiva.

No caso de Franciele, que sofreu como aluna de Nutrição, a mudança de comportamento de seus colegas ocorreu durante o período de estágio, quando os estudantes entraram em contato com pacientes. Considerada uma das melhores alunas da turma, Franciele teve a experiência positiva de ver a professora corrigir seus planos alimentares e afirmar que não havia erros, permitindo que ela auxiliasse os colegas em suas atividades práticas. Defendeu seu Trabalho de Conclusão de Curso sobre “A influência dos padrões sociais no desenvolvimento de transtornos alimentares em estudantes de Nutrição” e recebeu avaliação máxima, comprovando seu êxito pessoal e profissional, além da importância de envolver o diálogo sobre a gordofobia nas salas de aula.

Em setembro de 2021, Franciele finalizou sua pós-graduação em Nutrição Clínica e Estética Funcional | Foto: Arquivo Pessoal

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